Crédito: Fernanda Sucupira
Nesta altura do ano, já podemos afirmar que 2012 foi ótimo para Julián Fuks, muito por causa do sucesso – de crítica, veja bem – de seu mais recente livro, Procura do romance, um dos finalistas do importante prêmio Portugal Telecom. Além disso, no ano que finda nos próximos dias, Julián foi escolhido para integrar a Granta com os 20 melhores escritores brasileiros com menos de 40 anos, outro feito considerável. Paulistano filho de pais argentinos exilados no Brasil, o entrevistado deste mês do Canto dos Livros também já escreveu Histórias de literatura e cegueira e Fragmentos de Alberto, Ulisses, Carolina e eu.
Canto dos livros: Comecemos pelo óbvio, qual a importância de ser um dos escolhidos para a Granta dos melhores jovens escritores brasileiros? Isso já teve algum tipo de impacto real na sua carreira?
Julián Fuks: É evidente que foi um lançamento de grande impacto, recebido com ânimos exacerbados, provocando suas polêmicas justificáveis. Mesmo que a literatura não tenha sido o foco de boa parte das discussões, essa repercussão toda deixou claro que não se trata de uma atividade anódina, indiferente, relegada ao interesse de tão poucos. Há vitalidade na literatura brasileira, ao menos no que diz respeito ao funcionamento do mercado – o que, convenhamos, não é grande coisa. Pessoalmente, acho que acabou servindo para me apresentar a um público mais amplo, fazendo circular meu nome. Não chega a ser um fenômeno muito mensurável, mas veio num momento bom da minha vida, somando-se a outras ocorrências agradáveis.
CL: Continuando a falar da Granta, nela, além de muitos contos ambientados totalmente ou parcialmente fora do Brasil, dentre os autores escolhidos temos o Chico Mattoso, que nasceu na França, o Javier Contreras, que nasceu em Salvador mas é de família chilena – os pais vieram para o Brasil fugindo da ditadura –, a Carola Saavedra, que é chilena, o Miguel de Castillo, que é filho de um uruguaio, e você, que, como já dissemos, é filho de pais argentinos exilados no Brasil. O que podemos perceber com isso? Demonstra que a literatura brasileira está, culturalmente, cada vez mais diversa?
JF: A diversidade da literatura brasileira é um fato inquestionável; não poderia ser diferente dada a diversidade do próprio país. Mas não tenho certeza de que a Granta revelou isso: pelo contrário, parece predominar na seleção certa uniformidade de propostas, e talvez de fato haja nisso algo de triste. Mas você pergunta sobre a profusão de semi-hispânicos, e isso eu só posso responder apelando à minha própria experiência. Estou certo de que o exílio de meus pais, exílio que herdei deles e que se expressou sobretudo como um constante estranhamento idiomático, teve sua importância para que eu me tornasse escritor. Há algo de estimulante nesse expatriamento linguístico, e talvez isso explique em alguma medida a existência de outros escritores com biografias parecidas.
CL: De certa forma continuando a aproveitar o assunto Granta, o que acha do atual momento da literatura brasileira? Quais nomes e obras você destaca?
JF: Como disse, a vitalidade que hoje se vê parece muito mais editorial e mercadológica do que propriamente literária. Mas é claro que dessa pujança um tanto problemática acaba por se depreender também a qualidade, até como forma de resistência aos ditames do mercado. Há várias respostas possíveis e interessantes ao problema que aí se coloca. Gosto do rigor do Nuno Ramos, por exemplo, dos jogos lógicos do Alberto Mussa, da ousadia do Reinaldo Moraes, da novidade do Ricardo Lísias. Entre os menos conhecidos, aprecio muito o romance que o Tiago Novaes acaba de lançar, Documentário, que leva o fenômeno tão difundido da autoficção a limites inesperados. E poderia, é claro, estender essa lista por mais umas quantas frases.
CL: Quais autores e obras lhe inspiram?
JF: Pergunta difícil, pois de nada valeria estender aqui uma lista de nomes notáveis. Os que me inspiram são os que propõem a literatura como uma forma de crítica, no sentido mais amplo e agudo da palavra. Crítica de um mundo desigual e injusto, um mundo que desfila tranquilamente suas confortáveis atrocidades. Mas também crítica do próprio pensamento e da própria linguagem, que se fazem instrumentos inócuos a serviço desse mesmo estado de coisas.
CL: Em qual momento de sua vida se deu conta de que seria escritor? Seus primeiros textos – que considera dignos de nota – foram produzidos sob quais circunstâncias?
JF: Me concebi como escritor muito antes de escrever qualquer coisa que prestasse. Escrever parece exigir esse esforço de autoafirmação, esse compromisso com as palavras e com as páginas. Só muito depois de me decidir a isso, e já com a sensação de que me demorava, de que falhava, foi que escrevi meus primeiros contos – os que publiquei em meu primeiro livro. Há neles um pouco dessa desconfiança em relação ao próprio fazer literário, desconfiança que marca meu trabalho até hoje. Há neles certa noção de um fracasso inevitável.
CL: Saramago, autor tardio, teria dito que, se pudesse aconselhar a alguém que pretendesse ser escritor, diria-lhe para ler por trinta anos, depois por mais trinta, para aí então escrever. Sob esta ótica, do alto de seus 31 anos, você seria um tanto precoce (rs). Você já enfrentou dúvidas se você ou seus textos estariam suficientemente maduros? Como olha para seus textos mais antigos? O que pensa deles?
JF: Não serei eu, decerto, o mais indicado para avaliar a maturidade dos meus textos. Sinto que todo escritor sofre de uma hipermetropia: pode enxergar bem a obra dos outros, à distância, mas a sua própria sempre aparece aos seus olhos imprecisa e turva. Com meus textos mais antigos tenho sérios problemas, não consigo lê-los sem uma crítica ferrenha, sem sofrer pela infeliz comparação entre o que fiz e o que poderia ter feito. Já com os textos que vou escrevendo, o entusiasmo e o envolvimento suspendem – nos dias bons – essas leituras mais corrosivas.
CL: Até pelas suas origens, você demonstra um grande interesse pela Argentina e, por extensão, pela literatura argentina. É cada vez mais comum que as pessoas comparem a arte argentina com a brasileira. O que acha dessa comparação?
JF: Análises comparativas podem ser proveitosas, podem ressaltar aspectos despercebidos de cada produção artística. Desde que não se pautem em clichês e visões canhestras de cada cultura, desde que não se apeguem demais a ideias pré-concebidas, para que a comparação não se perca na platitude das rivalidades estúpidas.
CL: Ainda com relação à comparação entre a arte argentina e a brasileira, qual paralelo podemos traçar entre a literatura de cada um destes países? Na sua opinião, quais os pontos mais fortes de cada uma e quais as principais diferenças?
JF: Apesar da proximidade, são posições muito diferentes, perspectivas distintas, tradições quase divergentes em alguns aspectos. Há na literatura brasileira um histórico de engajamento político e de atenção ao social que pouco se vê na literatura argentina, mais marcada por uma produção intelectual e autorreflexiva. Claro que estou falando de predominâncias, que os autores não se resumem a isso e que tampouco as culturas se encerram nessa aparente dicotomia. Os escritores mais interessantes foram justamente os que transgrediram esses limites.
CL: Em novembro você iria apresentar uma palestra sobre Jorge Luis Borges, mas ela foi cancelada porque a prefeitura cortou parte da verba destinada ao Centro Cultural São Paulo. Qual seria o conteúdo desta palestra? Qual faceta do escritor argentino e de sua obra que você iria abordar?
JF: A proposta era confrontar a poesia de Borges com seus próprios princípios, comentar seus poemas à luz de seus ensaios sobre poética. Havia algo de performático em Borges, na retórica de suas posições teóricas, em suas conferências finais sobre literatura. É interessante ver como ele transgride suas próprias propostas em benefício da própria obra, de sua expressividade. Nesse contraste veem-se romper os dogmatismos, as certezas indesejáveis.
CL: Procura do romance foi finalista do prêmio Portugal Telecom, um dos mais importantes que temos para literatura, e, de uma maneira geral, muito bem aceito pela crítica – até o Rodrigo Gurgel, o polêmico jurado C do Jabuti, disse o livro poderia render a você, com louvor, o troféu em forma de tartaruga. Como você vê essa recepção ao seu trabalho?
JF: Fico contente com as deferências e os elogios, óbvio, mas também vou aprendendo aos poucos que não devo levá-los muito a sério, que a literatura fica aquém e além desses processos. Esse foi para mim um ano agitado, cheio de acontecimentos. Escrever, nesse contexto, se tornou quase uma impossibilidade, e o que quero agora é recuperar as condições físicas e mentais necessárias para produzir algo que o valha.
CL: Seguindo a pergunta acima, você leu os outros concorrentes ao Prêmio Portugal Telecom (K, de Bernardo Kucinski, Diário da queda, de Michel Laub, e A máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe, que foi o vencedor)? O que achou do resultado?
JF: Li os livros, e gostei de cada um deles por razões diversas. O resultado me pareceu justo, sim. Valter Hugo Mãe tem uma produção consistente, um domínio invejável de seus próprios recursos que faz dele um escritor prolífico e cuidadoso a um só tempo. E particularmente acertada me pareceu a menção honrosa a Kucinski. O livro dele é de uma importância imensurável, pela história verídica que encerra ou gostaria de encerrar, pelo alcance político e histórico do que se narra.
CL: Pelo pouco que sabemos da sua biografia, muito de sua vida pessoal parece fazer parte de suas obras. Até que ponto – ou com qual intensidade – você faz o que vem sendo chamado de autoficção, ou seja, cria uma obra romanceando a sua própria vida, sua própria história?
JF: É difícil ter certeza se a autoficção é de fato um fenômeno novo, ou se assim se apresenta algo que já era feito por escritores inúmeros de todos os tempos. Em Procura do romance há muito da minha trajetória pessoal, sim, há muito das minhas indagações e preocupações reais, é em parte a minha vida que se destrincha ali. Mas não sei se seria muito diferente se eu me ocupasse de criar lapsos maiores entre mim e meu personagem, se eu exacerbasse o lado ficcional da narrativa e me disfarçasse o máximo que conseguisse. Retorno, sem querer retornar, à velha concepção de que o escritor só escreve sobre si, concepção questionável que precisa ser matizada, mas que tem o seu momento de verdade.
CL: Há aqueles que dizem que a literatura de hoje seria mais descartável, menos densa, tanto pela “aceleração moderna” quanto pela profusão de obras, que soterraria o que poderia se destacar. Por outro lado, há os que entendem que ambos fatores seriam positivos, justamente por segmentarem mais a produção literária e incentivarem sua produção e consumo. Você concorda com algum destes vieses?
JF: Acho que, se há algo de destacável na literatura atual, é o abandono de certo rigor de preceitos que marcava as melhores narrativas ao longo do século XX, em prol de um desejo de soberania, de um anseio por voltar a contar histórias como antes se fazia. A literatura, que tanto parecia ter de se haver com seus próprios impasses e dilemas, agora quer se esquecer deles e se devolver ao mundo, tomada talvez por uma nostalgia de tempos mais profícuos. Resta saber se os tantos retornos que se criam não se dão na forma de um abandono crítico. Algo que lamentavelmente viria a lhe subtrair o peso, o impacto, o alcance possível.
CL: O que você tem lido atualmente?
JF: Justamente, preocupado com essas questões e com a possibilidade de renovação e radicalismo no romance contemporâneo, resolvi escrever um artigo a respeito. Para isso me pus a ler as obras fatídicas daquele que talvez seja o último dos radicais, ou o último dos modernos: Samuel Beckett. Voltei à trilogia do pós-guerra, Molloy, Malone morre e O inominável, e quero ver como vou sair dali. Se conseguir sair.
Read Full Post »