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Posts Tagged ‘Fred Linardi’

Por Fred Linardi

Montaigne-Os-ensaiosExistem clássicos da literatura de ficção, assim como há clássicos da filosofia e das várias vertentes da ciência. Quando se trata de ensaio, no entanto, o crivo parece se estreitar – apesar deste gênero ser um tanto subjetivo em sua classificação. E então, uma das obras que ocupam o topo da categoria são a coletânea Os Ensaios, de Michel de Montaigne. Ele é considerado o criador deste tipo de texto que fica entre o livre pensamento e a objetividade acadêmica ou científica. Sua obra ganhou corpo depois que ele se decidiu se retirar e dedicar seu tempo à leitura e à produção da encorpada obra que acabou por gerar. Sim, ele era um nobre de família abastada. Além de herdeiro e pai de família, chegou a ser prefeito de Bordeaux, soldado, administrador e viajante. Quando decidiu se afastar, e preocupado com sua saúde, propôs-se a escrever sobre quase tudo – e aqui está o preceito do gênero que, na verdade, já havia sido praticado por mentes bem mais antigas que haviam se arriscado em livres pensamentos, como Sêneca, Plutarco e Sei Shõnagon.

Essa seleção dos ensaios do pensador francês reúne grande parte dos três antigos volumes que têm sido lidos ao longo desses cinco séculos no mundo todo. Temas universais como o medo, a ociosidade, a idade, as orações, o verdadeiro e o falso, a consciência, a embriaguez, a crueldade, Sêneca e Plutarco (!), arrependimento, a crueldade, e assim vai… Apesar dos assuntos serem para sempre atuais, é claro que a abordagem remonta ao seu conhecimento da época, com exemplos contemporâneos a sua realidade. Da mesma forma, para o leitor de hoje pode soar um tanto rebuscado. Mas olhando mais de perto vemos a ousadia de escrever sobre esses assuntos e permitir-se vagar por algo semelhante ao fluxo de consciência que passaríamos a ver em ensaios mais modernos, de cunho pessoal. Acontece que Montaigne já se coloca em seus próprios textos, mostrando mais verdade e nos aproximando mais de seu discurso.

Se o ensaio é um texto em que o autor se arrisca por campos ainda não visitados por ele, o texto “Sobre os canibais” pode ser um exemplo disso. Ele foi construído a partir de relatos lidos dos europeus que estiveram no Brasil. O contexto ainda era em torno da selvageria indígena versus a cultura civilizatória. Mas Montaigne, que se preocupava em evitar radicalismos, acaba por questionar – afinal, quem são os selvagens?

Apesar de reflexões que continuam atuais, a leitura não deixa de ser de fôlego. Os ensaios são raramente curtos e, refletindo a base de sua educação – ele foi alfabetizado em latim –, são entremeados de citações nesta língua, seguindo pensamentos de Horácio, Virgílio e Cícero, entre outros. Este livro é tanto um convite para uma longa leitura quanto para breves consultas acerca de seus temas. 

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Por Fred Linardi

A_HISTORIA_SEM_FIM_1229355292PHouve uma geração que assistiu inúmeras vezes ao filme História sem fim, que habitava a Sessão da Tarde mês sim, mês não. Para quem viajava nas cenas e terras fantásticas, o livro que deu origem ao belo filme não é uma boa pedida, é uma ordem. Até porque a história retratada na tela não passa da metade das quase 400 páginas da obra. Com sua imaginação ao extremo, o escritor alemão Michael Ende faz uma ode ao mundo fantástico e a nossa capacidade de habitá-lo sem nos perdermos em suas armadilhas. Quem lê o livro é Bastian, escondido no porão de escola, acompanhando as aventuras de Atreiú. Lemos o que Bastian lê até que ele acaba entrando no próprio livro, eis aqui o ponto de partida da história que o cinema não mostrou. A literatura de Ende não menospreza nem a criança, nem o adulto, com suas nuances filosóficas e as reflexões dos personagens.

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Por Fred Linardi

GarotaencontragarotoAli Smith não é uma escritora convencional. Suas histórias não costumam ser convencionais. Podemos acompanhar suas obras pouco a pouco serem traduzidas para o português e confirmar que essa escocesa tem muito a dizer das maneiras menos esperadas.

No seu premiado romance de 2005, Por acaso, uma família inglesa é surpreendida com a aparição de uma moça totalmente desconhecida na casa onde passam as férias de verão. As relações se redefinem de acordo com essa figura estranha na vida dos pais e dos filhos, um a um. Em seu mais recente livro lançado no Brasil, uma coletânea de contos chamada A primeira pessoa, as mesmas situações inusitadas acontecem, como em A criança, onde uma mulher se depara com um pequeno e fofo garotinho que aparece de uma hora para outra em seu carrinho de supermercado. Fofo até o momento em que ele começa a provocá-la com perguntas constrangedoras e preconceituosas.

A inventividade de Ali Smith está presente também em Garota encontra garoto, um breve romance e uma dessas histórias capazes de fisgar o leitor logo na primeira frase “Agora deixa eu te contar como eu era quando menina, diz nosso avô”. E então a protagonista da história, Anthea começa a contar sobre a história de seus avos, que a criaram ao lado de sua irmã, Imogem, depois de se tornarem órfãs. Os avós, como o leitor prevê de cara, não têm um estilo de vida dos mais comuns.

Fica claro também que este é um romance que gira em torno dos gêneros sexuais. Anthea é a irmã mais nova de Imogen, que trabalha numa multinacional chamada Pura, que extrai e vende água mineral. Imogen traça uma carreira brilhante como uma mente criativa nessa bizarra companhia, consegue uma vaga para Anthea, que pouco se encaixa naquele trabalho, naquele sistema cruel e capitalista. A mais velha olha a caçula com reprovação, mas nada vai surpreendê-la mais do que o dia em que ela flagra Anthea na rua beijando Robin, uma militante contra as injustiças do mundo atual, como o ato de se apropriar de um bem natural, como a água.

Enquanto Imogem é uma moça centrada, funcionária exemplar, Anthea divaga pelas ruas de Inverness, ora pensando em se jogar no rio Ness, ora pensando sobre a vida dos livros do sebo, que jamais encontrarão a luz do sol se ninguém os ler, ou então divagando sobre como as pessoas que trabalham em shopping centers parecem desconfiadas, depressivas e maldosas. O encontro com Robin vem para fazer com que ela assuma sua homossexualidade, assim como seu lado militante contra as forças opressoras da nossa civilização.

Separada em partes com vozes narrativas alternadas, ora temos a história contada por uma irmã, ora somos levadas pela outra. Nessa alternância de vozes, entramos para o tema da alternância de gêneros masculinos e femininos. É neste ponto que Ali Smith lança mão da versão de Ovídio para o mito de Ifis, presente na obra Metamorfoses, em que esta jovem nascida na ilha de Creta e criada pela mãe como um menino é transformada em homem pelos deuses às vésperas de casar-se com sua bela noiva Iante.

Apesar das fortes personagens, do tema cada vez mais presente em discussões atuais, a autora descreve tudo de maneira natural, com uma história fluida e repleta de sutilezas como no momento em que toma um chá com torradas junto aos avós e reflete sobre o sabor da manteiga na torrada. “Estamos com o gosto de torradas com manteiga na boca. Quer dizer, eu presumo que estejamos todos com o mesmo gosto, já que comemos da mesma torrada, quer dizer, fatias diferentes da mesma torrada. E é aí que começa a preocupação. Sim, porque e se todos experimentarmos de forma diferente o gosto das coisas?”

Em outro momento, enquanto Anthea ouve Robin contar sobre a lenda de Ifis, afirma para a namorada “Nasci desmistificada. Cresci desmistificada.” Ao passo que ouve como resposta “Cresceu nada. Ninguém cresce sem mitos. O que importa é o que a gente faz com os mitos com que crescemos.”

A resposta de Robin vem ao encontro com a própria vida da autora, que vive com sua companheira há 20 anos e que mostra neste livro que os mitos estão até hoje entre nós para provar que a natureza humana é muito maior do que a moral criada e recriada de tempos em tempos, incapaz de sobreviver no topo de seus duvidáveis e relativos alicerces.

 

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Por Fred Linardi

PEIXE_GRANDE_1293121765PTendemos a imaginar que a fantasia está se enfraquecendo. O mundo se tornou chato, dizemos também. As histórias infantis, em especial os livros clássicos, são um campo minado prestes a explodir na primeira análise dos fiscais do politicamente correto. Tira-se do contexto de época e de repente Monteiro Lobato se torna perigoso para nossa frágil moral. E então, no mundo de hoje, com crianças precocemente adultas, a impressão que temos é essa, a de que o mundo da fantasia vive num arriscado limiar.

Tanto a literatura quanto o cinema encontram um grande apelo comercial quando a história prestes a ser lida ou assistida se trata de uma narrativa inspirada numa vida real. Parece que as horas investidas na poltrona encontrarão mais sentido do que se a história em questão fosse meramente ficcional (como se isso fosse simples, como se a inventividade tirasse a autenticidade de uma vida inventada). E então, no entanto, nos lembramos do que há de real numa ficção e do que existe de universal em qualquer história tirada da imaginação.

No final, o que se extrai tanto de uma literatura quanto da outra é o que de há de humano, o que move o leitor na história. Ao cabo, chegamos à conclusão que não esgota o ciclo dessa questão, de que a fantasia jamais vai perder seu espaço, mesmo num mundo chato como ele se apresenta.

Peixe grande, de Daniel Wallace, é uma prova disso. Trata-se de um pequeno livro, uma história sobre a vida de Edward Bloom, que se encontra agora no leito de morte. É seu filho, William, que narra a história intercalando com diferentes momentos dessas horas do fim da vida com as extraordinárias passagens que ouviu sobre o passado do pai. Ouviu-as do próprio Edward, mas também as complementações e variações dos fatos que amigos e estranhos contavam sobre aquele homem sem igual. Dessa forma, o conhecido e mitológico pai está se esvaindo diante de um filho que, na verdade, pouco lhe conhece.

As inúmeras histórias, que se parecem mais fábulas que os adultos contam para entusiasmar as crianças, parecem não preencher o vazio que o filho sente em relação à ausência deste pai que tanto viajou durante a infância e juventude de William. De espírito aventureiro, não conseguiria jamais viver entre as paredes da casa, repletas das previsíveis coisas da vida.

Toda pergunta ou observação do filho sobre o pai, nos derradeiros diálogos antes da morte, ainda levam Edward a se lembrar das anedotas das quais ele teria participado e protagonizado ao longo de sua vida. William se irrita o tempo todo, pois, de tanto ouvir tantas histórias diferentes, sofre por nunca saber de fato quem havia sido seu pai além daquelas histórias deslavadamente inventadas, mesmo que tivessem realmente acontecido – sim, há um jogo de confusão e realidade digna de mestres contadores de histórias.

Mas acontece que o tão carismático e adorado-por-todos é um Edward que vive e morre como todos os seres humanos. Sua figura é imperfeita, mas escolheu contar ao filho os melhores pedaços de sua história. “Não importa; a história está sempre mudando. Todas as histórias mudam”, escreve o narrador em dado momento do livro. E o que fica é o que sabemos enxergar dela. O final redentor da relação entre pai e filho prova que a vida é grande, maior do que aquilo que escutamos e queremos acreditar. Maior do que nos contam ou do que ouvimos.

Vale dizer que o livro, adaptado para o cinema em 2003 pelo diretor da fantasia, Tim Burtom, teve muitas modificações em seu roteiro, com uma série de elementos e personagens criados para a tela. Dessa forma, o leitor de Peixe Grande tem contato com essa história a partir da inventividade própria do autor Daniel Wallace que, além de escritor é também ilustrador. A única frustração é que a edição do livro não conta com seu trabalho como desenhista, o que poderia contribuir muito com a riqueza deste trabalho. De qualquer maneira, suas palavras são o suficiente para ilustrar a mais árida das imaginações.

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Por Fred Linardi

VozesMarrakechEntre as particularidades de um bom livro de viagem está algo além da rica experiência de vivenciar os dias em que se passa em terras distantes geográfica e culturalmente. E aí está o tempero final que se dá num relato exemplar: a confluência de vivências culturais diversas – a de si e dos outros – num linguagem nobremente literária a partir de uma visão singular sobre o cenário e as pessoas que se apresentam, diversos de sentidos e motivações para um escritor. É essa a grande qualidade de As vozes de Marrakech, de Elias Canetti, que de defeito só tem um: suas breves páginas fazem o livro acabar muito antes de estarmos preparados para isso. Vale a pena conhecer o relato deste Nobel, que reúne as melhores qualidades de um escritor e ensaísta.

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Por Fred Linardi

AnarquistasFaz poucos anos, talvez uns dois, que voltei de recesso e tomei um susto ao passar pela Paulista e ver que um casarão tinha se reduzido ao pó. Perto dele, no mesmo quarteirão, numa esquina com a Alameda Santos, outro palacete tinha se tornado mais um terreno prestes à planagem que planifica a cidade cheia de espigões.

Enquanto damos adeus ao ano velho, outras memórias costumam ir embora, num lapso aproveitado pela especulação imobiliária. Casas caem na surdina, enquanto a fiscalização dorme ao lado das garrafas entornadas no Réveillon.

Dizer que o Brasil é um país sem memória faz todo sentido. Não só pela mágica amnésia política, mas também por não termos conhecimento do lugar em que habitamos. Além das casas não preservadas, ignoramos as histórias não registradas. A literatura de memória, tão praticada e lida em países como Estados Unidos, Inglaterra e França, pouco tem tradição por aqui.

É fato que os livros de memória partem de uma motivação autobiográfica, narrando as reminiscências da infância, as histórias que os velhos contavam, as relações entre pais e filhos, assim como os costumes e cenários de outrora. Isso tudo, por si só, já é motivo para grande interesse. As histórias de vida são uma ótima ferramenta para entendermos o passado do outro e identificar com o presente em que vivemos. As questões, as frustrações, as conquistas, a trajetória como um todo, são particularidades biográficas e, ao mesmo tempo, elementos universais.

No livro Escrevendo com a Alma, formado por uma coletânea de ensaios e crônicas que se dedicam a orientar o ato de escrever sobre o que te der na telha, inclusive as memórias pessoais, Natalie Goldberg logo aconselha para que os aspirantes à escrita se preocupem em escrever antes de pensar em mais nada, deixando de lado armadilhas do ego, principalmente as que tendem a bloquear a criação. A preocupação se aquilo é arte ou não pode vir num momento bem posterior; depois de muita prática, claro.

Talvez pelo medo de soar ridículo, de não saber “escrever como um escritor”, muitos se silenciam. Filhos deixam de encontrar diários dos avos e pais. Netos não alcançam mais a história dos bisavós e assim gerações se apagam com o passar de décadas.

Não sei daquele palacete da Avenida Paulista que, há dois anos, deixou de existir. Não imaginava que na década de 1920, na esquina da Alameda Santos com a Rua da Consolação, havia outra casa mais simples, com um jardim e paredes pintadas com gravuras e em cujo muro se apoiavam os moradores vendo os cortejos fúnebres passarem em direção ao Cemitério da Consolação. A Avenida Paulista, muito chique, não poderia ser palco para isso. Tampouco sabia que a Rua Caetano Pinto, no bairro do Bixiga, era temida devido aos seus moradores, a maioria deles vindos do sul da Itália e mal afamados por sua brigas e gritarias.

Antes de começar a escrever seu primeiro livro, Anarquistas, graças a Deus, Zélia Gatai almejava apenas escrever um conto inspirado por uma passagem de sua infância. Ao ver o esboço de algumas páginas, Jorge Amado devolveu-lhe: esqueça o conto e escreva logo suas memórias. E assim sua esposa fez. O resultado, publicado originalmente em 1979, é um texto com as melhores cores de uma obra de memória. Com histórias contadas de maneira despretensiosa, sua linguagem se encontra com a espirituosidade e ingenuidade infantil da década da garota, ao passo que vemos um retrato de uma família italiana num Brasil que prometia a realização de sonhos para quem cruzava os mares e aportava por aqui.

Entre o ambiente e organização de uma casa de pais com convicções anarquista “ma non troppo”, Zélia escreveu seu retrato da São Paulo dos bondes, dos piqueniques no Parque da Luz, das movimentações da Revolução de 1932, dos carnavais, narrando a partir do cenário de imigrantes que lutam para se estabelecer dentro do desenvolvimento de um país que, para muitos deles, reservavam trabalhos semelhantes a de novos escravos. No caso dos Gattai, foi com a abertura de oficina para carros que Ernesto, o pai, empreendeu seu negócio num galpão da casa alugada, garantindo o sustento e conforto aos cinco filhos.

Entre a escassa bibliografia do gênero no Brasil, Anarquistas, graças a Deus é um exemplo do valor de se fazer esse tipo de registro. Entre tantas contribuições apontadas pelos estudiosos da memória, é a partir dele que recuperamos um passado desconhecido até a leitura. E como conclui Lilia Moritz Schwarcz no posfácio desta edição, narrativas como esta “descrevem um mundo que, apesar de perdido no tempo, continua guardado na memória, agora afetiva”, e que “eternas são as histórias que nasceram para não acabar”.

Feito isso, nem tratores são capazes de derrubá-las.

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Por Fred Linardi

TerradoshomensA elegância é breve, a genialidade é sutil e Antoine de Saint-Exupéry não é apenas o autor do Pequeno Príncipe. Aliás, ele não era só escritor e ilustrador. Traçava suas linhas no papel entre uma viagem e outra que fazia como piloto de avião do correio aéreo europeu. Suas narrativas de viagem são extremamente imagéticas, filosóficas e inspiradoras. Terra dos Homens tem tudo isso e está dividido em capítulos que falam sobre as vivências do autor, suas reflexões sobre a vida, viagens, aviões, sobre o mundo e, sobretudo, sobre o homem. Entramos em contato com o universo que tanto despertou sua criatividade com escritor.

Eis um grande e breve livro dentro do qual cabem suas viagens pela Europa, África e América do Sul, com descrições de paisagens, encontros com pessoas locais e uma inesquecível luta pela sobrevivência no deserto do Saara. O prefácio de Armando Nogueira abre o livro nos convidando para a visão poética de um homem que soube reverenciar a máquina, sem jamais menosprezar o valor do ser humano.

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Por Fred Linardi

xa dos xasExiste um cano de revólver apontado para o meu pé enquanto escrevo sobre essa grande reportagem do respeitado jornalista internacional Ryszard Kapuscinski, que morreu em 2007 de causas naturais, apesar de ter ficado muito perto de armas engatilhadas durante as dezenas de lugares por onde passou. Ao contrário dele, que cobriu 27 golpes de estado e revoluções civis, o meu risco não reside apenas no calibre apontado para meus membros inferiores. O risco está em falar sobre um trabalho como O xá dos xás, segundo título do autor que faz parte da série Jornalismo Literário, da Companhia das Letras, precedido por O imperador.

Uma das primeiras lições que tive sobre Jornalismo Literário referia-se ao estilo que usa de técnicas da literatura para produzir reportagens num estilo, como o próprio nome diz, literário. Isso não significa ficcionalizar o texto, aprendi, mas sim tornar sua narrativa mais atraente ao leitor. Da mesma maneira, já cheguei a ouvir de mestres (no sentido acadêmico da palavra) que o tal estilo permitiria um tanto de invenções por parte do jornalista. Pois bem, o assunto é longo. Mas só para ficar num exemplo, relembro sobre a obra indicada pelo Igor Antunes Penteado na sua mais recente dica de leitura aqui do Canto do Livros – A sangue frio, de Truman Capote –, que será acompanhada por uma sombra eterna pelo fato do jornalista americano ter floreado um final em busca de uma conclusão dramática ao livro, criando um diálogo que jamais existiu na realidade.

Se for para escolher um dos lados, empunho com minhas próprias mãos essa arma que aponto para o meu pé e digo que fico do lado da total veracidade das cenas narradas.

Dito isso, sinto a pressão do gatilho no meu indicador.

Pow!

Ouço um barulho lá fora e quase acredito que é o estouro da minha arma que, na verdade, continua silenciosa. A capa do livro, com fundo preto e escrito em branco e vermelho, me encara. Preciso explicar o motivo de ter escolhido essa obra com menos de 200 páginas para escrever aqui nesse blog. Essa é a história do último xá do Irã, que pretendia transformar seu país numa superpotência – isso também está dito na capa. Outra coisa que ela indica, logo abaixo do subtítulo, é que faz parte da coleção já mencionada lá no primeiro parágrafo.

Então vamos lá. Era uma vez um cara chamado Mohammed Reza Pahlevi que, na década de 1940, herdou de seu pai um país miserável acima do chão e riquíssimo abaixo dele. Toda a riqueza vinda do petróleo abundante servia para enriquecer o próprio bolso, concentrando o poder suficiente para fazer a população de um país inteiro temer cogitar qualquer tentativa de mudança. Os métodos de intimidação eram dos mais complexos, com uma célula do governo repleta de informantes, que consideravam comentários banais como “hoje o céu está nublado” como mensagens subliminares de subversivos na rua. Quem ousasse dizer algo como isso, num ponto de ônibus que fosse, poderia começar a se despedir da vida – não sem antes passar por sessões de tortura que até o capeta duvida.

A história de um Irã tomado pelo egoísmo e crueldade do seu xá é margeada pela narrativa sagaz, a partir de fotos históricas coletadas, além das gravações e anotações de Kapuscinski, que há de perdoar o teclado do meu computador ocidental, que não consegue botar acento agudo no “s” e no “n” do seu sobrenome. Mas ele há de entender certas liberdades, já que… bem, já que ele é dos exemplos que devemos colocar ao lado de livros de não ficção que dão uma inventandinha em alguns trechos. Mas também ao lado de obras que fazem parte do que há de mais exemplar em grandes reportagens. E agora? De uma forma ou de outra, é inegável afirmar que livros como este (ou como A sangue frio) estão entre os mais ousados.

Mas o que Kapuscinski inventa, afinal?

Não sei dizer ao certo. É dito que

Ahhhh….!kapuscinski_01

Ouço um grito vindo da rua. Será que aquele barulho que ouvi vem de uma vítima atingida por um tiro que jamais esperava lhe atravessar o peito? Ou será que veio de alguém que está me vendo pela janela ora com a arma na mesa, ao lado de Kapuscinski, ora voltada para meus pés? Ou será que vem da minha consciência em conflito, sem saber o que dizer depois de ler o posfácio e constatar que, de fato, o velho polonês dava suas viajadas além-fato para escrever esse livro que eu, agora cúmplice de tudo, me deliciei. Cale a boca, Kapu! Arrisco-me demais ao te elogiar.

— Kapu, escute aqui! Sua obra foi chamada de “jornalismo mágico” pelo seu respeitado colega Adam Hochschild e a alcunha foi confirmada por Artur Domoslawski na biografia sobre você, Kapuscinski Não Ficção (ah, se você conhecesse Roberto Carlos em tempo…). Aí, sim, é possível saber o que há de ficção em suas obras de não ficção. Até que enfim alguém para nos esclarecer.

Ficção, sim. Mas vamos com calma (meu pé está suando frio agora). Sem dúvidas, o xá Reza Pahlevi era um tirano que governava sem um pingo de compaixão e, em certos pontos, com alguma dose de burrice, já que todos os ditadores têm seus atos falhos. Queria um país desenvolvido, queria criar “uma grande civilização”, queria que o Irã saísse do zero e se tornasse, em dez anos, um país comparável à Alemanha ou Inglaterra. Tinha dinheiro para isso e muito mais. Trouxe indústrias e importou mão de obra de outros países, já que ali as universidades eram proibidas. Os iranianos que queriam formação superior ganhavam bolsa para estudar fora – e poucos tinham coragem de regressar depois de graduados. Fanático por guerras, comprou um arsenal bélico fora de proporções, sem nem mesmo ter onde abrigar tantas aeronaves e tanques. Mas um dia o povo se desperta para uma revolução, que começa a acontecer em diversas cidades, uma depois da outra… E então Kapuscinski nos presenteia novamente na segunda parte do livro, com um primoroso ensaio sobre como funciona uma revolução. Uma peça fundamental para que se reflita sobre o espírito de um país que passa por esse tipo de evento.

Na obra de Kapu é dito que há personagens e declarações inventadas. Dentro do contexto, elas parecem coerentes, mas ainda assim podem ser fictícias. O perigo neste caso é exatamente quando os limites entre acontecimentos ou pessoas reais ou imaginários não ficam claros para o leitor. E Kapu parece tomar exatamente este cuidado. Tudo flui, os personagens são vivos e coloridos. O perigo, no entanto, é quando começamos a duvidar das histórias que, por ventura, tenham sido frutos do obstinado trabalho de pesquisa e apuração jornalística.

Entre os autores que odeio amar, acredito que sempre estará a sombra de um anti-herói chamado Kapuscinski, batendo a mão nos meus ombros e lembrando que entre a ficção e a realidade existe uma série de questões, escolhas e princípios. Existe também uma mira de um revólver prestes a disparar em nossos pés.

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Fred Linardi

MeuTioHá uma infinidade de livros que inspiraram filmes. Raramente, porém, o filme inspira um livro. É este o caso de Meu tio, escrito a partir do clássico do diretor e ator Jacques Tati, cujo personagem Monsieur Hulot é considerado a versão francesa de Chaplin. O livro segue fielmente o enredo do filme, tendo como narrador o sobrinho de Hulot, que vive numa casa que mais parece uma bolha pós-moderna, impecável e cheia de regras para que as geringonças tecnológicas funcionem perfeitamente. O olhar da criança conduz uma narrativa recheada de graça com a presença de Hulot, que vem para provar que um pouco de caos é muito mais saudável do que o excesso de ordem e polidez.

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Por Fred Linardi

O_LEITOR_1312478771PDepois de se curar de uma forte hepatite, Michael Berg retorna à casa da moça que o ajudou meses antes, no dia em que voltava da escola e passava mal. Leva-lhe flores como agradecimento e, a partir desta visita de gratidão, iniciam um vertiginoso caso de amor. Sua iniciação sexual o leva a se apaixonar por ela. Seu nome é Hana e, apesar de meses de encontros diários em sua casa, pouco se sabe de sua vida além de seu nome e que também acaba se apaixonando pelo garoto. Logo depois, Hana começa a lhe pedir que leia para ela em voz alta os livros que o rapaz está tendo na escola. A rotina passa a ser essa: após ela lhe dar um banho, ele lê algumas páginas e depois fazem amor. Isso acontece até o momento em que Hana some.

O livro O Leitor, de Bernhard Schilink, é narrado pelo próprio Michael, agora depois dos 50 anos de idade e, segundo ele próprio diz, depois de ter um certo distanciamento da história e, como vamos saber mais adiante, por sentir ter uma necessidade de contá-la. Por este mesmo fato, assume que escreve aquilo que consegue relembrar, já que alguns detalhes lhe fogem da memória.

Isso explica também a maneira como o narrador escolhe para contar essa história cuja jornada vai ficando cada vez mais dramática e de desfecho contundente. A prosa é enxuta e as lembranças de um relacionamento que envolve um incendiário amor com o pano de fundo da Alemanha pós-guerra cabem em pouco mais de 200 páginas.

Entre os pesos que o garoto carrega da época está uma grande culpa. A princípio algo mais ingênuo e adolescente, diante da própria relação de amor. Mais adiante, aquela que se defronta já no início da fase adulta, quando é estudante de direito e volta a encontrar Hana por acaso, diante de um tribunal de condenação de guardas nazistas, entre as quais ela aguarda julgamento.

É desnecessário florear o texto diante de um argumento desses, o encontro de duas gerações tão próximas e, ao mesmo tempo, ideologicamente tão distantes. Enquanto o jovem Michael assiste a um país que tenta recuperar sua moral e punir os criminosos da guerra, se confronta diante do envolvimento com uma mulher supostamente responsável pela morte de 300 prisioneiras judias num incidente catastrófico.

Apesar de toda a ressaca moral do país e da tentativa de se fazer justiça, Hana silencia dentro de si um segredo que lhe causa mais vergonha do que qualquer crime. Só que assumir este seu segredo seria um grande argumento a favor de sua defesa. E então prefere ser condenada a uma pena muito mais rígida do que suas cúmplices. Michael, que sabe a verdade que ela esconde, entra num grande dilema: defendê-la contra sua vontade ou deixá-la ser condenada para poupar-lhe de um constrangimento pessoal?

Schilink pensou um romance que retrata o conflito entre a geração da guerra e do pós-guerra e, com esta trama, consegue fugir dos clichês quando se trata da Alemanha de Hitler e seu triste legado. Debruçado sobre os sentimentos que assolam esse contexto, criou uma história aberta para grandes reflexões sobre escolhas, convicções e o próprio acaso. No livro, ficamos com as consequências sofridas pelo protagonista. Seus envolvimentos futuros são marcados pela lembrança que o atormenta e que guarda apenas para si e jamais consegue se desvencilhar da prisioneira.

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Eis aqui também um livro bem sucedido ao ser transposto ao cinema pelo talentoso olhar de Stephen Daldry. O sucesso da versão cinematográfica se dá pela grande fidelidade em relação à obra literária que, adaptações necessárias à parte, não causa prejuízos à história original. O filme lançado em 2008 rendeu diversas indicações e prêmios internacionais. Com toda justiça, a excepcional Kate Winslet conquistou o Oscar, o Globo de Ouro, a Palma de Ouro, entre outras premiações como sua atuação como Hana. Graças ao filme, o livro também pôde ter mais visibilidade em países além da Alemanha e Estados Unidos.

Que uma obra não substitua a outra, porém. Quem não lê o livro perde momentos como um excelente diálogo entre Michael um taxista durante uma viagem a caminho de um campo de concentração desativado. Ou deixará de ler trechos com inquietantes reflexões e prazeres que só a leitura é capaz de proporcionar – aliás, eis o elemento que conduz toda essa história.

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