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Posts Tagged ‘Theodore van Gogh’

Por Fred Linardi

Na manhã de 23 de outubro de 1888, Vincent van Gogh abriu a porta de sua casa e se deparou com o fim de uma ansiedade que o dominava desde maio. Como planejado durante meses, o artista francês Paul Gauguin finalmente chegava à cidade de Arles, França, para dividir a casa com o pintor holandês. De fato, os anseios de Van Gogh acabaram, mas não serviu de alento diante de tantas preocupações e instabilidades daquela mente em constante ebulição.

Van Gogh estava em Arles desde fevereiro daquele ano. Depois de morar num restaurante-hotel, mudou-se para o sobrado de duas salas e dois quartos, que viria a ficar conhecido como “Casa Amarela”, devido à cor das paredes externas. Mas também tinha janelas verdes, portas azuis e o piso terreo vermelho. Por dentro, as paredes eram bege, mas logo foram cobertas com as telas que assinava. Martin Gayford, autor do livro “The yellow house – Van Gogh, Gauguin and nine turbulent weeks in Arles” (inédito em português), conta a respeito do cuidado do artista ao decorar a casa com móveis e vasos. Apesar da péssima situação financeira, ele priorizou finalizar os cômodos. Sua idéia era fazer uma casa de artista (mesmo prezando pela simplicidade) e, com o tempo, estabelecer uma cooperativa de amigos que discutiriam sobre obras, independente do estilo, dividiriam o teto, o estúdio e lucro das vendas, o que era comum na época.

Sua vida era solitária, até porque não tinha lá uma fama muito atraente. As pessoas não se aproximavam daquele homem estranho, andando apressado pela cidade, coberto com um chapéu de palha e exalando um cheiro nada agradável (falta de banho e excesso de cachimbo). Esperava desesperadamente por alguém do seu mundo. Seu irmão, Theodore van Gogh, o Theo, que o sustentava enquanto Vincent não lucrasse com as obras, o ajudou na busca por alguém.

Gauguin se convenceu por Arles com alguns interesses em mente. Van Gogh era, no mínimo, uma figura curiosa e certamente teria muitas idéias para trocar. Gauguin havia passado uma temporada na Martinica, no Caribe, e voltara à França para se recuperar da malária. Por hora, imaginou que a nova vida na Provença seria um bom lugar. Além disso, estreitaria os laços com Theo, que morava em Paris como negociador de artes e passaria a trabalhar com suas telas também.

Ao chegar, Gauguin se surpreendeu com o que viu nas paredes. Entre maio e outubro, Van Gogh tivera uma euforia criativa. Toda a ansiedade pelos adiamentos da chegada de Gauguin transformara-se em pinturas. O trabalho era exaustivo, acompanhado por agitações, má alimentação e a busca por resultados que mostrassem seu talento. Em poucos meses, pintou cerca de 200 obras (um terço do que Gauguin reproduziria durante sua vida toda). Entre elas, Quarto em Arles, e a favorita do novo morador, Os Girassóis. Além de eufórico, o pintor holandês queria impressionar o novo amigo.

Segundas impressões

Agora, com a companhia de Gauguin, o ritmo mudaria e eles sairiam para pintar juntos o cenário e as pessoas de Arles. Durante o trabalho, ficavam a poucos metros um do outro para retratar a mesma paisagem, cada um com seu estilo. Enquanto Van Gogh prezava pelo impressionismo, com o uso de cores contrastantes a partir do que via, Gauguin tendia a criar e modificar, implementando cenas, mudando cores e seguindo um caminho voltado ao que chamava de sensorial – chegou até a usar a palavra “abstrato” em uma das cartas a Theo. Tudo era estudo e experimento.

Vincent, até então, não conseguira vender um trabalho sequer (vendeu apenas uma tela em vida, A vinha encarnada, poucos meses antes de morrer). Por isso, sempre fora sustentado por Theo que, além de ser um fiel apoiador, acreditava na proposta do irmão, enquanto os críticos de arte torciam o nariz para aquela confusão de cores dos artistas de vanguarda. Mesmo assim, na primeira semana em Arles, Gauguin recebeu uma carta de Theo contando que havia negociado uma de suas telas, Meninas bretãs dançando.

As primeiras vendas de Gauguin não causaram atrito com Van Gogh, tampouco a diferença de estilos que acabava sendo enriquecedora a ambos. De fato, a entrada de mais dinheiro na casa trouxe mais estabilidade financeira. Gastos foram organizados por Paul, e Vincent era beneficiado também, já que agora comia melhor e sobrava mais dinheiro para a casa. Tudo parecia estar bem, não fossem as instabilidades de Van Gogh.

 

A iniciante prosperidade de Gauguin e suas histórias da época em que cruzou os trópicos como marinheiro representavam nos olhos de Van Gogh a figura de um mestre. Tudo era algo a ser ouvido, aprendido e adorado. A figura anti-social e raquítica de Vincent até poderia não expressar muito, mas seu temperamento poderia levá-lo aos extremos. Em poucos dias, a novidade acabaria e não sobraria muito além das gritantes diferenças entre os dois artistas. Em novembro, quando a temperatura já esfriava e ficava difícil passar muito tempo fora de casa, os dois ficavam enfurnados no estúdio.

Enquanto Van Gogh acreditava sentir-se mais calmo com a cidade, Gauguin logo se desencantou com o lugar. As divergências entre gostos por outros pintores poderiam não representar muito, mas acabou sendo também o início de um desgaste dentro da casa.

A Crise

As vendas de Gauguin serviram para que Van Gogh entrasse numa paulatina queda de autoconfiança. Até novembro, Vincent já havia produzido grande parte de suas obras mais geniais, mas ninguém as enxergava dessa forma. A preocupação devido às dificuldades financeiras, que o assolaram a vida toda, continuou a perseguir sua paz e, por mais que Theo enviasse uma quantia segura de dinheiro, a falta de perspectiva de sucesso unia-se à insegurança.

Poucas semanas seriam suficientes para que o quadro psicológico de Van Gogh piorasse. Aos 35 anos de idade, ele fazia cálculos para o sucesso, baseado nas vendas de Gauguin, com 40 anos, e imaginava se em cinco anos ele estaria tão bem quanto o francês. Em dezembro, a situação piorou. As discussões cresceram até que Gauguin disse que pretendia voltar à Martinica assim que tivesse condições. Isso seria possível com mais algumas vendas. Para piorar a situação, no dia 19 de dezembro, Theo envia uma carta anunciando que iria se casar. Na cabeça de Van Gogh, essas notícias eram as piores que poderia receber – além de ficar sozinho novamente, teria seu lugar tomado na vida do irmão.

No dia 23 de dezembro, os artistas vão ao bar vizinho da casa. Enquanto discutiam sobre o pintor Rembrandt (venerado por Vincent e desprezado por Paul), um susto: Gauguin foi atingido na cabeça pelo copo de absinto de Van Gogh. Gauguin percebeu que sua presença piorava as condições do amigo e resolveu que iria dormir num hotel. Era o começo de uma tragédia. Momentos mais tarde Van Gogh saiu pelas ruas até cruzar com Gauguin. Perturbado, segurava sua lâmina de barbear, provavelmente para ferir seu amigo, comprovando as suspeitas de que beirava a loucura. Convencido a acalmar-se, voltou correndo e sumiu na escuridão. A partir deste momento, Gauguin estava certo de que iria a Paris logo que amanhecesse.

Após este encontro (que seria o último entre os dois), Van Gogh voltou para casa, decepou sua orelha esquerda (talvez apenas o lóbulo), fechou-a num envelope e mandou que a levassem à Rachel, uma jovem prostituta de 16 anos, no Bordel na Rua Bout d´Arles. Após este episódio, sua vida entraria num inevitável declínio, impulsionado por crises e, ao mesmo tempo, contrapondo-se com suas geniais criações. O pintor nunca explicou o motivo de sua atitude e os médicos não conseguiram chegar a uma conclusão. Gauguin chegou a ser suspeito, mas a hipótese foi descartada.

Uma das associações feitas por Gayford quanto ao caso da orelha vem de casos que ganharam grande notoriedade nos jornais daquele ano (e os moradores da Casa Amarela haviam acompanhado assiduamente) – como o dos assassinos de prostitutas: Prado, em Paris, e o de Jack, o Estripador,em Londres. Jackparticularmente apresentara uma novidade – estava mutilando orelhas das vítimas. Van Gogh tinha uma visão humanista em relação às prostitutas e comparava suas vidas marginais à dos artistas. O interesse de Gauguin pelos casos também era surpreendente, a ponto do artista ter ido assistir à morte de Prado, em Paris, apenas dois dias após o incidenteem Arles. Trêsanos depois, ele se mudaria para o Taiti, na Polinésia, onde continuou sua obra e viveu até os 54 anos.

A história de Van Gogh após o corte da orelha passa a ser cada vez mais crítica e instável. Foi a Paris, depois morou na cidade de Auvers-sur-Oise, até que decidiu internar-se para seu próprio bem. Suicidou-se em 1890, aos 37 anos, atirando em seu peito, no meio de uma plantação de trigo, após freqüentes internações e crises profundas. Por outro lado, obras fantásticas em períodos de lucidez, como Noite Estrelada, de 1889. O quadro é marcante pelo céu espiralado, além das formas agitadas, que marcam seu estilo e representam seu temperamento. Van Gogh dizia que as estrelas o acalmavam e por isso pintara aquele quadro. A cidade retratada de memória é Arles, para onde jamais voltaria.

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