Por Fred Linardi
Existe um cano de revólver apontado para o meu pé enquanto escrevo sobre essa grande reportagem do respeitado jornalista internacional Ryszard Kapuscinski, que morreu em 2007 de causas naturais, apesar de ter ficado muito perto de armas engatilhadas durante as dezenas de lugares por onde passou. Ao contrário dele, que cobriu 27 golpes de estado e revoluções civis, o meu risco não reside apenas no calibre apontado para meus membros inferiores. O risco está em falar sobre um trabalho como O xá dos xás, segundo título do autor que faz parte da série Jornalismo Literário, da Companhia das Letras, precedido por O imperador.
Uma das primeiras lições que tive sobre Jornalismo Literário referia-se ao estilo que usa de técnicas da literatura para produzir reportagens num estilo, como o próprio nome diz, literário. Isso não significa ficcionalizar o texto, aprendi, mas sim tornar sua narrativa mais atraente ao leitor. Da mesma maneira, já cheguei a ouvir de mestres (no sentido acadêmico da palavra) que o tal estilo permitiria um tanto de invenções por parte do jornalista. Pois bem, o assunto é longo. Mas só para ficar num exemplo, relembro sobre a obra indicada pelo Igor Antunes Penteado na sua mais recente dica de leitura aqui do Canto do Livros – A sangue frio, de Truman Capote –, que será acompanhada por uma sombra eterna pelo fato do jornalista americano ter floreado um final em busca de uma conclusão dramática ao livro, criando um diálogo que jamais existiu na realidade.
Se for para escolher um dos lados, empunho com minhas próprias mãos essa arma que aponto para o meu pé e digo que fico do lado da total veracidade das cenas narradas.
Dito isso, sinto a pressão do gatilho no meu indicador.
Pow!
Ouço um barulho lá fora e quase acredito que é o estouro da minha arma que, na verdade, continua silenciosa. A capa do livro, com fundo preto e escrito em branco e vermelho, me encara. Preciso explicar o motivo de ter escolhido essa obra com menos de 200 páginas para escrever aqui nesse blog. Essa é a história do último xá do Irã, que pretendia transformar seu país numa superpotência – isso também está dito na capa. Outra coisa que ela indica, logo abaixo do subtítulo, é que faz parte da coleção já mencionada lá no primeiro parágrafo.
Então vamos lá. Era uma vez um cara chamado Mohammed Reza Pahlevi que, na década de 1940, herdou de seu pai um país miserável acima do chão e riquíssimo abaixo dele. Toda a riqueza vinda do petróleo abundante servia para enriquecer o próprio bolso, concentrando o poder suficiente para fazer a população de um país inteiro temer cogitar qualquer tentativa de mudança. Os métodos de intimidação eram dos mais complexos, com uma célula do governo repleta de informantes, que consideravam comentários banais como “hoje o céu está nublado” como mensagens subliminares de subversivos na rua. Quem ousasse dizer algo como isso, num ponto de ônibus que fosse, poderia começar a se despedir da vida – não sem antes passar por sessões de tortura que até o capeta duvida.
A história de um Irã tomado pelo egoísmo e crueldade do seu xá é margeada pela narrativa sagaz, a partir de fotos históricas coletadas, além das gravações e anotações de Kapuscinski, que há de perdoar o teclado do meu computador ocidental, que não consegue botar acento agudo no “s” e no “n” do seu sobrenome. Mas ele há de entender certas liberdades, já que… bem, já que ele é dos exemplos que devemos colocar ao lado de livros de não ficção que dão uma inventandinha em alguns trechos. Mas também ao lado de obras que fazem parte do que há de mais exemplar em grandes reportagens. E agora? De uma forma ou de outra, é inegável afirmar que livros como este (ou como A sangue frio) estão entre os mais ousados.
Mas o que Kapuscinski inventa, afinal?
Não sei dizer ao certo. É dito que
Ahhhh….!
Ouço um grito vindo da rua. Será que aquele barulho que ouvi vem de uma vítima atingida por um tiro que jamais esperava lhe atravessar o peito? Ou será que veio de alguém que está me vendo pela janela ora com a arma na mesa, ao lado de Kapuscinski, ora voltada para meus pés? Ou será que vem da minha consciência em conflito, sem saber o que dizer depois de ler o posfácio e constatar que, de fato, o velho polonês dava suas viajadas além-fato para escrever esse livro que eu, agora cúmplice de tudo, me deliciei. Cale a boca, Kapu! Arrisco-me demais ao te elogiar.
— Kapu, escute aqui! Sua obra foi chamada de “jornalismo mágico” pelo seu respeitado colega Adam Hochschild e a alcunha foi confirmada por Artur Domoslawski na biografia sobre você, Kapuscinski Não Ficção (ah, se você conhecesse Roberto Carlos em tempo…). Aí, sim, é possível saber o que há de ficção em suas obras de não ficção. Até que enfim alguém para nos esclarecer.
Ficção, sim. Mas vamos com calma (meu pé está suando frio agora). Sem dúvidas, o xá Reza Pahlevi era um tirano que governava sem um pingo de compaixão e, em certos pontos, com alguma dose de burrice, já que todos os ditadores têm seus atos falhos. Queria um país desenvolvido, queria criar “uma grande civilização”, queria que o Irã saísse do zero e se tornasse, em dez anos, um país comparável à Alemanha ou Inglaterra. Tinha dinheiro para isso e muito mais. Trouxe indústrias e importou mão de obra de outros países, já que ali as universidades eram proibidas. Os iranianos que queriam formação superior ganhavam bolsa para estudar fora – e poucos tinham coragem de regressar depois de graduados. Fanático por guerras, comprou um arsenal bélico fora de proporções, sem nem mesmo ter onde abrigar tantas aeronaves e tanques. Mas um dia o povo se desperta para uma revolução, que começa a acontecer em diversas cidades, uma depois da outra… E então Kapuscinski nos presenteia novamente na segunda parte do livro, com um primoroso ensaio sobre como funciona uma revolução. Uma peça fundamental para que se reflita sobre o espírito de um país que passa por esse tipo de evento.
Na obra de Kapu é dito que há personagens e declarações inventadas. Dentro do contexto, elas parecem coerentes, mas ainda assim podem ser fictícias. O perigo neste caso é exatamente quando os limites entre acontecimentos ou pessoas reais ou imaginários não ficam claros para o leitor. E Kapu parece tomar exatamente este cuidado. Tudo flui, os personagens são vivos e coloridos. O perigo, no entanto, é quando começamos a duvidar das histórias que, por ventura, tenham sido frutos do obstinado trabalho de pesquisa e apuração jornalística.
Entre os autores que odeio amar, acredito que sempre estará a sombra de um anti-herói chamado Kapuscinski, batendo a mão nos meus ombros e lembrando que entre a ficção e a realidade existe uma série de questões, escolhas e princípios. Existe também uma mira de um revólver prestes a disparar em nossos pés.
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