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Posts Tagged ‘Álvaro de Campos’

Por João Dutra

reproduçãoEm entrevista sobre o lançamento de seu novo livro, o escritor Bernardo Carvalho fez críticas ao uso banal da internet.

“[…] E há o narcisismo, a exposição no Facebook, que pega um ponto central. É perverso, a conquista vai em pontos frágeis da psique, você se sente uma celebridade. Do ponto de vista político, você acha que está usando, mas está sendo usado. O livro expressa esse desconforto.”

O tema da comunicação digital faz parte da narrativa de sua nova obra, Reprodução. O personagem central da história é um rapaz chinês que tem como característica marcante a rotina de comentários ofensivos, preconceituosos e anônimos em blogs da internet, além de uma sabedoria predominantemente gerada por artigos da Wikipédia.

Em sua crítica, o autor cita também o comportamento narcísico dos usuários de redes sociais. De fato, a vida editada, na qual só o lado positivo é exposto ao público tem sido motivo de debates e reflexões sob diversas óticas.

A despeito da mediação tecnológica, a questão da supressão de aspectos negativos da vida cotidiana não é novidade. Fernando Pessoa dá voz a Álvaro de Campos, que, em “Poema em Linha Reta”, de forma irônica critica a sociedade que exalta apenas as virtudes de seus membros e causa angústia a ele próprio, simples mortal, na infinidade de seus defeitos e limitações:

“Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; […]”

A angústia apontada pelo poeta se ajuda a explicar um elemento sobressalente da cultura da comunicação digital e, citada por Bernardo Carvalho: a limitação da compreensão da vida sob o ponto de vista do que é compartilhado na internet.

Nesse sentido, é essencial a reflexão sobre o papel da literatura como provedora clássica de críticas que ajudam a dar sentido à nossa existência. Tanto a obra do poeta português, quanto do escritor contemporâneo, atendem ao chamado de compreensão do cenário sócio-político da época em que vivem.

Como aponta o escritor Ricardo Azevedo, ganhador de cinco prêmios Jabuti, a literatura assume, como propósito, a responsabilidade por preencher a falta primordial de sentido do indivíduo. Em mesa da Flip de 2013, ele comenta:

“A literatura e a ficção são alguns dos inventos que o homem fez para tentar preencher as lacunas, as perguntas, as angústias, os vazios.”

Enquanto surgem novas formas de tecnologia e mediação da comunicação, potencializando aspectos perenes da condição humana, é essencial retomar a literatura como porto seguro para as angústias que vivemos em nossas jornadas pessoais.

Cada autor coloca em sua obra um pouco de si e da época em que vive. Em um momento da história em que o mercado parece ser o guia maior dos comportamentos das pessoas, inclusive na literatura, é nos livros clássicos e nas críticas à contemporaneidade que continuamos mantendo nossa postura crítica, por meio de autores capazes de questionar o senso-comum, nos fazendo refletir sobre nossa condição.

Isso, porém, não significa que devamos rejeitar as novidades advindas da evolução na comunicação. Blogs e redes sociais foram protagonistas de protestos e movimentos políticos recentes, no Brasil e no mundo. Ambos fazem parte do dia-a-dia de boa parte das pessoas, sobretudo nas grandes metrópoles.

O que é necessário é justamente avaliar com parcimônia o conteúdo e discernir aquilo que deve ou não ser aproveitado. Fernando Pessoa e Bernardo Carvalho nos alertam para a tendência da sociedade em editar a realidade à sua regalia e o quanto isso pode tornar banal a comunicação.

Neste ponto, é necessário o equilíbrio para se utilizar das ferramentas que indubitavelmente podem potencializar nosso conhecimento e nossa experiência cultural. Como alerta à falta de autenticidade da informação na internet, vale lembrar a frase atribuída ao general romano Pompeu, na obra de Plutarco (106-48 AC) e eternizada por Fernando Pessoa: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Com essa expressão, o general chamava a atenção para o fato de que havia precisão no ato de navegar, visto que era guiada por matemática e outras ciências exatas. Na vida, isso não era possível.

À luz do que nos ensina o guerreiro dos tempos de Império, considerando a importância da internet como ferramenta que potencializa nosso poder de comunicação, mas nos expõe, com frequência, a conteúdo sem muito valor, sobretudo nas redes sociais, há de se crer que, na internet, navegar é preciso, Facebook não é preciso.

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