Por Alberto Naninni
Existe um momento precioso numa leitura – quando, ao ler determinado texto, você se dá conta de algo sobre você mesmo(a) que ignorava até então.
E também, com a imensa diversidade de opiniões que se encontra por aí, hoje mais acessíveis do que nunca, graças a sites e blogs como este, me diga se você já não se sentiu meio “perdido(a)” ante assuntos espinhosos, defendidos de forma bastante convincente por antagonistas? Tudo parece tão bem embasado, que fica difícil tomar uma posição; e, quando a tomamos, diz mais a respeito sobre simpatias e “pré-conceitos” do que sobre lógica ou razão. Bons exemplos se deram aqui no Canto mesmo, ante as discussões sobre os originais racistas de Monteiro Lobato e sobre o voto nulo, ambos escritos buscando solidez argumentiva, e gerando contra-argumentos igualmente sólidos.
De qualquer maneira, ainda que facilitadas as discussões, quando se tratar de alguns assuntos – talvez os mais importantes – nós apenas buscaremos as confirmações de nossas opiniões pré-estabelecidas, ignorando inadvertidamente bons argumentos contrários a elas. Há um experimento que corrobora esta tese, feito pelo psicólogo americano Drew Westen, e também um livro, mencionado no fim deste artigo.
Pois bem.
Em meio a balbúrdia que é o Facebook, suas fotos, seus memes, piadinhas, textos pessimamente escritos e afins, é possível garimpar algumas joias. Com a possibilidade de assinar perfis ou mesmo de adicionar pessoas que tenham relevância dentro dos meios que admiramos ou que tenhamos afinidades, é provável ler bons comentários, receber bons textos, links interessantes, e eventualmente, na leitura de algum deles, possa vir o tal “momento precioso”.
Li no perfil do Rodrigo Casarin um texto da Eliane Brum por ele compartilhado, que reproduzo aqui:
“Desqualificar os índios, sua cultura e a situação de indignidade na qual vive boa parte das etnias é uma piada clássica em alguns meios, tão recorrente que se tornou quase um clichê. Para parte da elite escolarizada, apesar do esforço empreendido pelos antropólogos, entre eles Lévi-Strauss, as culturas indígenas ainda são vistas como “atrasadas”, numa cadeia evolutiva única e inescapável entre a pedra lascada e o Ipad – e não como uma escolha diversa e um caminho possível. Assim, essa parcela da elite descarta, em nome da ignorância, a imensa riqueza contida na linguagem, no conhecimento e nas visões de mundo das 230 etnias indígenas que ainda sobrevivem por aqui.”
Li, e me dei conta: lá estava eu, em meio à tal “elite escolarizada”, prisioneiro de uma visão superficial sobre o “progresso cultural”, por assim dizer, apesar de me achar bastante defensor das minorias e que-tais.
Com este pequeno insight na cabeça, li muitas outras notícias, acontecidas em culturas muitíssimo diferentes daquela que vivo.
E aí veio o me “sentir perdido” – se não há superioridade de uma cultura a outra, como poderei condenar o que acho errado e tomar uma posição, se a justificativa de qualquer ato pode ser como algo típico de determinada cultura? E como balizar aonde eu, com minha cultura, me situo?
O problema é bem mais capcioso que parece.
Há algumas semanas, li a notícia de uma garota paquistanesa de 15 anos, que foi morta pelos próprios pais – tenho que repetir, com ênfase em toda a tristeza e todo o absurdo que daí vem: foi morta pelos próprios pais – que lhe jogaram ácido no rosto e corpo. Ela teria olhado para um garoto, e os pais “defenderam a honra da família”, segundo eles, já manchada pela filha mais velha que teria fugido para se casar. Crimes de honra acontecem corriqueiramente em diversas culturas. Mulheres suspeitas de adultério são queimadas com gasolina, pelos noivos ofendidos ou até pelos próprios familiares; desfiguradas, apedrejadas, enterradas vivas, executadas, barbarizadas, em alguns países no Oriente Médio, Ásia e África (se quiser mais detalhes sobre este horror, leia isso.
Claro que estes são exemplos absurdos destas culturas, e claro que há exemplos extremos na nossa cultura também, mas a questão aqui não é simplesmente pinçar os extremos, mas observar as variações morais, éticas e legais dentre elas. Por causa da infinidade de variações que existe, tais atos são legitimados. Mas, para não ir tão longe, algumas tribos indígenas brasileiras tinham o costume de sacrificar gêmeos ou bebês albinos recém-nascidos, por acreditar que eles trariam mau agouro, enterrando-os logo que nascessem. Num primeiro momento, este outro exemplo parece igualmente extremo e bárbaro. E é, claro. Mas, olhando-o atentamente, em tudo se assemelha ao aborto. Um aborto tardio. A diferença é que a índia não faz pré-natal, e não sabe como ou quantos serão seus filhos.
E o aborto, sem entrar em suas razões ou méritos, algo que mereceria uma discussão à parte, é algo muito mais próximo. Assim, pode-se dizer que todas as culturas, mesmo as indígenas, toleram ou até incentivam um sem-número de barbaridades, segundo suas convenções e costumes. E a minha cultura? Esta, que eu acreditava linearmente superior às outras, atrasadas e arcaicas?
Nela, o Estado de Direito que vigora busca trazer uma igualdade. Se é verdade que há muitos senões a isso, também é verdade que crimes como os já descritos são tipificados, com suas respectivas punições. O sistema econômico incentiva uma concorrência – que, se é um tanto predatória e irresponsável no consumo de matérias-primas e degradação do meio ambiente, também trouxe incontestáveis melhorias e avanços para a vida de milhões e milhões de pessoas, além de praticamente duplicar a expectativa de vida destas num espaço de tempo bastante curto.
Então, é possível detectar porque há uma inconsistência entre uma suposta superioridade que despreza riquezas culturais em detrimento de confortos tecnológicos – algo dificilmente defensável, e esta mesma superioridade, em detrimento de costumes arcaicos – algo plausível, pelo menos no campo moral. Trata-se de medir estas diferenças com a “régua” adequada.
As riquezas culturais de civilizações com milênios de história não podem ser desprezadas. Nossa civilização seria uma criança pequena comparada a estas. Mas eu acredito haver sim uma espécie de “linha evolutiva” do progresso das civilizações e culturas, e acredito que estamos mais evoluídos que a maioria, se aplicarmos esta “régua”: o maior amor ao próximo.
Este critério, uma vez definido o que se entende por amor, esclarece as controvérsias havidas quando confrontadas as culturas e seus costumes. Assim, é indiferente se o jovem anda com seu Ipad ou se pesca no rio com seu arco-e-flecha. Se sua cultura o acolhe, ama, respeita e protege, tentando igualá-lo em direitos e deveres a todos os outros (salvo inevitáveis variações hierárquicas), não há superioridade ou inferioridade a outra cultura. É apenas um outro caminho.
Mas, se ao invés de se amar às pessoas, se ama mais os conceitos e instituições, como a honra, os costumes, a religião, as posses ou o governo, fatalmente se sucederão e se admitirão absurdos como a violência às mulheres e minorias. E isto é um atraso, e um horror, e uma tristeza.
Sim, há na nossa cultura muitos e muitos casos de violência contra mulheres e diversas minorias. Isso é indiscutível. Infelizmente. Não somos o exemplo de amor ao próximo que poderíamos ser, ante o esclarecimento que atingimos. Mas eu até acho que nos dirigimos para isso, timidamente. Prova disso são os militantes pelos direitos de parcelas oprimidas, como por exemplo o movimento feminista, os anti-racistas, e os de defesa dos animais.
Muitos movimentos de defesa das minorias tem sido bastante ativos, e este é um ótimo sinal. Tomando o último citado, quando expandimos o conceito de amor ao próximo aos animais, inferimos que as pessoas que o fazem, em sua absoluta maioria, respeita seus semelhantes como iguais. Ou seja, partem do pressuposto que obviamente não se deve maltratar as pessoas, e muito menos os animais, que são indefesos. Muitos gostam mais deles do que delas, e não os culpo – os animais são puros e desinteressados; as pessoas, nem sempre.
De qualquer forma, apesar destes movimentos, há pouco amor ao próximo, e por isso, há muitas leis. Há inclusive a tentativa de se criminalizar maus-tratos aos animais, e os militantes em defesa deles fazem muito barulho quando flagram algum caso, como o da enfermeira que, sujando sua categoria, torturou até a morte seu cãozinho, sem perceber que estava sendo filmada. De minha parte, acho justo a crueldade ser punida.
Porém, reconheço que, por interesse, contemporizo com outro tipo de crueldade: a que envolve se alimentar de outros animais. É algo cultural, e talvez até genético. Segundo o dr. Dráusio Varella, estaria impresso nos nossos genes o consumo de carne, tanto que salivamos só de cheirar um bife sendo feito. Mas há aqueles que optam por abrir mão deste consumo: os vegetarianos e veganos. Eles transcendem um impulso atávico humano: o de caçar e comer, ainda que não cacemos nada senão em açougues e mercados. E o substituem por um tipo de amor que não despreza o sofrimento causado a um outro ser vivo, criado apenas para o abate, e muitas vezes, em condições extremamente cruéis. Além disso, costumam se tornar vegetarianos ou veganos pela própria vontade – e não por ser um costume do seu povo, ou por ordem de seu líder religioso. Até porque eles costumam prescindir de crenças, já que são guiados pela própria consciência, a ponto de se importar não só com seus semelhantes, mas também com os outros seres vivos.
Por estes motivos, acredito que eles sejam a próxima “linha evolutiva” humana, e a princípio, moralmente superiores. Aliás, possivelmente, num futuro talvez não tão distante, seremos vistos como neandertais, com nossos churrascos e frigoríficos.
Enfim, as violências – culturais ou não – que se passam do outro lado do mundo chegam até mim, assim como aquelas que literalmente batem à minha porta, ou chegam à minha mesa. Os movimentos pelos direitos humanos e animais – mais fortes e presentes em algumas culturas do que outras – também. Então, posso respeitar as culturas e diferenças, mas, munido da medida do amor, também posso ver que, quanto mais tradicionalista e fechada uma cultura seja, mais distorções e violência contra os seus ela tende a abrigar. Em contraponto, quanto mais progressista e aberta seja outra, mais ela tenderá a dar voz aos seus, e, por conseguinte, mais equilibrada e justa ela possivelmente será.
Depreende-se então que desta cisma se originou um outro tipo de desafio: como se estar conectado a tudo e não ser massacrado por isso.
O genial David Foster Wallace, jornalista e escritor americano, escreveu um relato cru sobre um tal Festival da Lagosta, que acontece nos EUA, para uma revista especializada, que foi de certa forma até corajosa em publicá-lo, ante a posição que ele toma e as reflexões que ele faz.
Creio ter chegado a conclusões parecidas. O homem é abjeto. Vil, ditador, mesquinho e cruel. Animal em suas pulsões. Ler sobre as barbaridades que alguns são capazes, as fazendo por causa de sua cultura ou por outra justificativa qualquer, nos dá a sensação de que somos melhores, que não faríamos aquilo em hipótese nenhuma. Bem, pesquisas consagradas contestam isso: somos capazes dos piores atos, se arrumarmos uma justificativa que considerarmos plausível, como obediência, costume, autodefesa ou “forte emoção”.
Não admira que David Foster Wallace, capaz de enxergar tanto sobre si e seus semelhantes até num Festival de Lagostas, não tenha mais aguentado viver. Ser sensível demais, enxergar demais, traz desespero. É necessário um embotamento, uma “correria” atarantada, que consome futilidades, que acumula coisas, que se engana com um juízo distorcido de si mesmo, e que ignora, ou finge ignorar, o quanto de vaidade há nisso tudo. E mais que isso, é necessária uma “dessensibilização” aos absurdos do mundo, como um antídoto, que nos possibilita viver e até ser felizes.
Como uma espécie de ácido que nós mesmos derramamos em nossas consciências.
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O novo livro traduzido de David Foster Wallace, publicado quatro anos após sua morte, Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, da Cia. das Letras, acabou de chegar às livrarias, e tem o ensaio “Pense na Lagosta”, mencionado aqui. Também pode ser lido no site da revista piauí.
O livro mencionado que aprofunda a noção de que só procuramos a confirmação das nossas teses é o Previsivelmente Irracional, da Elsevier, escrito pelo psicólogo e professor americano Dan Ariely.
Agora, consigo marcar uma posição de qual lugar minha cultura ocupa (e eu dentro dela). Muito longe da perfeição ela está, e muito para se envergonhar existe. Consumir carne e esgotar o meio-ambiente, ligar pouco para as minorias, fazer parte de um sistema que mais separa e exclui do que o contrário. Confere. Mesmo assim, afirmo haver grande diferença entre cometer estes e outros pecados, e cometer não apenas estes, mas ainda outros piores, contra qualquer um, por motivo de ódio, costumes medievais e ignorância – pura, grossa e cascuda. Em relação a estas pessoas, cuja cultura autoriza e estimula este tipo de ação, só preciso ver a foto de UMA das milhares e milhares de vítimas que eles desfiguraram com seus ácidos e preconceitos para dizer: atrasados. Covardes. Bárbaros. Desumanos.
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