Por Rodrigo Casarin
A tentação de escrever um texto sobre O céu dos suicidas traçando um paralelo entra o Ricardo Lísias, o autor da obra, com outros escritores que se relacionaram de alguma forma com o suicídio é grande. Contudo, há quem já tenha escrito colocando-o ao lado de Enrique Vila-Matas, do bom Suicídios exemplares, ou mostrando como o tema remete a David Foster Wallace, um nome cada vez mais querido pela crítica e que optou por acabar com sua própria vida. São boas abordagens, mas que se aproximam basicamente pela temática.
Penso que uma maneira de ler O céu dos suicidas é procurando entendê-lo dentro da própria obra de Ricardo Lísias e de suas referências (ou auto-referências, como veremos mais adiante). Mas vamos primeiro ao livro.
A história inicia com Ricardo Lísias (o protagonista homônimo do escritor) deixando de ser um colecionador para se tornar um especialista em coleções. É o ser não sendo, o afastamento necessário que devemos ter de um assunto para que possamos tratá-lo com a devida imparcialidade – o que nem sempre acontecerá ao longo da trama.
Aos poucos, a história deixa de falar da vida do protagonista como colecionador e especialista para imergi-lo em duas grandes buscas: a principal é saber o porquê do suicídio de André, amigo de Ricardo; a secundária, que funciona bem para o desenrolar dos fatos, é descobrir qual era a relação do avô de Ricardo com o Oriente Médio, mais precisamente o Líbano, ao longo da década de 1970.
Como já é de se esperar de uma obra que trata do suicídio, uma certa melancolia permeia cada página de O céu dos suicidas. As reflexões sobre a culpa de quem fica vão sendo aos poucos abordadas. O que poderia ter sido feito para que o suicídio fosse evitado? Qual a parcela de culpa de cada um para que a tragédia acontecesse? Onde o amigo estará agora? Ricardo acaba se tornando um colecionador de hipóteses e dados e acontecimentos da vida de André – e apenas os mais importantes merecem destaque, como em qualquer coleção que se preze –, como se isso pudesse manter o amigo vivo, como se com isso continuasse vivendo com o amigo.
Os detalhes do suicídio de André aparecem aos poucos, deixando a impressão que Ricardo não quer encará-los de uma vez. Contudo, em certo ponto da narrativa, o narrador parece tomar coragem e falar definitivamente sobre o que aconteceu, explicitando os pormenores da tragédia. Em contrapartida, conforme a história é contada, Ricardo vai se dando conta da dimensão da persa e a cada capítulo aparenta sentir mais falta do amigo.
Já a busca dos motivos pelos quais o avô trocava cartas com alguém do Líbano acabam por levar o protagonista a uma viagem – aparentemente precipitada; fracassada, com certeza – até o país do Oriente Médio, o que nos remete a outras obras de Lísias, onde o contato com o estrangeiro também é elemento marcante.
Em O livro dos mandarins, Paulo passa pela Inglaterra e imerge na China – chega até a aprender o idioma chinês. Em “Tólia”, conto de Lísias publicado na Granta – Os melhores jovens escritores brasileiros, o personagem principal, que também chama Ricardo, vai parar na Rússia e aprende o russo, outro idioma bastante estranho para nós brasileiros, com uma origem linguistica diferente do português. Em “Concentração”, conto publicado na Granta – Longe daqui, uma edição destinada às narrativas de viagem, Damião, o protagonista, viaja para e na cultura Argentina, muito mais próxima da nossa realidade. Como outros escritores de sua geração, Ricardo é um autor que não confina a ambientação de suas histórias nos limites geográficos do país onde vive. Mas há mais características de O céu dos suicidas que aproximam o livro de outras obras do mesmo autor.
Elementos autobiográficos e o narrador
Elementos autobiográficos permeiam O Céu dos Suicidas. O indicativo mais óbvio disso é o nome do protagonista: Ricardo Lísias, ainda que o autor deixe claro que o personagem principal não é ele. Ricardo – o escritor – recentemente também perdeu um amigo que se suicidou, diz que também passou por uma fase psicologicamente e emocionalmente bastante conturbada após o ocorrido (e quem há de duvidar?), também estudou em Campinas… Há momentos em que as reações do protagonista parecem ser as do próprio autor, como a surpresa com a educação de um policial ou quando o personagem relata que “As melhores coleções sobre material político que observei até hoje comprovam que José Sarney e Fernando Collor combinavam com o papel que lhes coube no picadeiro que foi a presidência do Brasil após a ditadura. Eu me envergonho de sentir saudades daquele tempo”. O posicionamento político de Ricardo escritor refletido no Ricardo personagem é evidente.
Em “Tólia”, como já vimos, o protagonista do conto também se chama Ricardo e os elementos autobiográficos voltam a abundar: a formação acadêmica, a relação com a literatura, os livros que escreveu… Pode ser apenas uma fase, mas, nesses dois exemplos – os seus trabalhos mais recentes se considerarmos apenas as publicações em livros – a ficção de Lísias parece tomar um rumo fortemente baseado em experiências de vida do próprio autor, como também acontece em Meus três Marcelos, conto de 2011 com um protagonista que dá aulas sobre literatura, como Lísias.
Toques da biografia de um escritor estão presentes, em menor ou maior escala, em praticamente qualquer obra de ficção, contudo, ao menos nesses trabalhos citados, Lísias parece criar uma nova história em cima de sua própria história, não utilizar elementos de suas vivências para dar um tom mais realístico ou falar com mais propriedade de algo que ocorre no plano ficcional. É a ficção invadindo a realidade, não o contrário.
E o protagonista de O céu dos suicidas não é útil apenas para que haja uma discussão da interferência da biografia do criador em sua criação. Ricardo Lísias personagem também é uma ótima oportunidade para que retomemos a sempre atual discussão de até onde podemos confiar no narrador de uma história.
Ricardo Lísias personagem é alguém que passa por surtos repentinos que beiram a inverossimilhança. Em meio a uma conversa, pode mandar alguém tomar no cu ou se foder de uma hora para a outra, apenas porque o interlocutor diz algo que não lhe agrada ou que não vai de encontro às suas expectativas. Além disso, o protagonista – também narrador – não é dos mais confiáveis. “Não me recordo como saí do apartamento da desgraça. Desde que meu grande amigo se matou, tenho problemas de memória. De repente, na lembrança que consigo recuperar, vejo-me na rua de novo”, revela. Ora, se temos aí um ser que passa por surtos – mostrando um distúrbio ou, ao menos, um indiscutível momento de forte perturbação psicológica – aliado a uma memória falha, como podemos acreditar nas palavras que ele diz?
Em outro momento de forte carga emocional, novo exemplo. Ricardo fecha um capítulo com um lapidar: “Não vou conseguir terminar este capítulo”, mostrando que está completamente envolvido com a história – envolvido a ponto de ser influenciado por ela, de ser até refém dela, mostrando que não possui um distanciamento necessário para encará-la como isenção, tal qual um especialista em coleções que não se afasta de suas próprias coleções. Esse é um dos grandes trunfos do livro, deixar para que o leitor decida se acredita ou não em tudo aquilo que vem sendo dito. Alguns acontecimentos são irrefutáveis – não há como negar o suicídio, por exemplo – mas outros são questionáveis – em alguns momentos, será que tamanha falta de educação e respeito realmente aconteceram daquela maneira?
Linguagem e beleza
Em O livro dos mandarins, romance publicado em 2009, Ricardo Lísias utiliza a linguagem com radicalismo. São comuns as excessivas repetições de frases e ideias em parágrafos próximos ou até em um mesmo parágrafo. Já em O céu dos suicidas, o recurso é usado com muito mais parcimônia, como no seguinte trecho: “Nesse mesmo dia, recebi uma ligação. Ricardo, o André se enforcou. Ricardo, a polícia achou o corpo do André enforcado. Já faz alguns dias. Ricardo, o seu amigo. Ricardo, você, Ricardo, o André, Ricardo. Enforcado, Ricardo. O André se enforcou, Ricardo”, fazendo com que as repetições e as frases incompletas deixem a impressão de que estamos vivendo a confusão mental que acontece na cabeça de Ricardo ao receber a notícia do suicídio do amigo.
Por outro lado, em O céu dos suicidas um toque de radicalismo está no formato dos capítulos, sempre curtos, ocupando não mais de uma página e meia, como se tudo acontecesse em flashs. O resultado da comparação mostra um escritor mais maduro, mais feliz nas experimentações, que consegue atingir uma estética muito mais bela com a linguagem e os recursos utilizados.
E por falar em beleza, os momentos mais belos de O céu dos suicidas são aqueles em que Ricardo busca saber para onde a alma de André poderá ter ido.
As religiões são implacáveis com os suicidas, praticamente todas elas os condenam veementemente. Nos templos, igrejas, sinagogas ou qualquer outra espécie de casa de Deus, não há consolo, afago, clemência e nem piedade com aqueles que optam por tirar suas próprias vidas. Nem com estes e nem com os que ficam. A dor e, principalmente, a raiva do protagonista após cada acolhimento frustrado são latentes. Ao procurar o psiquiatra, que também em nada lhe ajuda, o narrador se abre “Um dos nossos amigos, um cara muito espiritual, acho que a palavra é essa, espiritual, disse que em todas as religiões, ou praticamente em todas, os suicidas sofrem muito e na maior parte das vezes não vão para o céu”.
Em uma das buscas por alguma palavra que lhe conforte, Ricardo acaba sendo – não sem motivo – espancado por um grupo de espíritas. A surra é tamanha que vai parar no hospital e, após receber os primeiros tratamentos, é de um médico que ouve o consolo que tanto procurava. Em cenas breves e diálogos sucintos, mas belos, o doutor lhe ensina a rezar para acalmar a angustia, conversa com Ricardo sobre Deus, diz o que o personagem tanto procurou ouvir: “Seu amigo foi direto para o céu, sem nenhum sofrimento”.
Na obra, Médico é escrito assim, com m maiúsculo, da mesma maneira que se convencionou escrever Deus. Com esse recurso, de certa forma Lísias coloca o doutor no mesmo patamar do Todo-Poderoso, mas não por acaso. É de uma ironia, sensibilidade e beleza imensa o personagem, após ouvir palavras que muito lhe doíam dos religiosos, encontrar o afago nos dizeres de um médico, um dos profissionais mais ligados à ciência e que levam a fama de se sentirem mesmo deuses, mas pelas intervenções que podem fazer no ser humano, por poderem salvar vidas com atos físicos, não com palavras. Palavras essas que encaminham Ricardo de volta a uma vida um pouco mais nos eixos.
Esse último aspecto de O céu dos suicidas, o Médico fazendo aquilo que Deus não conseguiu fazer por causa de seus representantes na Terra, é um daqueles momentos que tocam profundamente o leitor mais atento e que está realmente envolvido com a obra. É um daqueles momentos que nos fazem entender porque a arte é essencial para a vida.
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Ricardo Lísias já foi entrevistado aqui no Canto dos Livros, confira clicando aqui.
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[…] livro O céu dos suicidas resenhado aqui por dois integrantes do blog (esta é a minha resenha e esta outra, do Rodrigo Casarin) está se especializando em confundir. Você lê achando que já sabe o que irá encontrar, ligado […]
[…] Não é fácil separar personagens literários de autores, para não dizer impossível: a dimensão da literatura abarca, extrapola e reinventa os fatos, refletindo-os com uma lente difusa, mesmo quando a intenção é ter um tom autobiográfico. De qualquer forma, a polêmica sobre isto vai muito longe (a discussão sobre os livros de Ricardo Lísias abordam o tema com maestria; leia as resenhas aqui já publicadas, sobre o último romance, Divórcio, e sobre O céu dos Suicidas, aqui e aqui). […]