Damos nomes às coisas, e criamos sistemas de significação para compreendermos o mundo a nossa volta. A linguagem e suas infindáveis variantes, as línguas e dialetos – segundo uma corrente de pensamento muito respeitada, justamente o que nos difere de todos os outros animais – é um desses sistemas. É por meio dela que o que descobrimos pode ser exprimido, além de outros incontáveis usos. Ela nos revela O QUE foi descoberto.
Toda a ciência, bastante elogiada nas postagens anteriores, é outro sistema. Dividida esquematicamente em áreas do conhecimento, para que seja possível ramificá-la e aprofundá-la, é uma conquista fantástica, uma ferramenta extraordinária, para nos revelar COMO o mundo é feito.
A pesquisa sistemática feita pela ciência até responde, por meio de conjecturas e teorias, muitos porquês. Mas nem sempre estas respostas satisfazem ou encerram completamente o assunto. Qualquer um que já respondeu a alguma pergunta feita por uma criança sabe que os “POR QUÊS” podem se suceder quase infinitamente. Ou seja, percebemos desde bem cedo que algumas respostas estão longe de ser suficientes: buscamos mais que respostas, buscamos significado. Há, por isso, um outro sistema de significação para suprir esta necessidade: a religião.
John GRAY, ensaísta e filósofo britânico, define:
“Tanto a ciência como a religião são sistemas de símbolos que servem às necessidades humanas – no caso da ciência, à predição e ao controle. As religiões servem a muitos objetivos, mas afinal respondem a uma necessidade de significação que é mais bem suprida pelo mito do que pela explicação.”
Posto que estes sistemas têm finalidades diferentes, parece estranho que haja “briga” entre a ciência e a religião, mas há, e bastante. Geralmente, quando uma pretende dar uma resposta onde a outra é mais gabaritada. E isso sempre aconteceu… Antigamente, a ciência tinha que prestar contas à religião, nas pessoas de seus dignitários. Os lamentáveis exemplos são conhecidos: Galileu, Giordano Bruno, dentre outros. Hoje em dia, houve uma inversão: é a religião que busca a “aprovação” da ciência, para validar seus dogmas e comprovar seus mitos. Um exemplo pronto é a Teoria Criacionista.
E o que esta inversão prova? Acho que há muito a ser estudado a este respeito, mas de imediato poderia se dizer que a ciência vem bastante prestigiada, crescendo em progressão geométrica nos últimos poucos séculos, e com este avanço, tem encontrado respostas, técnicas e descobertas que incontestavelmente melhoram tanto a qualidade como a expectativa média de vida. Desta forma, ao influenciar na vida de praticamente todos, tornando-a mais fácil, longa e prazerosa, a ciência vira o “alvo” de uma admiração antes dedicada à religião.
Com este suposto assédio à ciência, estaria então a religião se “cientificando”, ou mesmo se tornando desnecessária? A resposta não parece tão simples.
Em substituição a uma instituição religiosa que se confundia com o próprio governo, riquíssima, influente e tirana, a religião hoje entende que há mais liberdade de escolha, e precisa seduzir de outras formas. Tanto que as tendências religiosas apontam para algo parecido a um “self-service”: se aceita determinada denominação, mas não implicando necessariamente em concordância com todos os dogmas desta doutrina, mas também em se utilizar procedimentos, rituais e ter crenças “emprestadas” de outras religiões. A princípio, isso parece ótimo – o fanatismo e a obediência cega nunca terminaram bem. A religião está se adaptando ao mundo de hoje, e já não pode mais submeter a ciência a seus desmandos.
O porém é que, junto com o justificado prestígio da ciência, e da liberdade que há para se aprofundá-la, há também uma certa “superestimação”, como se nela fosse possível encontrar resposta para absolutamente tudo. Isso é um claro e grande exagero.
Ainda assim, a ciência, na pessoa de alguns de seus expoentes, tem empreendido um ataque pesado à religião – preferencialmente sobre aquelas com maior número de seguidores – tanto como instituição, como em sistema de crenças, que seria, segundo eles, não apenas obsoleto, como também prejudicial e potencialmente desastroso, ao fomentar guerras, ódio, preconceitos e outras agruras. Há uma espécie de desencanto com a religião, e os ateus, agnósticos e livre pensadores, antes prudentemente escondidos, tem se revelado, com graus variados de indignação ante o “passado negro” da religião, de forma geral.
Refletindo melhor sobre este cenário, é possível encontrar muitas ligações de guerras e matanças relacionadas à religião, em praticamente todas as épocas. Porém, parece bastante razoável dizer que a religião, dada a posição e importância que sempre teve, seria apenas o meio encontrado e utilizado por alguns homens – e são sempre estes que corrompem tudo – para exercerem aquilo que procuram avidamente: o poder. Em muitos casos, é o meio preferencial, pois a crença cega coage uma pessoa de bem, parecida com qualquer um de nós, a abrir mão de tudo o que tenha por uma “causa” difusa, à base de alguma promessa no “porvir” que não tem como ser racionalmente contestada.
Uma vez que a ciência depende de algum tipo de linguagem ou código para ser inteligível, o ataque à religião é feito nestes termos. Aponta contradições, inconsistências e ingenuidades em interpretações, quase sempre literais, feitas a palavras ou textos tido como sagrados. Estas observações são válidas, e estão de acordo com o lugar que a ciência ocupa hoje: algo como uma “lanterna”, para iluminar o que estava obscuro. Mas o problema é tratar o código da religião, mitológico e transcedental, como algo passível de estrita análise científica. John GRAY diz sobre: “As religiões não se constituem de proposições que lutam para tornarem-se teorias.” Mais que isso, a confusão feita com a linguagem metafórica do mito, ao se querer analisar suas histórias e parábolas à luz da ciência, os confunde com mentiras, e ridiculariza a sabedoria milenar neles contida.
Isso é um desserviço tão grande quanto o é a credulidade irrefletida, e ambos são igualmente danosos. Por exemplo, se o nascimento virginal era uma impossibilidade científica (hoje não mais: fertilização in vitro), é possível dizer, dentre outras interpretações, que a linguagem metafórica pretendia emprestar distinção e pureza àquele nascimento específico, episódio este, aliás – nascer de uma virgem – recorrente nas mitologias antigas.
De qualquer forma, um pequeno exercício de humildade mostraria que a ciência, ainda que formidável, é como uma “lanterninha”, um pequeno facho de luz apontando para a vastidão infinita. Imagine-se na escuridão absoluta, olhando um quadro-painel desenhado por todo um muro gigantesco, a Muralha da China, digamos, munido apenas desta lanterna. Você veria “flashes” das pinturas, e teria imensa dificuldade de “montar” a figura completa, quanto mais entender seu propósito. Faria sentido se gabar que a lanterninha na sua mão é muito mais avançada e potente que as tochas que os antigos empunhavam para tentar entender o quadro-painel, ou seria mais inteligente interpretar os relatos deles e perceber que, à parte a linguagem e a ênfase que davam a alguns detalhes, eles contavam uma história muito coerente?
Há um homem dedicou sua vida inteira para interpretar e procurar os padrões do equivalente a estes relatos: Joseph CAMPBELL. E a noção de religiosidade que ele construiu é muito mais consistente e significativa que o ataque que os autores ateus, como Richard DAWKINS, Sam HARRIS e Christopher HITCHENS fazem, respectivamente, em seus livros “Deus, um Delírio”, “Carta a uma Nação Cristã” e “Deus Não é Grande”. Entender os exageros e abusos que se fazem em nome da religião é uma coisa, atacar qualquer tipo de fé como algo característico de pessoas pouco inteligentes é outra, muito diferente.
E aqui concluo a primeira parte deste meu ensaio, grifando algo que espero que tenha ficado bem balizado: a comunhão com o que há de Divino NÃO DEPENDE de intelecto ou de instrução. Até porque muito do que é mais importante está acima da linguagem, como diz a citação do início. Envolve um tanto de instinto e um tanto de sabedoria, e bem pouco saber. Para tornar mais clara esta condição, há de se pontuar algumas da diferenças fundamentais entre o “saber” e a Sabedoria: o primeiro dependente do domínio de ao menos uma língua, é cumulativo, apreendido por esforço, disponível em locais específicos, como bibliotecas, faculdades, dentre outros, enquanto a última independente até de alfabetização, não é mensurável, é apreendida por vivência e reflexão, não armazenável, mas encontrada em todos os lugares. Dito de outra forma, Sabedoria é a habilidade de se utilizar com máxima perfeição o saber que se tenha. Daí o fato de haver pessoas muito “cultas” que são bem pouco sábias, e pessoas tidas como “ignorantes” que são repletas de sabedoria.
Logo, respondendo ao título do ensaio, se afirma de maneira categórica: Não são necessárias inteligência ou instrução para se experimentar o Divino. Nem tampouco é necessário se pertencer a alguma doutrina específica ou praticar determinados rituais para isso. Ou seja, nem muita ciência nem religião irrefletida. Se ambos extremos de exigência estão errados, daí se depreende também que o embate ciência x religião é inútil e custoso.
Termino por ora com uma citação religiosa antiquíssima que não se prende a dogmas, e uma outra de um dos maiores cientistas e gênios de todos os tempos:
“O caminho que pode ser expresso não é o Caminho constante
O nome que pode ser enunciado não é o Nome constante
Sem-Nome é o princípio do céu e da terra
Com-Nome é a mãe de dez mil coisas” – TAO TE CHING
“Minha religiosidade consiste em uma humilde admiração pelo espírito infinitamente superior que se revela no pouco que nós, com nossa fraca e transitória compreensão, podemos entender da realidade.” – Albert Einstein
Para saber mais, indico:
“A Anatomia de John Gray”, John GRAY, Ed. Record;
“Isto és Tu”, Joseph CAMPBELL, Landy Editora;
“O Mundo Assombrado por Demônios”, Carl SAGAN, Cia. das Letras
Além da “trinca” dos ateus, brilhantemente escritos, mas, felizmente, refutáveis:
“Deus, um Delírio”, Richard DAWKINS, Cia. das Letras
“Carta a uma Nação Cristã”, Sam HARRIS, Cia. das Letras
“deus não é grande”, de Christopher HITCHENS, Ediouro
Na sequência deste ensaio, pretendo analisar brevemente o que nos separa e o que temos em comum em matéria de crenças, para, então, tentar indicar uma “terceira via”, que é aonde minhas reflexões me levaram.
Beto, esse tipo de texto/assunto é fascinante. Ainda mais do jeito como coloca e propõe a discussão, cheio de referências teóricas e lucubrações múltiplas (ao melhor gosto do freguês). E, mais do que prazerosa e surpreendente a cada nova linha, essa discussão também é multifacetada. Parece que, a cada vez que se pensa a esse respeito, que se busca novos referenciais, age-se num processo retroalimentador de reciprocidade entre o quão pouco sabemos e o quão vasto são os caminhos pelos quais essas linhas de raciocínio podem nos levar.
Uma das questões que mais me prendeu após ler seu texto foi justamente o título (que, por curiosidade, vc fala diretamente bem pouco sobre, mas muito indiretamente), e novamente me ficou martelando uma dúvida recorrente em minhas divagações. O que é um gênio? O que faz, de um ser humano, um gênio? O que diferencia esse comportamento? Acho eu – e gostaria de ouvir o que pensa mais especificamente a esse respeito também – que a genialidade reside exatamente na “simplicidade” que prega seu texto ao afirmar que cultura e domínio do saber pouco ou nada tem a ver com a comunhão com o Divino (e uso o termo comunhão em seu sentido mais puro e dissociado de qualquer uma das conotações estritamente religiosas que ele passou a carregar consigo). Pra mim, uma frase do Michelangelo representa exatamente essa questão que você diz sobre simplicidade – e também responde às minhas angústias sobre o comportamento genial. Ele sempre afirmava que o ofício de escultor o fazia libertar a escultura que estava presa no mármore. Ao se deparar com um bloco gigantesco, que outros artistas abandonaram dizendo ser de difícil manuseio, trabalhou durante três anos para criar uma das esculturas mais famosas da história, uma estátua gigante de David, com 4,10 metros de altura. Ao ser perguntado como conseguira tal façanha, disse o italiano: “Eu simplesmente peguei aquele bloco de mármore fui tirando tudo que não era o David”. Diferentemente do pedantismo de Willian Faulkner (o estadunidense, quando perguntado como fazia para escrever, disse “ué, da esquerda para a direita”), por exemplo, Michelangelo, nesta definição, conseguiu, como poucos, esclarecer um pouco do que é esta simplicidade genial. Acho que é um pouco do que quis dizer nesse texto – ao menos é em grande parte ao que o assunto me remeteu. Só resta aguardar as partes seguintes com ansiedade.
Abraço!
Gugu,
Obrigado pelo comentário, esmeradíssimo!
Nossos “links” de raciocínio tem forma muito semelhante.
Este inesgotável assunto tem justamente esta propriedade que vc disse: ser multifacetado. E replicante, aos moldes do Construto de Mandelbrot, que espelha o paradoxo: o muito complexo está dentro do muito simples, e o muito simples está dentro do muito complexo.
Daí que, qualquer “faceta” que peguemos, poderá eventualmente nos revelar o Todo.
Sobre a genialidade, eu me peguei refletindo sobre, quando vi uma reportagem sobre gênios, com caso de uma pessoa que fazia cálculos mentais com números de mais de 20 dígitos mais rápido que uma calculadora, e a explicação dele era que ele enxergava os números como algo não apenas tridimensionais, mas dotados até mesmo de uma personalidade (!), e tudo o que ele fazia era procurar o “encaixe” adequado para dizer o resultado.
Ou seja, da mesma forma que Michelangelo, alguns poucos de nós tem a capacidade de enxergar de uma forma completamente nova um assunto, e desenvolver uma maneira própria de trabalhar um determinado problema.
Aliado a estas faculdades além do normal, concordo contigo que os gênios têm esta simplicidade incutida, ainda que o óbvio deles não seja para nós (caso de gênios que tocam óperas “de ouvido”, por exemplo).
Faltando-nos o “componente da genialidade” dos casos acima, sobra-nos desenvolver a curiosidade e a disposição de procurar novas formas de se ver as coisas e problemas, teoria esta comprovada cientificamente como a que desenvolve o gênio existente em cada um.
E, trazendo de volta ao post, a genialidade, ou mesmo a inteligência acima da média, que, dependendo do modo de aferir, atinge apenas uma parcela mínima da população, é algo particular, da “loteria dos genes”, da mesma forma que outras características. E eu pensava que a comunhão com o Divino não pode depender de nada que não seja comum a todas as pessoas, quiçá todos os seres (já que nós, humanos, por vezes, nos temos excessivamente em alta conta). Isso me levou a procurar o “grosso” do que nos diferencia, em matéria de crenças, bem como o que nos aproxima, e onde será que estamos errando tanto, haja vista tanta guerra, intolerância, ataques e animosidades que há.
Assunto pra sequência deste post… hehehe
Abração, e reitero: marque um “Bar do Zé” para (pseudo)pauta!
Beto
[…] e visitantes de uma quinta dimensão, perspectiva, resenhou o Muito longe de casa, de Ishmael Beah, racionalizou sobre Deus e relacionou Literatura com […]
Há vários caminhos e histórias, cada ser existe uma vida particular e independente dentro do coração, saber guiá-lo ou se responsabilizar pelo o que é nosso de direito, n é obrigação,mas uma missão ,um dom que existe e deve ser explorado com toda a força de vontade , pois como fazer isso?
Será que estamos prontos para a nova lição,para o amadurecimento, será que como faço para ter por meio da força de vontade… Isto já é triunfo habitado em nossos corações, prosseguir e n ter medo é o começo de uma vida fluídica…
Lembrando que n precisamos apressar o rio , ele corre sozinho…