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Posts Tagged ‘Facebook’

Por João Dutra

WhatsappNos últimos anos, novas tecnologias têm mudado de maneira evidente a forma como nos comunicamos.

Aqui no Canto, já discutimos como o Twitter pauta seus usuários a escreverem usando métricas e regras de etiqueta, comparáveis aos poetas clássicos, que adotavam diretrizes específicas em sua produção literária.

Também não é difícil constatar que o aumento do uso do Facebook parece ter aumentado proporcionalmente o uso de termos como “curtir”, “compartilhar” e “postar” em nosso dia-a-dia no mundo real.

Outro fenômeno, ao qual quero dar destaque hoje, é o das abreviações que foram inventadas, por assim dizer, na comunicação online. Em inglês, essas abreviações recebem o nome de “texting”, por conta da origem nas mensagens de texto, ou “text messages”.

Quem nunca usou o “pq” quando deveria usar “por que” ou “vc” ao invés de “você” ao conversar com um amigo na internet? Trata-se de um novo vocabulário global, criado e dominado pelos adolescentes, os principais adotantes dos meios digitais.

Vítima de muitas críticas, essa linguagem tem se intensificado com a popularização de aplicativos como o WhatsApp. Há quem diga que temos nos tornado preguiçosos economizando vogais ou mesmo perdendo o apreço pela escrita formal.

A despeito das acusações, o professor John McWhorter, Ph.D. em linguística pela Universidade de Stanford, faz uma defesa primorosa dessa nova forma de diálogo, em sua palestra intitulada espirituosamente de “Txtng is killing language. JK!!!”.

No discurso, John aponta que o novo vocabulário surgiu da necessidade de agilidade na comunicação escrita, disseminada inicialmente com as mensagens de texto via SMS. Sua massificação fez emergirem as críticas daqueles que o consideravam uma morte gradual da linguagem.

A partir daí, ele retoma diversos momentos históricos, em que o discurso falado considerado culto era aquele próximo dos discursos políticos feitos para grandes massas, repletos de termos pouco compreensíveis ao grande público, mas que atribuíam poder de persuasão e certo status superior aos que falavam.

Explica-se que, nos últimos anos, houve uma milagrosa inversão: ao invés de buscarmos falar como se escreve, passamos a escrever como se fala. As abreviações do texting têm aí seu valor: a busca pela comunicação eficaz. Num mundo que exige agilidade, os comunicadores se adaptaram e criaram uma nova linguagem.

Nesse sentido, os adolescentes, líderes na elaboração desse novo conteúdo não deveriam ser repreendidos, mas compreendidos. E, na minha opinião, exaltados, como autores de um mecanismo que facilita a comunicação.

Ainda que haja uma série de críticas necessárias a essa forma de escrita – e há realmente muitas, é preciso ressaltar –, isso não deixa de ser uma inovação. Como diz o próprio linguista, uma novidade que impressiona.

Então, da próxima vez que receber uma notificação com uma mensagem via WhatsApp perguntando “Td bem com vc?”, saiba que está vivenciando uma inovação sem precedentes. Um milagre da comunicação humana. Amém!

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Por Alberto Nannini

capa_a_casa_dos_naufragosCuba. A pequena ilha, emblemática resistência de um regime alternativo, está sempre nos noticiários, bem como seu governante, o ditador Fidel Castro, ultimamente afastado.

Li duas obras ligadas ao país: A casa dos náufragos, de Guillermo Rosales, e Cuba – minha revolução, de Inverna Lockpez e Dean Haspiel. Ambas são relatos de cubanos exilados, e são bastante politizadas, no sentido de passar impressões sobre o regime por gente que o viveu na pele.

Meu plano original era abordar algumas particularidades do regime castrista por um olhar leigo e desapaixonado, interpretando o discurso dos autores destas obras. Porém, tive que mudar a abordagem. A primeira obra era tão rica e suscitava tantos questionamentos e reflexões que seria um desperdício utilizá-la apenas para falar sobre Cuba.

Mergulhar na loucura

Comprei A casa dos náufragos sem qualquer indicação, e me surpreendi. Magnífico.

A orelha do livro diz:

Exilado em Miami, o escritor cubano William Figueras é internado pela família em um asilo destinado a inválidos e doentes mentais. Sofrendo de alucinações auditivas episódicas e comportamento paranoico não violento, o personagem está em posição privilegiada em relação aos outros pacientes. ‘Já te observei bastante’, diz o abjeto zelador da instituição, ‘e você não está louco’. O que a princípio poderia ser uma vantagem termina por aprofundar sua dor.

Capacitado a compreender o estado de miséria humana que o rodeia, desnutrido, perturbado e sem perspectivas, o escritor pressente a morte. Egresso de uma Cuba mergulhada na ideologia e na censura, ele se situa no presente como um náufrago que nem pertence ao território que habita nem sente falta do que abandonou.

A exemplo de sua ficção, Guillermo Rosales também deixou Havana e se mudou para Miami em 1979, onde permaneceu até a morte, em 1993. Membro do círculo intelectual cubano que se transferiu para os Estados Unidos, foi lido pela comunidade hispanófona de Miami, mas permaneceu desconhecido do grande público, já que A casa dos náufragos só foi traduzido para o inglês nos anos 2000.

Curto (apenas 122 páginas), mas poderoso. Uma história humana e pungente. Fica na memória, por seus muitos méritos. E faz pensar em muitas coisas.

Tons autobiográficos

Não é fácil separar personagens literários de autores, para não dizer impossível: a dimensão da literatura abarca, extrapola e reinventa os fatos, refletindo-os com uma lente difusa, mesmo quando a intenção é ter um tom autobiográfico. De qualquer forma, a polêmica sobre isto vai muito longe (a discussão sobre os livros de Ricardo Lísias abordam o tema com maestria; leia as resenhas aqui já publicadas, sobre o último romance, Divórcio, e sobre O céu dos Suicidas, aqui e aqui).

Mas algumas características do livro de Guillermo Rosales empurram para uma leitura de notas autobiográficas: segundo consta, o escritor tinha esquizofrenia, e frequentou diversas instituições psiquiátricas ao longo da vida.

Além disso, o protagonista do livro, William, conta de sua relação com o regime cubano e das leituras que fez ao longo da vida, também muito semelhantes à história do próprio autor: “’Este é meu fim’, declara ‘eu, que li Proust completo quando tinha quinze anos, Joyce, Miller, Sartre, Hemingway, Scott Fitzgerald, Albee, Ionesco, Beckett. Que vivi vinte anos numa revolução, sendo carrasco, testemunha, vítima’”.

De qualquer maneira, a força do livro prescinde completamente de que se determine o quanto há de autobiografia nele. A história comove e arrasta, no abismo de desalento que sempre acompanha a loucura, mesmo quando alguma esperança vã teima em acender.

Por isso, o título A casa dos náufragos é muito apropriado, e até a edição do livro e a capa dele – uma pequena casa amarela flutuando num fundo preto e azul escuro, que evoca a imensidão do mar – remete ao tipo de leitura que vai se mergulhar, sem nunca deixar de ser uma metáfora mais abrangente do exílio, da solidão e da crueldade.

imagem_loucoNaufragando…

A trama começa com Willian sendo levado pela tia à “boarding home”, espécie de abrigo para desvalidos, ou um hospício disfarçado. Lá, ele vai perceber como serão as coisas, e verá que a lei do mais forte é a regra única, e entenderá mais sobre a miséria – sua e a dos outros – do que jamais imaginou.

Com o tempo, o protagonista vai se acomodando à situação, e passa a entender o posto que ocupa. Ele percebe que a desesperança ali é a regra, inclusive para os opressores, como o zelador ladrão e abusador, ou o dono, que acolhe “hóspedes” de olho nos cheques de pagamento que recebe do governo para cuidá-los. Um mero negócio, vil como qualquer outro.

Um dia, o já razoavelmente adaptado Willian vê a chegada de uma nova “hóspede”, que concorda com tudo o que dizem. Ele e todos os outros “testam” a novata, de maneiras terríveis. Mas ele começa a dedicar maior atenção a ela, e se permite ter alguma esperança. E a convida para um plano – fugir do asilo e recomeçar a vida, os dois se lançando ao mundo. E de novo a fuga de Cuba se repete aqui, metaforicamente: se lançam, de forma precária, contra outra imensidão de mar escuro – o mundo desconhecido da “normalidade”, longe de surtos e medicações, sendo um a boia do outro. Uma fuga em múltiplos níveis: exilados fugindo duas vezes da exploração, da loucura e da desesperança.

Pode dar certo, eles não são mais loucos que a média que se via do lado de fora. Qual será o desfecho desta tentativa desesperada? Da derradeira chance, do último suspiro de sanidade e de normalidade para dois excluídos? Vale a pena ler e conferir.

Historicamente crível

A história é relativamente simples, mas não sei se seria possível escrevê-la sem algum conhecimento de causa. Cabe relembrar que o autor esteve internado diversas vezes. Tudo isso vai se insinuando, após a leitura, quando se considera o quanto há de Guillermo em Willian.

Voltando à ficção, outro componente interessante na trajetória do protagonista é o quanto ele se mimetiza aos loucos, tornando-se tão brutal quanto for necessário. Presumo que este fato, num caso real, seja uma imposição, e não uma escolha.

Então, supondo que haja um determinado tanto de autobiografia: poucos discordariam que estas partes – as desabonadoras – são as historicamente mais críveis, porque todos “editam” suas facetas mais obscuras a seu bel prazer, quando relatam algo de si mesmos (Facebook, alguém?). Ou seja, haja o que houver de tons autobiográficos no livro, é brilhante que ele demonstre conhecer tão bem a loucura, e conte os deslizes que cometeu, ao invés de apenas retratar o sentimento de inadequação de estar ali. Ao contrário, em algum momento, ele passa a pertencer ao lugar, e sempre há uma luta (literalmente) insana, que acontece em diversas frentes.

O pequeno romance de Guillermo é notável pela amplitude de leituras que permite, e não se presta a uma só interpretação.

Análise prometida para breve…

Das várias maneiras que se poderia aprofundar esta obra, duas se insinuam: sobre a loucura em si e sobre a fuga.

Como já disse, o plano inicial era abordar, como leigo que sou, um pouco do rico material de discussão sobre o regime comunista de Cuba e sobre algumas polêmicas que sempre o cercaram. Com a manifestação dos autores das duas obras citadas, ambos exilados da ilha, eu pretendia analisar alguns pontos da ditadura castrista, o que ela trouxe e o que custou.

Porém, deixarei esta abordagem para uma próxima resenha. Nesta, terei que priorizar a abordagem sobre a loucura, por causa de uma obra lida anteriormente.

holocausto_brasileiro_capa… e pequeno parênteses sobre a loucura

A obra referida é o livro reportagem de Daniela Arbex: Holocausto brasileiro, já brilhantemente resenhado pelo Rodrigo Casarin aqui.

Ler Holocausto brasileiro é uma viagem a um mundo de terror pior que o pesadelo mais insistente. Saber que ele é uma reportagem, que foi escrito mediante a aferição de fatos, é estarrecedor. Se no livro de Guillermo sobra lirismo e beleza literária, no de Daniela a crueza dos fatos te atinge como um soco no estômago com luva de ferro. Se a verdade se obnubila no primeiro, e nos perguntamos o quanto daquela história magnífica e daqueles personagens foram reais, no de Daniela, ficamos sabendo do desfecho de alguns, e da tristeza que prevaleceu em suas vidas.

É impressionante como as obras se acrescentam. Ler A casa dos náufragos é como conseguir acessar a narrativa autoral, feita por um interno que fosse um romancista excelente, de uma das milhares de histórias que aconteceram em Colônia, o hospício retratado em Holocausto brasileiro. E ler Holocausto é entender profundamente a que tipo de situação Guillermo se referiu, em seus rudimentos – porque a vida dos desgraçados em Colônia era ainda bem pior que a ficção.

Pensar nisso dá vertigem.

O que é loucura, afinal?

A loucura não é um ponto pacífico. Eminentes psiquiatras e estudiosos buscam um consenso. Há bem pouco tempo, as perturbações mentais, por mais diversas que fossem, costumavam ser categorizadas do mesmo jeito. Conforme diz Charles Pépin, autor francês, sobre o louco, “Ontem percebido como mensageiro divino, hoje como doente mental, não há uma verdade acerca dele; a maneira como o consideramos varia segundo os sistemas de pensamento e poder”. Daniela Arbex endossa estes dizeres em seu livro, relatando que entre os internados, havia esquizofrênicos, dementes, mas também pessoas apenas tímidas ou caladas, e muitos sem qualquer anomalia digna de nota – apenas pessoas indesejadas (ou inconvenientes para alguns poderosos). Este estigma de loucura para aqueles que se quer excluir é muito importante.

Possivelmente, foi o questionamento deste estigma que levou o psiquiatra húngaro Thomas Szasz a abalar os alicerces da psicologia com sua obra “O mito da doença mental”. Na obra, grosso modo, ele defende que “doença mental” é uma metáfora. As mentes podem estar “doentes” apenas no sentido em que as brincadeiras estão doentes ou as economias estão doentes. Ou seja, o estigma de doente mental se baseia em uma teoria e não em um fato, semelhante a acusar alguém de estar possuído pelo demônio, por exemplo.

A razão da perpetuação deste rótulo que remanesce até hoje seriam interesses – excluir pessoas indesejadas, diferentes e fora dos padrões. Conforme o verbete sobre Szasz no Wikipédia diz, “os diagnósticos psiquiátricos estigmatizam rótulos, construídos à semelhança dos diagnósticos médicos e aplicados a pessoas cujo comportamento incomoda e ofende a outros”.

Para Szasz, a doença mental é um instrumento de controle e exclusão, e não tem sequer uma pequena parte da precisão que reivindica.

Mesmo porque, a normalidade também é um conceito difuso, e talvez nem mesmo muito desejável. Quase sempre, são os “fora-do-normal” que criam e questionam. Mas a normalidade se torna “desejável”, no sentido em que, uma vez estabelecido um comportamento normal, e contanto que as pessoas e suas reações estejam dentro dele, o status quo permanece: poder concentrado nas mãos de pouquíssimos, conformismo e impotência para a imensa maioria. Este ordenamento, tão antigo quanto as sociedades, se impõe em qualquer cultura. Os “fora da curva” serão categorizados: a doença mental, quando acomete a uma pessoa rica, a torna apenas “excêntrica”; se for pobre, a torna, além de maluca, perigosa, o que impõe que ela precisa ser contida, seja do jeito que for.

Como lidar com os loucos

O hospício de Colônia, de história tão recente, é mais apavorante que qualquer ficção. O “””consolo”””, bem entre aspas e bem ironicamente, é que o tratamento de doentes mentais e excluídos pior do que a animais não é exclusividade do Brasil (lugar onde sabemos bem o quanto o dinheiro, o poder e a influência fazem diferença); barbarizar os loucos era uma espécie de regra. O hospital Willowbrook State School, em Nova Iorque, nos anos 60, tinha mais de 6.000 internos que andavam nus, eram espancados e abusados pelos cuidadores.

Ou seja, assume-se que uma desordem mental tira a humanidade da pessoa. Mesmo que não haja uma maneira 100% segura de diagnosticar esta desordem, e, principalmente, que tanto o diagnóstico como o remédio proposto sejam radicalmente influenciados pela posição social que o doente ocupa. Se for um bilionário, talvez, no máximo, sofra processos de interdição dos herdeiros (será que, talvez, quem sabe, mais preocupados com a saúde do que com a dilapidação do patrimônio?); mas, se for um pobre, antigamente, seria deportado, para depósitos de pessoas. Hoje em dia, seria largado à própria sorte.

Loucas inconsistências

De qualquer forma, o assunto é muito amplo até para especialistas, mas algumas considerações podem ser feitas.

O psiquiatra escocês Ronald David Laing (1927 – 1989) pesquisou a esquizofrenia e, segundo ele, a doença é uma reação compreensível a situações impossíveis de serem vividas. Ele procurava padrões na fala dos esquizofrênicos, e questionava a validade do diagnóstico psiquiátrico para desordens mentais, já que estes são baseados no comportamento do “doente”.

Laing apontou o problema de se diagnosticar uma conduta mental a base de um comportamento, mas tratá-la de forma biológica, com remédios. A medicação interfere na capacidade de pensar, e por conseguinte, na cura.

É verdade que a precisão dos diagnósticos e o conhecimento sobre as desordens mentais cresceu, mas outro fator acompanhou também este crescimento: o comércio em cima das doenças, puxado pela indústria de medicamentos. E isto se liga a um outro problema bem complexo: a indústria do diagnóstico.

Interesses comerciais

Lou Marinoff, em seu livro Pergunte a Platão, falou sobre a indústria do diagnóstico: segundo ele, para que profissionais como psiquiatras e psicólogos sejam ressarcidos pelos planos de saúde, eles tem que diagnosticar algo. Assim, se construiu uma nação inteira de doentes – qualquer pessoa, qualquer uma mesmo, pode ter alguma disfunção mental diagnosticada. Basta que seja humana, e que se sinta triste ou angustiada de vez em quando, para ter sua CID (código internacional de doença) no seu atestado, e possivelmente, com uma receita prescrevendo alguma medicação acompanhando.

Daí que , embora os avanços médicos sejam evidentes, outros interesses continuam a tornar a loucura algo nebuloso.

Então, depois de todas estas considerações, há que se perguntar: apesar das inconsistências no diagnóstico da loucura, apesar do uso dela como desculpa para exclusão de indesejáveis, apesar do histórico pavoroso de massacre dos doentes mentais pobres, e apesar do comércio e dos interesses financeiros que existem em cima disso, será que, pelo menos, os médicos sabem diferenciar os realmente perturbados dos sãos?

cartun_loucoComo distinguir a loucura da sanidade?

Se qualquer um pode ser diagnosticado como vítima de alguma transtorno mental, como distinguir os loucos dos normais?

Bom, o psicólogo americano David Rosenhan fez um experimento clássico a respeito. Se os psiquiatras dizem que transtornos mentais podem ser diagnosticados de modo preciso com base em sintomas, e assim serem categorizados como doenças, eles deveriam saber diferenciar, por estes mesmos critérios, os loucos dos sãos.

Só que não. Não se consegue diferenciar os loucos dos sãos nos hospitais psiquiátricos. O estudo de Rosenhan reuniu oito pessoas sãs (ele próprio no meio), para tentar internação em instituições psiquiátricas. Orientados a dizer sobre vozes que ouviam, todos os pacientes foram internados, com diagnóstico de esquizofrenia, embora não apresentassem sintomas da doença.

Uma vez internados, eles se comportaram de maneira absolutamente normal. O que quer que fizessem era interpretado como sintoma da doença. Para um dia inteiro de internação, o contato com os médicos era de cerca de sete minutos diários. Os únicos a perceberem o embuste foram alguns dos outros internos – supostamente loucos.

O pesquisador divulgou o estudo e informou que enviaria, nos próximos meses, um ou mais pseudopacientes, como eles foram, para tentar novamente a internação. Após conhecerem o estudo e avisados, nos hospitais da época, de 193 novos internos autênticos, 41 foram identificados como suspeitos por pelo menos um membro da equipe da instituição, e 23 como possíveis pseudopacientes por pelo menos um psiquiatra.

O chato é que Rosenhan não enviou ninguém.

Distinções falhas

Ou seja, a loucura, em grande medida, é uma cisma – por uma normalidade e por uma padronização que muda ao sabor dos costumes e interesses. Houve, sim, progressos: há desordens mentais mais ou menos compreendidas. Desgraçadamente para alguns loucos antigos, ficava ao sabor da história e da cultura local se aquele atributo deles, por exemplo, de ouvir vozes, era um dom – o que poderia torná-lo um profeta – ou uma maldição – o que o tornaria um endemoniado. O matemático americano John Nash, autor da Teoria dos Jogos, era esquizofrênico, e poderia ter sido morto, há apenas… ia dizer algumas décadas, mas me lembrei que Colônia e Willowbrook são seus contemporâneos.

Ou seja, é bastante razoável supor que pessoas que poderiam contribuir para o progresso da humanidade foram empilhadas e sacrificadas, apenas porque não as entendiam, porque elas eram muito pobres, ou ainda, porque eram muito tímidas ou pouco articuladas. Ou qualquer combinação destes fatores.

Evidentemente, isto não significa que pessoas que não pudessem contribuir de qualquer forma tivessem que ser sacrificadas. Limitadas ou não, eram pessoas. E a vida delas, tão sagrada quanto a de qualquer “normal”.

Em grande medida, aliás, eles, que eram simples de coração e reduzidos em suas capacidades, precisavam ainda mais da ajuda dos outros. É o mesmo raciocínio que leva a absoluta maioria de pessoas a ter ojeriza a maus tratos com animais – seres meio dependentes, com limitações, puros, sem maldades ou interesses. Não sei precisar em porcentagens, mas deduzo que a maioria dos deficientes mentais sejam assim. Às vezes, pode nos enojar o quanto eles se reduzem aos instintos básicos/fisiológicos, e o quanto lhes falta pudores. Como comem, copulam e se sujam como animais; mas esquecemos que pudores são construções sociais mutáveis, e andar nu, por exemplo, é aceito em algumas comunidades. E pior, esquecemos que, ao amontoá-los como bichos, lhes tiramos qualquer dignidade que poderiam preservar, e só lhes restará mesmo o instinto de sobrevivência.

Ainda em defesa da inofensividade da maioria dos loucos, me parece que os perigosos e violentos da nossa sociedade gozam perfeitamente de suas capacidades mentais – lhes falta empatia e um tanto de humanidade, e lhes sobra egoísmo e ganância. Criminosos, de maneira geral, não são loucos. Claro, há aqueles que têm surtos psicóticos, que causam massacres. Mas o que há de loucura num sequestrador, que arquiteta um plano cuidadoso para levar sua vítima, ter seu resgate e não ser pego?

Loucura moderna

Recentemente, mais um garoto recalcado (Elliot Rodgers), perturbado num nível profundo, massacrou seis pessoas, nos EUA, por não ser reconhecido, e se sentir inferiorizado. Qual o nível de loucura disso? Internos são mais loucos e mais perigosos que alguém assim?

E sobre o norueguês Anders Behring Breivik, que planejou um atentado por anos, e rumou para uma ilha e massacrou perto de 70 inocentes? E sobre Columbine, e mesmo do brasileiro Wellington Menezes, que imitou a “moda” americana de massacres em escola e assassinou 12 (o massacre de Realengo)?

Como diagnosticar estes loucos modernos? O que fazer?

holocausto_Não sei, mas sei o que não fazer: não se pode colocá-los em nada que se assemelhe a um hospício antigo. Argumentos em contrário, por mais persuasivos que sejam, especialmente para quem perdeu alguém em qualquer um dos massacres, reabrem a exceção que criaram distorções como Colônia e Willowbrook (que aliás, à sua época, não eram exceções, mas a regra); ou legitimam asilos e abrigos como comércios vis que nada tem de humanos, e que visam apenas lucro, como o relatado por Guillermo Rosales em seu livro.

Retroceder e permitir a volta de colônias ou a legitimação de “boarding homes” (hospícios particulares) são caminhos terríveis, que já deveriam ter sido totalmente abolidos.

A sombra da loucura continuará a afetar as sociedades, mas precisamos progredir no tratamento dos doentes. Este é um problema de dimensões tão profundas e tão controverso que parece pacífico que não haja uma solução unânime e sem riscos. Desenvolver medicações para tratar doentes, além do problema do comércio de fármacos e da indústria de diagnósticos, tende a robotizar as pessoas. Interná-las, quase sempre, é apenas excluí-las do convívio – mesma alternativa que se pensa para outros indesejáveis, como viciados, mendigos e criminosos de menor potencial ofensivo.

Assumo que não consigo pensar, nem ingenuamente, em algo que pudesse funcionar, neste caso. Talvez uma série de ações conjuntas e ordenadas e também uma mudança social. Mas repito: hospícios devem ser peças de museu (de horrores, no caso).

A balada do louco

Concluindo para ligar todo o exposto à obra de Guillermo Rosales, muitos loucos tem visão mais sã e verdadeira da sociedade que muitos ditos normais. Muitos normais são apenas bovinamente conformados, e nunca utilizaram a capacidade oculta que carregam de questionar a ordem das coisas – ordem esta que prioriza outros deu$e$ em detrimento da compaixão pelos semelhantes.

A loucura pode ser uma face da genialidade, e nem todos que as cometem são necessariamente loucos – aliás, segundo o psicólogo americano Elliot Aronson, qualquer pessoa, em determinadas situações, pode fazer algo que seja considerado insensato.

O autor de A casa dos náufragos era considerado insano, por alguns parâmetros, mas entregou uma obra de rara sensibilidade. Seja para refletir sobre a loucura, seja para pensar sobre as fugas, ou para apreciar uma peça de literatura magnífica, a indico.

Acho que Rosales endossaria a clássica música “Balada do louco”, do grupo brasileiros Os Mutantes, que intitula esta resenha. Especialmente o verso:

Eu juro que é melhor

Não ser o normal

Se eu posso pensar que Deus sou eu.

 

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Por João Dutra

Avicii-Hey-Brother-single-coverSegundo dados do Facebook, cada brasileiro tem, em média, 208 amigos na rede social. Há um filósofo grego, precursor do conceito de amizade, que ficaria surpreso em saber disso. Esse cara é Aristóteles.

Aristóteles viveu por volta de 300 a.c. e foi aluno de Platão, pensador mais influente da história. Também foi tutor de Alexandre, o Grande, maior conquistador do mundo antigo.

Em sua obra mais famosa, Ética a Nicômaco, busca nos ensinar o que uma vida deveria ter para ser boa. Dois dos dez capítulos desse livro são dedicados ao amor, um tipo bem específico de amor.

No meu último texto aqui no blog, refletimos sobre o amor segundo a perspectiva do seu mestre, Platão. Para este, amor é Eros, Eros é desejo e desejo é energia para buscar o que nos falta. Simples assim.

Para Aristóteles, amar não tem nada a ver com a falta. Pelo contrário, a presença é condição de sua existência. Assim, surge o conceito de amor movido pela alegria, ao qual o filósofo atribuiu o nome de Philia.

Philia: amar o que se tem

Nas palavras do autor, Philia é “querer para alguém o que se pensa de bom, por sua causa e não pelas nossas próprias, e assim estar inclinado, tanto tempo quanto quiser fazer tais coisas por ele”.

Hoje, chamaríamos essa relação de amizade. Não sei para você, mas para mim essas palavras são música para os ouvidos. Quem conta e canta muito bem essa história é o Avicii, na letra inspiradora de “Hey Brother”

Irmãos que declaram a força de seu laço, a despeito de qualquer tipo de adversidade imposta pelo mundo.

Oh, if the sky comes falling down, for you

there’s nothing in this world I wouldn’t do.

Em oposição a Eros, intenso e fugaz, Philia é paciente e resistente. A pessoa em si, aquela que amamos, é razão da alegria. Por isso, vale a dedicação. Ainda que o céu caia, a relação permanece de pé.

Aristóteles aponta elementos necessários ao que acredita ser o amor verdadeiro, virtuoso, os quais Avicii tratou de transformar em versos na canção.

What if I fall from home?

Oh brother I will hear you call.

What if I lose it all?

Oh sister I will help you out!

Se há um gene que não pode faltar no DNA de Philia é o da reciprocidade. O amor, neste caso, se faz quando o sentimento é recíproco. Você me alegra, eu te alegro.

Necessário aqui esclarecer melhor, para evitar mal-entendidos: Aristóteles é didático ao explicar que esse laço não pode se dar com base em interesses. A linha pode parecer tênue entre Philia e uma relação qualquer, mas não é.

Philia não depende da utilidade do outro, ou da medida em que o outro me causa prazer. Philia é a admiração pela natureza alheia. Nas palavras de Cláudio Montoto, em Amor: Eterna Metáfora, o amado é um “outro si mesmo”. Amo alguém pelo que é. Isso me basta. E me alegra. Ponto final.

Sentimento que cresce com o tempo

Além da reciprocidade, Aristóteles condiciona seu amor ao tempo. Novamente em oposição a Eros, cujo desejo se consome a cada segundo, Philia cresce e só se realiza plenamente depois de maduro, por assim dizer.

Hey brother, there’s an endless road to rediscover

Essa redescoberta de uma estrada sem fim conduz amante e amado a uma jornada de crescimento mútuo, a uma convivência de aprofundamento no outro. O destino é vida boa, vida alegre, aquela que vale a pena, ao que o filósofo chama de eudaimonia, a palavra grega para felicidade.

Aristóteles provavelmente duvidaria de quem afirmasse que tem 208 amigos no Facebook. Diria que esses 208 não o representam, ou ao menos não representam sua crença sobre o amor. Philia é para poucos. Poucos e bons.

Amar um outro desconhecido, por vezes tão diferente de nós, era uma ideia inconcebível na Grécia Antiga. Essa subversão, esse conceito de amor pelo próximo, qualquer próximo, de qualquer cor, credo ou classe social, surge mais tarde.

O defensor dessa ideia é, para mim, o maior revolucionário da história do pensamento. Um autêntico transgressor das leis da época, que não se submeteu a tradições, enfrentou um império e por isso mesmo, sofreu a pior das condenações.

Vamos refletir sobre essa inovadora forma de amar, ao som do pop rock do U2, no próximo post do blog, o último dessa trilogia sobre o tema.

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Por João Dutra

reproduçãoEm entrevista sobre o lançamento de seu novo livro, o escritor Bernardo Carvalho fez críticas ao uso banal da internet.

“[…] E há o narcisismo, a exposição no Facebook, que pega um ponto central. É perverso, a conquista vai em pontos frágeis da psique, você se sente uma celebridade. Do ponto de vista político, você acha que está usando, mas está sendo usado. O livro expressa esse desconforto.”

O tema da comunicação digital faz parte da narrativa de sua nova obra, Reprodução. O personagem central da história é um rapaz chinês que tem como característica marcante a rotina de comentários ofensivos, preconceituosos e anônimos em blogs da internet, além de uma sabedoria predominantemente gerada por artigos da Wikipédia.

Em sua crítica, o autor cita também o comportamento narcísico dos usuários de redes sociais. De fato, a vida editada, na qual só o lado positivo é exposto ao público tem sido motivo de debates e reflexões sob diversas óticas.

A despeito da mediação tecnológica, a questão da supressão de aspectos negativos da vida cotidiana não é novidade. Fernando Pessoa dá voz a Álvaro de Campos, que, em “Poema em Linha Reta”, de forma irônica critica a sociedade que exalta apenas as virtudes de seus membros e causa angústia a ele próprio, simples mortal, na infinidade de seus defeitos e limitações:

“Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; […]”

A angústia apontada pelo poeta se ajuda a explicar um elemento sobressalente da cultura da comunicação digital e, citada por Bernardo Carvalho: a limitação da compreensão da vida sob o ponto de vista do que é compartilhado na internet.

Nesse sentido, é essencial a reflexão sobre o papel da literatura como provedora clássica de críticas que ajudam a dar sentido à nossa existência. Tanto a obra do poeta português, quanto do escritor contemporâneo, atendem ao chamado de compreensão do cenário sócio-político da época em que vivem.

Como aponta o escritor Ricardo Azevedo, ganhador de cinco prêmios Jabuti, a literatura assume, como propósito, a responsabilidade por preencher a falta primordial de sentido do indivíduo. Em mesa da Flip de 2013, ele comenta:

“A literatura e a ficção são alguns dos inventos que o homem fez para tentar preencher as lacunas, as perguntas, as angústias, os vazios.”

Enquanto surgem novas formas de tecnologia e mediação da comunicação, potencializando aspectos perenes da condição humana, é essencial retomar a literatura como porto seguro para as angústias que vivemos em nossas jornadas pessoais.

Cada autor coloca em sua obra um pouco de si e da época em que vive. Em um momento da história em que o mercado parece ser o guia maior dos comportamentos das pessoas, inclusive na literatura, é nos livros clássicos e nas críticas à contemporaneidade que continuamos mantendo nossa postura crítica, por meio de autores capazes de questionar o senso-comum, nos fazendo refletir sobre nossa condição.

Isso, porém, não significa que devamos rejeitar as novidades advindas da evolução na comunicação. Blogs e redes sociais foram protagonistas de protestos e movimentos políticos recentes, no Brasil e no mundo. Ambos fazem parte do dia-a-dia de boa parte das pessoas, sobretudo nas grandes metrópoles.

O que é necessário é justamente avaliar com parcimônia o conteúdo e discernir aquilo que deve ou não ser aproveitado. Fernando Pessoa e Bernardo Carvalho nos alertam para a tendência da sociedade em editar a realidade à sua regalia e o quanto isso pode tornar banal a comunicação.

Neste ponto, é necessário o equilíbrio para se utilizar das ferramentas que indubitavelmente podem potencializar nosso conhecimento e nossa experiência cultural. Como alerta à falta de autenticidade da informação na internet, vale lembrar a frase atribuída ao general romano Pompeu, na obra de Plutarco (106-48 AC) e eternizada por Fernando Pessoa: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Com essa expressão, o general chamava a atenção para o fato de que havia precisão no ato de navegar, visto que era guiada por matemática e outras ciências exatas. Na vida, isso não era possível.

À luz do que nos ensina o guerreiro dos tempos de Império, considerando a importância da internet como ferramenta que potencializa nosso poder de comunicação, mas nos expõe, com frequência, a conteúdo sem muito valor, sobretudo nas redes sociais, há de se crer que, na internet, navegar é preciso, Facebook não é preciso.

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Por Alberto Naninni

post_betoExiste um momento precioso numa leitura – quando, ao ler determinado texto, você se dá conta de algo sobre você mesmo(a) que ignorava até então.

E também, com a imensa diversidade de opiniões que se encontra por aí, hoje mais acessíveis do que nunca, graças a sites e blogs como este, me diga se você já não se sentiu meio “perdido(a)” ante assuntos espinhosos, defendidos de forma bastante convincente por antagonistas? Tudo parece tão bem embasado, que fica difícil tomar uma posição; e, quando a tomamos, diz mais a respeito sobre simpatias e “pré-conceitos” do que sobre lógica ou razão. Bons exemplos se deram aqui no Canto mesmo, ante as discussões sobre os originais racistas de Monteiro Lobato e sobre o voto nulo, ambos escritos buscando solidez argumentiva, e gerando contra-argumentos igualmente sólidos.

De qualquer maneira, ainda que facilitadas as discussões, quando se tratar de alguns assuntos – talvez os mais importantes – nós apenas buscaremos as confirmações de nossas opiniões pré-estabelecidas, ignorando inadvertidamente bons argumentos contrários a elas. Há um experimento que corrobora esta tese, feito pelo psicólogo americano Drew Westen, e também um livro, mencionado no fim deste artigo.

Pois bem.

Em meio a balbúrdia que é o Facebook, suas fotos, seus memes, piadinhas, textos pessimamente escritos e afins, é possível garimpar algumas joias. Com a possibilidade de assinar perfis ou mesmo de adicionar  pessoas que tenham relevância dentro dos meios que admiramos ou que tenhamos afinidades, é provável ler bons comentários, receber bons textos, links interessantes, e eventualmente, na leitura de algum deles, possa vir o tal “momento precioso”.

Li no perfil do Rodrigo Casarin um texto da Eliane Brum por ele compartilhado, que reproduzo aqui:

“Desqualificar os índios, sua cultura e a situação de indignidade na qual vive boa parte das etnias é uma piada clássica em alguns meios, tão recorrente que se tornou quase um clichê. Para parte da elite escolarizada, apesar do esforço empreendido pelos antropólogos, entre eles Lévi-Strauss, as culturas indígenas ainda são vistas como “atrasadas”, numa cadeia evolutiva única e inescapável entre a pedra lascada e o Ipad – e não como uma escolha diversa e um caminho possível. Assim, essa parcela da elite descarta, em nome da ignorância, a imensa riqueza contida na linguagem, no conhecimento e nas visões de mundo das 230 etnias indígenas que ainda sobrevivem por aqui.”

Li, e me dei conta: lá estava eu, em meio à tal “elite escolarizada”, prisioneiro de uma visão superficial sobre o “progresso cultural”, por assim dizer, apesar de me achar bastante defensor das minorias e que-tais.

Com este pequeno insight na cabeça, li muitas outras notícias, acontecidas em culturas muitíssimo diferentes daquela que vivo.

E aí veio o me “sentir perdido” – se não há superioridade de uma cultura a outra, como poderei condenar o que acho errado e tomar uma posição, se a justificativa de qualquer ato pode ser como algo típico de determinada cultura? E como balizar aonde eu, com minha cultura, me situo?

O problema é bem mais capcioso que parece.

Há algumas semanas, li a notícia de uma garota paquistanesa de 15 anos, que foi morta pelos próprios pais – tenho que repetir, com ênfase em toda a tristeza e todo o absurdo que daí vem: foi morta pelos próprios pais – que lhe jogaram ácido no rosto e corpo. Ela teria olhado para um garoto, e os pais “defenderam a honra da família”, segundo eles, já manchada pela filha mais velha que teria fugido para se casar. Crimes de honra acontecem corriqueiramente em diversas culturas. Mulheres suspeitas de adultério são queimadas com gasolina, pelos noivos ofendidos ou até pelos próprios familiares; desfiguradas, apedrejadas, enterradas vivas, executadas, barbarizadas, em alguns países no Oriente Médio, Ásia e África (se quiser mais detalhes sobre este horror, leia isso.

Claro que estes são exemplos absurdos destas culturas, e claro que há exemplos extremos na nossa cultura também, mas a questão aqui não é simplesmente pinçar os extremos, mas observar as variações morais, éticas e legais dentre elas. Por causa da infinidade de variações que existe, tais atos são legitimados. Mas, para não ir tão longe, algumas tribos indígenas brasileiras tinham o costume de sacrificar gêmeos ou bebês albinos recém-nascidos, por acreditar que eles trariam mau agouro, enterrando-os logo que nascessem. Num primeiro momento, este outro exemplo parece igualmente extremo e bárbaro. E é, claro. Mas, olhando-o atentamente, em tudo se assemelha ao aborto. Um aborto tardio. A diferença é que a índia não faz pré-natal, e não sabe como ou quantos serão seus filhos.

E o aborto, sem entrar em suas razões ou méritos, algo que mereceria uma discussão à parte, é algo muito mais próximo. Assim, pode-se dizer que todas as culturas, mesmo as indígenas, toleram ou até incentivam um sem-número de barbaridades, segundo suas convenções e costumes. E a minha cultura? Esta, que eu acreditava linearmente superior às outras, atrasadas e arcaicas?

Nela, o Estado de Direito que vigora busca trazer uma igualdade. Se é verdade que há muitos senões a isso, também é verdade que crimes como os já descritos são tipificados, com suas respectivas punições. O sistema econômico incentiva uma concorrência – que, se é um tanto predatória e irresponsável no consumo de matérias-primas e degradação do meio ambiente, também trouxe incontestáveis melhorias e avanços para a vida de milhões e milhões de pessoas, além de praticamente duplicar a expectativa de vida destas num espaço de tempo bastante curto.

Então, é possível detectar porque há uma inconsistência entre uma suposta superioridade que despreza riquezas culturais em detrimento de confortos tecnológicos – algo dificilmente defensável, e esta mesma superioridade, em detrimento de costumes arcaicos – algo plausível, pelo menos no campo moral. Trata-se de medir estas diferenças com a “régua” adequada.

As riquezas culturais de civilizações com milênios de história não podem ser desprezadas. Nossa civilização seria uma criança pequena comparada a estas. Mas eu acredito haver sim uma espécie de “linha evolutiva” do progresso das civilizações e culturas, e acredito que estamos mais evoluídos que a maioria, se aplicarmos esta “régua”: o maior amor ao próximo.

Este critério, uma vez definido o que se entende por amor, esclarece as controvérsias havidas quando confrontadas as culturas e seus costumes. Assim, é indiferente se o jovem anda com seu Ipad ou se pesca no rio com seu arco-e-flecha. Se sua cultura o acolhe, ama, respeita e protege, tentando igualá-lo em direitos e deveres a todos os outros (salvo inevitáveis variações hierárquicas), não há superioridade ou inferioridade a outra cultura. É apenas um outro caminho.

Mas, se ao invés de se amar às pessoas, se ama mais os conceitos e instituições, como a honra, os costumes, a religião, as posses ou o governo, fatalmente se sucederão e se admitirão absurdos como a violência às mulheres e minorias. E isto é um atraso, e um horror, e uma tristeza.

Sim, há na nossa cultura muitos e muitos casos de violência contra mulheres e diversas minorias. Isso é indiscutível. Infelizmente. Não somos o exemplo de amor ao próximo que poderíamos ser, ante o esclarecimento que atingimos. Mas eu até acho que nos dirigimos para isso, timidamente. Prova disso são os militantes pelos direitos de parcelas oprimidas, como por exemplo o movimento feminista, os anti-racistas, e os de defesa dos animais.

Muitos movimentos de defesa das minorias tem sido bastante ativos, e este é um ótimo sinal. Tomando o último citado, quando expandimos o conceito de amor ao próximo aos animais, inferimos que as pessoas que o fazem, em sua absoluta maioria, respeita seus semelhantes como iguais. Ou seja, partem do pressuposto que obviamente não se deve maltratar as pessoas, e muito menos os animais, que são indefesos. Muitos gostam mais deles do que delas, e não os culpo – os animais são puros e desinteressados; as pessoas, nem sempre.

De qualquer forma, apesar destes movimentos, há pouco amor ao próximo, e por isso, há muitas leis. Há inclusive a tentativa de se criminalizar maus-tratos aos animais, e os militantes em defesa deles fazem muito barulho quando flagram algum caso, como o da enfermeira que, sujando sua categoria, torturou até a morte seu cãozinho, sem perceber que estava sendo filmada. De minha parte, acho justo a crueldade ser punida.

Porém, reconheço que, por interesse, contemporizo com outro tipo de crueldade: a que envolve se alimentar de outros animais. É algo cultural, e talvez até genético. Segundo o dr. Dráusio Varella, estaria impresso nos nossos genes o consumo de carne, tanto que salivamos só de cheirar um bife sendo feito. Mas há aqueles que optam por abrir mão deste consumo: os vegetarianos e veganos.  Eles transcendem um impulso atávico humano: o de caçar e comer, ainda que não cacemos nada senão em açougues e mercados. E o substituem por um tipo de amor que não despreza o sofrimento causado a um outro ser vivo, criado apenas para o abate, e muitas vezes, em condições extremamente cruéis. Além disso, costumam se tornar vegetarianos ou veganos pela própria vontade – e não por ser um costume do seu povo, ou por ordem de seu líder religioso. Até porque eles costumam prescindir de crenças, já que são guiados pela própria consciência, a ponto de se importar não só com seus semelhantes, mas também com os outros seres vivos.

Por estes motivos, acredito que eles sejam a próxima “linha evolutiva” humana, e a princípio, moralmente superiores. Aliás, possivelmente, num futuro talvez não tão distante, seremos vistos como neandertais, com nossos churrascos e frigoríficos.

Enfim, as violências – culturais ou não – que se passam do outro lado do mundo chegam até mim, assim como aquelas que literalmente batem à minha porta, ou chegam à minha mesa. Os movimentos pelos direitos humanos e animais – mais fortes e presentes em algumas culturas do que outras – também. Então, posso respeitar as culturas e diferenças, mas, munido da medida do amor, também posso ver que, quanto mais tradicionalista e fechada uma cultura seja, mais distorções e violência contra os seus ela tende a abrigar. Em contraponto, quanto mais progressista e aberta seja outra, mais ela tenderá a dar voz aos seus, e, por conseguinte, mais equilibrada e justa ela possivelmente será.

Depreende-se então que desta cisma se originou um outro tipo de desafio: como se estar conectado a tudo e não ser massacrado por isso.

O genial David Foster Wallace, jornalista e escritor americano, escreveu um relato cru sobre um tal Festival da Lagosta, que acontece nos EUA, para uma revista especializada, que foi de certa forma até corajosa em publicá-lo, ante a posição que ele toma e as reflexões que ele faz.

Creio ter chegado a conclusões parecidas. O homem é abjeto. Vil, ditador, mesquinho e cruel. Animal em suas pulsões. Ler sobre as barbaridades que alguns são capazes, as fazendo por causa de sua cultura ou por outra justificativa qualquer, nos dá a sensação de que somos melhores, que não faríamos aquilo em hipótese nenhuma. Bem, pesquisas consagradas contestam isso: somos capazes dos piores atos, se arrumarmos uma justificativa que considerarmos plausível, como obediência, costume, autodefesa ou “forte emoção”.

Não admira que David Foster Wallace, capaz de enxergar tanto sobre si e seus semelhantes até num Festival de Lagostas, não tenha mais aguentado viver. Ser sensível demais, enxergar demais, traz desespero. É necessário um embotamento, uma “correria” atarantada, que consome futilidades, que acumula coisas, que se engana com um juízo distorcido de si mesmo, e que ignora, ou finge ignorar, o quanto de vaidade há nisso tudo. E mais que isso, é necessária uma “dessensibilização” aos absurdos do mundo, como um antídoto, que nos possibilita viver e até ser felizes.

Como uma espécie de ácido que nós mesmos derramamos em nossas consciências.

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O novo livro traduzido de David Foster Wallace, publicado quatro anos após sua morte, Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, da Cia. das Letras, acabou de chegar às livrarias, e tem o ensaio “Pense na Lagosta”, mencionado aqui. Também pode ser lido no site da revista piauí.

O livro mencionado que aprofunda a noção de que só procuramos a confirmação das nossas teses é o Previsivelmente Irracional, da Elsevier, escrito pelo psicólogo e professor americano Dan Ariely.

Agora, consigo marcar uma posição de qual lugar minha cultura ocupa (e eu dentro dela). Muito longe da perfeição ela está, e muito para se envergonhar existe. Consumir carne e esgotar o meio-ambiente, ligar pouco para as minorias, fazer parte de um sistema que mais separa e exclui do que o contrário. Confere. Mesmo assim, afirmo haver grande diferença entre cometer estes e outros pecados, e cometer não apenas estes, mas ainda outros piores, contra qualquer um, por motivo de ódio, costumes medievais e ignorância – pura, grossa e cascuda. Em relação a estas pessoas, cuja cultura autoriza e estimula este tipo de ação, só preciso ver a foto de UMA das milhares e milhares de vítimas que eles desfiguraram com seus ácidos e preconceitos para dizer: atrasados. Covardes. Bárbaros. Desumanos.

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