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Posts Tagged ‘Julián Fuks’

Por Rodrigo Casarin

cronicas de viagemAntes dos holofotes da cena literária se voltarem para Paulo Coelho, Luiz Ruffato e a polêmica das biografias, um tema que vinha novamente sendo bastante discutido era a autoficção, muito por conta do lançamento de Divórcio, de Ricardo Lísias. A edição 162 do Rascunho, inclusive, trouxe o excelente ensaio A imposição do “eu”, de Luciana Hidalgo, obrigatório para quem se interessa pelo assunto.

Uma obra que poderia incitar algo nas conversas é Crônicas de viagem, de Peter Ferry. Nela, um escritor chamado Peter Ferry conta para os seus alunos de escrita criativa uma história que ganha força e passa a ser a narrativa principal do livro. Ferry diz que presenciou um acidente, e que neste uma mulher, Lisa Kim, morreu. Contudo, ele supostamente poderia ter evitado a tragédia e, por isso, carrega consigo a culpa. Decide, então, investigar quem era aquela mulher.

Em seguida, a história dessa busca se mistura com elementos da vida particular de Ferry. O relacionamento com Lydia, sua companheira, começa a degringolar por conta da fixação do parceiro por saber quem era Lisa. Também precisa se afastar das salas de aula e viajar para conseguir continuar a escrever a história — que está sendo contada para seus alunos, vale lembrar. De certa forma, o que chega aos leitores é seu tatear, a busca por ela e por como contá-la, algo que remete ao que Julián Fuks fez em Procura do romance.

E as crônicas de viagem?

Antes de nos aprofundarmos em por que o livro poderia contribuir para a discussão da autoficção, vale dizer que Crônicas de viagem não é um livro de viagem, e nem de crônicas de viagem, como seria de se esperar. Não das viagens a que a palavra nos remete, aquelas em que nos deslocamos de um lugar para o outro e vivemos durante algum tempo numa realidade distinta da que estamos habituados. É sim um romance que traz alguns relatos de viagens. O mais interessantes deles é sobre Bangkok, na Tailândia. Ferry, o personagem, fala com aparente propriedade sobre as famosas putas do sudeste asiático, parece se apaixonar por elas. Sobre a cidade, define: “Bangkok é o bordel da Ásia… A cidade inteira exala uma ligeira sordidez”.

Viaja também para duas cidades mexicanas: San Miguel de Allende e Curnavaca, onde passa um longo período porque o lugar tem uma calmaria boa para um escritor, detecta que por lá pessoas são menos importantes que máquinas e conhece Charlie, “um homem complexo, original, perturbado, multidimensional, autoinventado, cheio de falhas e idiota, mas um homem completo”, um dos personagens mais interessantes da obra. Outros destinos são as florestas canadenses e, ao final, Doolin, na Irlanda.

Mas esses deslocamentos são passagens pontuais e estão longe de caracterizar o livro como uma narrativa de viagem. “Crônicas de viagem. É uma espécie de metáfora”, diz o protagonista em um diálogo. E é uma pena, pois essas viagens são as partes mais interessantes do livro, muito melhores do que quando estamos na história principal.

Voltando à discussão

Até aqui, encarei o Peter Ferry do livro somente como um personagem homônimo de seu criador. Entretanto, vale trazermos alguns poucos elementos biográficos do Peter Ferry de carne e osso. Como seu personagem, obviamente, ele também é escritor. Também é professor e escreve crônicas de viagem. Com isso, e pela maneira que a história é narrada e estruturada (um livro de Peter Ferry, que tem como personagem um professor chamado Peter Ferry que cria uma história com um também professor Peter Ferry), a confusão é inevitável. Mas é nos diálogos que o personagem trava com os alunos que aparecem alguns elementos que realmente poderiam contribuir com a discussão.

De início, o professor deixa claro que a história que está contando é inventada e mostra a força que uma narrativa pode ter:

É claro que nada disso aconteceu na realidade. Eu já disse isso a vocês quatro vezes, e vocês sabem que não aconteceu. Mas olhem para vocês. Estão todos interessados, querem saber o resto, querem saber se ela estava nua, o que havia de errado com ela, o que eu fiz ou deixei de fazer e todo o resto, embora eu esteja inventando tudo isso bem na cara de vocês. É por isso que as histórias são tão poderosas.

“Estou tirando essa história da minha cabeça agora”, diz em outra oportunidade para depois embaralhar tudo: “A história da moça no carro realmente aconteceu, é claro, ou poderia ter acontecido, ou talvez tenha mesmo acontecido”. O que fica é a boa bagunça na cabeça dos alunos — e do leitor.

Ora, mas se o criador da história já disse que ela é inventada, por que não acreditamos? Simples: porque a mentira pode estar nessa informação.

O problema está já na epígrafe do livro, uma citação de E. M. Forster: “Os homens no rio estavam pescando. (Mentira; mas também assim é a maioria das informações)”. Pouco importa se pescavam ou não. Para ir mais além, independentemente de verdades ou falsidades, o que interessa é que o máximo que conseguimos atingir é uma versão de uma história real que, se não é uma mentira, também está longe de ser a realidade. Pode ser uma verdade, mas, para alcançar essa uma verdade, abrimos mão de infinitas outras — parece confuso, e é mesmo. De certa forma, é esse ponto que Lísias aborda em seus discursos e é essa falta de limites entre o inalcançável e irretratável real (que talvez pudesse ser encarado como a totalidade das verdades) e o fictício que Javier Cercas usa tão bem em suas criações arraigadas em eventos históricos, por exemplo.

Mas, voltando ao livro de Ferry, o tempo todo disse que ele poderia acrescentar algo à discussão, só que isso não deverá acontecer, pois a obra em si deixa a desejar. Sua história central não funciona bem, as crônicas de viagem, apesar de boas, mais confundem do que contribuem e diversas situações deveriam ser trabalhadas com um cuidado maior: muita coisa acontece de maneira fácil, discussões na sala de aula contam com vozes secundárias que mais parecem filmes pessimamente dublados, e pontos interessantes que mereciam ser explorados são deixados de lado. Em determinado momento, o personagem Ferry diz para seus alunos “Um escritor precisa acreditar que o que está escrevendo naquele exato momento é a coisa mais importante que alguém já escreveu na vida”. Será que Ferry, o escritor, acreditava Crônicas de viagem era a coisa mais importante que ele escreveu na vida? Acho que não.

Texto publicado originalmente na edição 163 do jornal literário Rascunho.

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entrevista_desenhoNesses mais de quatro anos de Canto dos Livros, as entrevistas que procuramos fazer mensalmente se tornaram um dos principais diferenciais do blog. Por isso, resolvemos reunir os links de todas as conversas que tivemos com pessoas do meio literário em um só post. Abaixo, trechos de dez delas e, em seguida, uma relação com todos aqueles que já falaram conosco. Para ler uma entrevista na íntegra, basta clicar sobre os nomes dos entrevistados. Divirta-se!

“Perceber o mundo como um morador local o percebe é fundamental para escrever com realismo e convencer o leitor de que ele está entrando num mundo especial, diferente do seu dia-a-dia” – Airton Ortiz

“Adoro o cotidiano mais prosaico, um ponto de ônibus, um sofá com televisão, um almoço qualquer” – Andréa del Fuego

“Por mais interessantes e diferentes que tenham sido as experiências que vivi durante a viagem, tenho escolhido não estacionar em vida nenhuma. Isso não quer dizer viver superficialmente, à deriva, do tipo ‘pra onde me chamar eu vou’. É, na verdade, uma tentativa de se manter aberto, receptivo às novidades” – Antonio Lino

“Toda narrativa pública transporta implicitamente uma visão de mundo, contribuindo ou para manter o grau de consciência do leitor num nível muito baixo de entendimento da realidade, ou ajudando-o a despertar para uma visão transformadora, que não termina no ângulo puramente derrotista, negativista” – Edvaldo Pereira Lima

“Geralmente, há uma esnobação equivocada que cerca a ficção. Eu adoro belos romances, mas a verdade é que genialidade na ficção é rara e a vasta maioria dos autores que se empenha em fazê-lo acaba produzindo uma bobagem banal” – Jeremy Mercer

“A ficção é parte do real, não se opõe a ele; não é o oposto da verdade. A ficção é um modo de se tornar visíveis relações constitutivas do real” – José Luiz Passos

“Sinto que todo escritor sofre de uma hipermetropia: pode enxergar bem a obra dos outros, à distância, mas a sua própria sempre aparece aos seus olhos imprecisa e turva” – Julián Fuks

“Acho que no geral há uma possibilidade razoável de nos próximos anos termos bons livros para ler. No entanto, parece-me que boa parte da produção ainda reproduz – sem criticar ou, ainda pior, aderindo ao que há de pior no Brasil. Digamos que estamos diante, se formos falar no geral, de uma produção amena e edulcorada” – Ricardo Lísias

“O que mais me incomodava, além dos entraves burocráticos, era a minha completa inaptidão para conversar com as pessoas. Às vezes eu ficava em silêncio ao lado de algum entrevistado vendo os ônibus passarem, por puro pânico e falta de perguntas. Isso às vezes era uma vantagem, porque o sujeito acabava falando qualquer coisa que lhe viesse à mente” – Vanessa Barbara

Alex Robinson

Augusto Paim

Bernardo Carvalho

Claudio Brites

Cristina Cezar

Eric Novello

Felipe Pena

Ferréz

F. T. Farah

Lehgau-Z Qarvalho

Marcelo Maluf

Monica Martinez

Nazarethe Fonseca

Nelson Magrini

Paulão de Carvalho

Reinaldo Moraes

Renato Modernell

Tatiana Salem Levy

Xico Sá

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Crédito: Fernanda Sucupira

Crédito: Fernanda Sucupira

Nesta altura do ano, já podemos afirmar que 2012 foi ótimo para Julián Fuks, muito por causa do sucesso – de crítica, veja bem – de seu mais recente livro, Procura do romance, um dos finalistas do importante prêmio Portugal Telecom. Além disso, no ano que finda nos próximos dias, Julián foi escolhido para integrar a Granta com os 20 melhores escritores brasileiros com menos de 40 anos, outro feito considerável. Paulistano filho de pais argentinos exilados no Brasil, o entrevistado deste mês do Canto dos Livros também já escreveu Histórias de literatura e cegueira e Fragmentos de Alberto, Ulisses, Carolina e eu.

Canto dos livros: Comecemos pelo óbvio, qual a importância de ser um dos escolhidos para a Granta dos melhores jovens escritores brasileiros? Isso já teve algum tipo de impacto real na sua carreira?

Julián Fuks: É evidente que foi um lançamento de grande impacto, recebido com ânimos exacerbados, provocando suas polêmicas justificáveis. Mesmo que a literatura não tenha sido o foco de boa parte das discussões, essa repercussão toda deixou claro que não se trata de uma atividade anódina, indiferente, relegada ao interesse de tão poucos. Há vitalidade na literatura brasileira, ao menos no que diz respeito ao funcionamento do mercado – o que, convenhamos, não é grande coisa. Pessoalmente, acho que acabou servindo para me apresentar a um público mais amplo, fazendo circular meu nome. Não chega a ser um fenômeno muito mensurável, mas veio num momento bom da minha vida, somando-se a outras ocorrências agradáveis.

CL: Continuando a falar da Granta, nela, além de muitos contos ambientados totalmente ou parcialmente fora do Brasil, dentre os autores escolhidos temos o Chico Mattoso, que nasceu na França, o Javier Contreras, que nasceu em Salvador mas é de família chilena – os pais vieram para o Brasil fugindo da ditadura –, a Carola Saavedra, que é chilena, o Miguel de Castillo, que é filho de um uruguaio, e você, que, como já dissemos, é filho de pais argentinos exilados no Brasil. O que podemos perceber com isso? Demonstra que a literatura brasileira está, culturalmente, cada vez mais diversa?

JF: A diversidade da literatura brasileira é um fato inquestionável; não poderia ser diferente dada a diversidade do próprio país. Mas não tenho certeza de que a Granta revelou isso: pelo contrário, parece predominar na seleção certa uniformidade de propostas, e talvez de fato haja nisso algo de triste. Mas você pergunta sobre a profusão de semi-hispânicos, e isso eu só posso responder apelando à minha própria experiência. Estou certo de que o exílio de meus pais, exílio que herdei deles e que se expressou sobretudo como um constante estranhamento idiomático, teve sua importância para que eu me tornasse escritor. Há algo de estimulante nesse expatriamento linguístico, e talvez isso explique em alguma medida a existência de outros escritores com biografias parecidas.

CL: De certa forma continuando a aproveitar o assunto Granta, o que acha do atual momento da literatura brasileira? Quais nomes e obras você destaca?

JF: Como disse, a vitalidade que hoje se vê parece muito mais editorial e mercadológica do que propriamente literária. Mas é claro que dessa pujança um tanto problemática acaba por se depreender também a qualidade, até como forma de resistência aos ditames do mercado. Há várias respostas possíveis e interessantes ao problema que aí se coloca. Gosto do rigor do Nuno Ramos, por exemplo, dos jogos lógicos do Alberto Mussa, da ousadia do Reinaldo Moraes, da novidade do Ricardo Lísias. Entre os menos conhecidos, aprecio muito o romance que o Tiago Novaes acaba de lançar, Documentário, que leva o fenômeno tão difundido da autoficção a limites inesperados. E poderia, é claro, estender essa lista por mais umas quantas frases. 

CL: Quais autores e obras lhe inspiram?

JF: Pergunta difícil, pois de nada valeria estender aqui uma lista de nomes notáveis. Os que me inspiram são os que propõem a literatura como uma forma de crítica, no sentido mais amplo e agudo da palavra. Crítica de um mundo desigual e injusto, um mundo que desfila tranquilamente suas confortáveis atrocidades. Mas também crítica do próprio pensamento e da própria linguagem, que se fazem instrumentos inócuos a serviço desse mesmo estado de coisas. 

CL: Em qual momento de sua vida se deu conta de que seria escritor? Seus primeiros textos – que considera dignos de nota – foram produzidos sob quais circunstâncias?

JF: Me concebi como escritor muito antes de escrever qualquer coisa que prestasse. Escrever parece exigir esse esforço de autoafirmação, esse compromisso com as palavras e com as páginas. Só muito depois de me decidir a isso, e já com a sensação de que me demorava, de que falhava, foi que escrevi meus primeiros contos – os que publiquei em meu primeiro livro. Há neles um pouco dessa desconfiança em relação ao próprio fazer literário, desconfiança que marca meu trabalho até hoje. Há neles certa noção de um fracasso inevitável. 

CL: Saramago, autor tardio, teria dito que, se pudesse aconselhar a alguém que pretendesse ser escritor, diria-lhe para ler por trinta anos, depois por mais trinta, para aí então escrever. Sob esta ótica, do alto de seus 31 anos, você seria um tanto precoce (rs). Você já enfrentou dúvidas se você ou seus textos estariam suficientemente maduros? Como olha para seus textos mais antigos? O que pensa deles?

JF: Não serei eu, decerto, o mais indicado para avaliar a maturidade dos meus textos. Sinto que todo escritor sofre de uma hipermetropia: pode enxergar bem a obra dos outros, à distância, mas a sua própria sempre aparece aos seus olhos imprecisa e turva. Com meus textos mais antigos tenho sérios problemas, não consigo lê-los sem uma crítica ferrenha, sem sofrer pela infeliz comparação entre o que fiz e o que poderia ter feito. Já com os textos que vou escrevendo, o entusiasmo e o envolvimento suspendem – nos dias bons – essas leituras mais corrosivas. 

CL: Até pelas suas origens, você demonstra um grande interesse pela Argentina e, por extensão, pela literatura argentina. É cada vez mais comum que as pessoas comparem a arte argentina com a brasileira. O que acha dessa comparação?

JF: Análises comparativas podem ser proveitosas, podem ressaltar aspectos despercebidos de cada produção artística. Desde que não se pautem em clichês e visões canhestras de cada cultura, desde que não se apeguem demais a ideias pré-concebidas, para que a comparação não se perca na platitude das rivalidades estúpidas.

CL: Ainda com relação à comparação entre a arte argentina e a brasileira, qual paralelo podemos traçar entre a literatura de cada um destes países? Na sua opinião, quais os pontos mais fortes de cada uma e quais as principais diferenças?

JF: Apesar da proximidade, são posições muito diferentes, perspectivas distintas, tradições quase divergentes em alguns aspectos. Há na literatura brasileira um histórico de engajamento político e de atenção ao social que pouco se vê na literatura argentina, mais marcada por uma produção intelectual e autorreflexiva. Claro que estou falando de predominâncias, que os autores não se resumem a isso e que tampouco as culturas se encerram nessa aparente dicotomia. Os escritores mais interessantes foram justamente os que transgrediram esses limites. 

CL: Em novembro você iria apresentar uma palestra sobre Jorge Luis Borges, mas ela foi cancelada porque a prefeitura cortou parte da verba destinada ao Centro Cultural São Paulo. Qual seria o conteúdo desta palestra? Qual faceta do escritor argentino e de sua obra que você iria abordar?

JF: A proposta era confrontar a poesia de Borges com seus próprios princípios, comentar seus poemas à luz de seus ensaios sobre poética. Havia algo de performático em Borges, na retórica de suas posições teóricas, em suas conferências finais sobre literatura. É interessante ver como ele transgride suas próprias propostas em benefício da própria obra, de sua expressividade. Nesse contraste veem-se romper os dogmatismos, as certezas indesejáveis.

CL: Procura do romance foi finalista do prêmio Portugal Telecom, um dos mais importantes que temos para literatura, e, de uma maneira geral, muito bem aceito pela crítica – até o Rodrigo Gurgel, o polêmico jurado C do Jabuti, disse o livro poderia render a você, com louvor, o troféu em forma de tartaruga. Como você vê essa recepção ao seu trabalho?

JF: Fico contente com as deferências e os elogios, óbvio, mas também vou aprendendo aos poucos que não devo levá-los muito a sério, que a literatura fica aquém e além desses processos. Esse foi para mim um ano agitado, cheio de acontecimentos. Escrever, nesse contexto, se tornou quase uma impossibilidade, e o que quero agora é recuperar as condições físicas e mentais necessárias para produzir algo que o valha. 

CL: Seguindo a pergunta acima, você leu os outros concorrentes ao Prêmio Portugal Telecom (K, de Bernardo Kucinski, Diário da queda, de Michel Laub, e A máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe, que foi o vencedor)? O que achou do resultado?

JF: Li os livros, e gostei de cada um deles por razões diversas. O resultado me pareceu justo, sim. Valter Hugo Mãe tem uma produção consistente, um domínio invejável de seus próprios recursos que faz dele um escritor prolífico e cuidadoso a um só tempo. E particularmente acertada me pareceu a menção honrosa a Kucinski. O livro dele é de uma importância imensurável, pela história verídica que encerra ou gostaria de encerrar, pelo alcance político e histórico do que se narra. 

CL: Pelo pouco que sabemos da sua biografia, muito de sua vida pessoal parece fazer parte de suas obras. Até que ponto – ou com qual intensidade – você faz o que vem sendo chamado de autoficção, ou seja, cria uma obra romanceando a sua própria vida, sua própria história?

JF: É difícil ter certeza se a autoficção é de fato um fenômeno novo, ou se assim se apresenta algo que já era feito por escritores inúmeros de todos os tempos. Em Procura do romance há muito da minha trajetória pessoal, sim, há muito das minhas indagações e preocupações reais, é em parte a minha vida que se destrincha ali. Mas não sei se seria muito diferente se eu me ocupasse de criar lapsos maiores entre mim e meu personagem, se eu exacerbasse o lado ficcional da narrativa e me disfarçasse o máximo que conseguisse. Retorno, sem querer retornar, à velha concepção de que o escritor só escreve sobre si, concepção questionável que precisa ser matizada, mas que tem o seu momento de verdade. 

CL: Há aqueles que dizem que a literatura de hoje seria mais descartável, menos densa, tanto pela “aceleração moderna” quanto pela profusão de obras, que soterraria o que poderia se destacar. Por outro lado, há os que entendem que ambos fatores seriam positivos, justamente por segmentarem mais a produção literária e incentivarem sua produção e consumo. Você concorda com algum destes vieses?

JF: Acho que, se há algo de destacável na literatura atual, é o abandono de certo rigor de preceitos que marcava as melhores narrativas ao longo do século XX, em prol de um desejo de soberania, de um anseio por voltar a contar histórias como antes se fazia. A literatura, que tanto parecia ter de se haver com seus próprios impasses e dilemas, agora quer se esquecer deles e se devolver ao mundo, tomada talvez por uma nostalgia de tempos mais profícuos. Resta saber se os tantos retornos que se criam não se dão na forma de um abandono crítico. Algo que lamentavelmente viria a lhe subtrair o peso, o impacto, o alcance possível. 

CL: O que você tem lido atualmente?

JF: Justamente, preocupado com essas questões e com a possibilidade de renovação e radicalismo no romance contemporâneo, resolvi escrever um artigo a respeito. Para isso me pus a ler as obras fatídicas daquele que talvez seja o último dos radicais, ou o último dos modernos: Samuel Beckett. Voltei à trilogia do pós-guerra, Molloy, Malone morre e O inominável, e quero ver como vou sair dali. Se conseguir sair.

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A Granta, uma das revistas literárias mais importantes do mundo, enfim divulgou os autores que estarão presentes na edição com os 20 melhores jovens escritores brasileiros. Eis os nomes:

Antonio Prata

Antonio Xerxenesky

Carola Saavedra

Carol Bensimon

Chico Matoso

Cristiano Aguiar

Daniel Galera

Emilio Fraia

Javier Arancibia Contreras

João Paulo Cuenca

Julián Fuks

Laura Edler

Leandro Sarmatz

Luisa Geisler

Michel Laub

Miguel del Castillo

Ricardo Lísias

Tatiana Salém Levy

Vanessa Barbara

Vinicius Jatobá

Participaram 247 escritores nascidos desde 1972 que já publicaram ao menos um texto em meio impresso. Dentre os escolhidos, já entrevistamos Vanessa Barbara e Ricardo Lísias e resenhamos Procura do romance, de Julián Fucks.

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Ricardo Lísias é um dos escritores nacionais de quem os leitores mais podem esperar algo atualmente. Autor de O livro dos mandarins, obra singular sobre o mundo corporativo, também escreveu Cobertor de estrelas, que foi traduzido para o espanhol e o galego, Duas praças, terceiro colocado no Prêmio Portugal Telecom de 2006 e Anna O. e outras novelas, de contos. O céu dos suicidas, seu próximo romance, já está no forno e deverá ser lançado até o começo de abril pela editora Alfaguara. Confira abaixo uma entrevista com Ricardo, onde ele fala sobre O livro dos mandarins, prêmios literários e, dentre outras coisas, o texto que escreveu recentemente para a revista Piauí.

Canto dos Livros: Para começar, o que é literatura para você?

Ricardo Lísias: Muita coisa especial, mas nesse momento da minha vida estou preferindo praticá-la a pensá-la. Talvez possa dizer que entre tanta coisa, uma das que mais me agrada é a forma particularmente profunda e eficaz de expressão.

CL: Qual o papel da literatura de ficção?

RL: Creio também que muitos: entre eles, fugir da vulgaridade, fugir do lugar-comum, resguardar discursos particulares etc.

CL: Como vê a literatura não ficcional?

RL: Acho que dentro de suas particularidades, pode ser tão especial quanto a ficção. Eu não colocaria em patamares diferentes Franz Kafka e Walter Benjamin.

CL: O livro dos mandarins pode ser considerado um retrato dos executivos atuais? Como o livro foi recebido por pessoas dessa classe?

RL: Em parte, sim. Tive notícias apenas das pessoas que serviram como informantes. Todas gostaram. Muita gente que trabalhou nesse meio – sobretudo em bancos – me disse que a representação e  ideologia também ficaram adequadas. Mas algumas pessoas também se sentiram agredidas pelo livro. Recebi algumas manifestações nesse sentido.

CL: Em O livro dos mandarins quase todos os seus personagens se chamam Paulo (ou Paul, Pablo…). Por que a escolha por esse recurso e esse nome especificamente?

RL: Há a tentativa de mostrar a despersonalização das pessoas no ambiente corporativo. O nome Paulo foi utilizado porque foi o que eu achei que permite um grande número de variações.

CL: O livro dos mandarins foi lançado em 2009 e provavelmente concorreu aos prêmio de 2010, quando Minha mãe se matou sem dizer adeus, de Evandro Affonso Ferreira, ganhou o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, Leite derramado, de Chico Buarque, levou o Jabuti de melhor livro do ano de Ficção – enquanto Se eu fechar os olhos agora, de Edney Silvestre, foi escolhido como melhor romance – e o mesmo Leite derramado venceu o Prêmio Portugal Telecom, apenas para ficarmos em três premiações das mais conhecidas. Em uma entrevista para a revista Vice, você diz não ter recebido nenhum grande prêmio com O livro dos mandarins por ter uma postura que desagrada muitos jurados, por não fazer média com os outros. Você acredita que o seu livro seja superior a todos esses citados?

RL: Não acho que eu tenha dito exatamente isso para a Vice, mas não vou olhar a revista agora, para não me influenciar com a resposta aqui. Eram também dois momentos diferentes para mim. Antes de tudo, acho que o livro de Evandro Affonso Ferreira saiu um ano depois do meu, não creio que concorremos a nada juntos. Mas já respondendo a uma parte da pergunta, acho o livro dele bom, como também acho bom o romance do Chico Buarque. Já o livro do Edney Silvestre, acho muito bem feito e bom como os outros dois, mas com um detalhe: é um livro claramente infanto-juvenil. Para esse público, é excelente. 

Eu li uma parte das “discussões” que se seguiram às premiações sobre o livro do Edney Silvestre e do Chico Buarque e fiquei impressionado como não houve nenhum tipo de atenção a esse detalhe. Como quase sempre, aliás, não houve discussão estética…

De resto, não acho de forma alguma que meu livro tenha sido prejudicado (ou não tenha sido…) em prêmios literários por causa de alguma possível radicalidade. Sequer me sinto à vontade para dizer que há alguma radicalidade no meu romance. Não é minha função, como também não é minha função dizer se eu merecia ter ganho ou não, ou aliás, quem merecia.

O que acho claramente é que os prêmios e tudo o que cerca a literatura brasileira são parte do Brasil, portanto também um reflexo dele. É só pensar nas eleições: de vez em quando, elegemos de longe o melhor candidato, outras vezes, o Tiririca. Prêmios dizem mais sobre o júri do que sobre o autor vencedor e os outros. Também não quero ser hipócrita: o dinheiro é importante, lógico, facilita o trabalho de todo mundo.

Acho ainda que o comportamento “morno” de muitos grandes ganhadores de prêmio no Brasil os ajuda a chegar ao consenso. Dificilmente um senhor desses faz alguma declaração incômoda…

Mas de jeito nenhum eu me sinto prejudicado: ganhei alguns, perdi outros, mas frequento boa parte dessas listas já faz tempo, e nunca fiz nenhuma concessão, de nenhuma ordem. Nem vou fazer.

CL: Por outro lado, O livro dos mandarins foi o último campeão da Copa de Literatura Brasileira, ganhando de goleada d’O filho da mãe, do Bernardo Carvalho, na final. Isso tem alguma importância para você?

RL: Sem dúvida, muita importância. Em primeiro lugar, muitos dos textos sobre o meu livro eram ótimos e mostravam coisas que eu não tinha visto. Depois confirmaram algo que venho sentindo há algum tempo: que meus textos cada vez mais agradam as novas gerações de leitores, inclusive muitos afastados do mainstream literário e com reservas a ele. A Copa de Literatura está fora dos espaços já muito viciados. Fiquei bastante satisfeito com o resultado.   

CL: Você tem um conto chamado Concentração, na Granta edição de narrativas e contos de viagem. Sua estrutura é perspicaz, acompanhando acontecimentos dramaticamente irônicos em torno do personagem Damião. Como foi o processo de criação desta narrativa?  

RL: Em 2001, em julho, tive um problema em uma conexão e acabei ficando bastante tempo no aeroporto de Buenos Aires. Comprei alguns jornais e fiquei espantado com a situação do país. Como já gostava de literatura latino-americana e tinha estudado os movimentos autoritários dessa região, mergulhei na história argentina e desde esse mesmo ano visitei o país algumas vezes. Comecei a escrever ainda no aeroporto. Devo tê-lo refeito inúmeras vezes em vários anos. Comprei alguns arquivos de jornais e fiz algumas pequenas coleções de material histórico sobre a Argentina, até concluir esse conto, em 2008. Foi o texto em que trabalhei por mais tempo até hoje, mesmo contando os romances. Tive certa obsessão pela história e pela literatura argentina, mas ela já passou.

CL: O que você pensa dos outros escritores de sua geração? Quais destaca?

RL: É incômodo para mim responder essa pergunta de maneira pontual, porque uns poucos deles são amigos muito próximos, então não vou citá-los. Acho que a Vanessa Barbara é bastante notável em vários aspectos, inclusive (ou sobretudo) tecnicamente. Também gostei bastante do livro do José Luis Passos (Nosso grão mais fino) e tenho bastante expectativa com relação ao próximo dele. Gostei de tudo o que li até hoje do Julian Fuks também. O livro de Brisa Paim me surpreendeu. Também gostei dos últimos textos da Verônica Stigger, achei-os bastante originais. Acho que no geral há uma possibilidade razoável de nos próximos anos termos bons livros para ler. No entanto, parece-me que boa parte da produção ainda reproduz – sem criticar ou, ainda pior, aderindo ao que há de pior no Brasil. Digamos que estamos diante, se formos falar no geral, de uma produção amena e edulcorada.

Eu gostaria de conhecer um pouco melhor a poesia e a crítica para falar desses campos também, mas seria leviano com o pouco que li.

CL: Sobre o processo criativo, você relatou para a revista Piauí deste mês uma verdadeira saga, aonde o ato de correr e depois treinar para completar a Corrida de São Silvestre foram sua terapia para superar problemas e conseguir concluir seus escritos pendentes. Não raro, diz-se que a tristeza e a adversidade auxiliam na criação. Quais diferenças você sentiu – ou não – na sua criação durante este período, comparado a outros normais? E como era o seu processo até então?

RL: No segundo semestre de 2011 sofri uma espécie de “acidente biográfico” que me causou um colapso emocional. Escrevi sobre isso em três momentos, durante o tratamento de recuperação. Na verdade, ainda estou me tratando, com um psicanalista com quem eu já tinha feito análise uma vez. Como continuo sob impacto emocional, ainda que muito melhor, não quero falar sobre isso em um gênero diferente dos que já me manifestei.

CL: Este relato da Piauí daria um excelente roteiro para ser aproveitado em outras mídias, como filmes (de curta metragem, no caso) ou quadrinhos biográficos. Você aprecia estas mídias? É influenciado por algumas delas? Se sim, por quais autores e obras?

RL: Eu não costumo ler quadrinhos, apenas alguns casos muito especiais, como Art Spiegelman e Joe Sacco, mas mesmo assim sem muita constância. Sobre o cinema, ao contrário dos quadrinhos, tenho muito interesse. Não sei dizer em que medida o cinema poderia influenciar uma obra literária. Acho que não muito, se formos pensar na particularidade formal de cada gênero. Gosto bastante de documentários, de uma parte do cinema norte-americano e de alguns diretores específicos, como Antonioni, Buñuel e, entre outros, Lars von Trier.

CL: Ainda sobre o publicado na Piauí, a fragilidade e a sinceridade que você corajosamente demonstra se devem ao gênero do escrito, bem como à situação e tempo específicos, ou poderia se dizer que eles permeiam sua obra e estilo?

RL: Acho que tudo se intensificou por conta da violência enorme da situação. Mas como eu disse acima, sinto-me melhor me manifestando sobre o “incidente” em outro gênero que não a entrevista.

CL: Qual é o seu objetivo ao editar o jornal literário Silva? Como ele se mantém, já que você não o vende?

RL: Silva tem um pouco para mim a função de reafirmar a importância do papel. Ele só existe porque o papel permite o formato. Não tenho obviamente nada contra as mídias digitais, que na verdade me interessam muito, mas não gosto do discurso que diz que elas soterrarão o papel. Nesse sentido, o Silva é um objeto de resistência. Também gosto bastante de edições alternativas e fanzines. Por isso fiz uma.

Ele se mantém com meus recursos próprios, até aqui. No entanto, para ser justo, é preciso dividir a autoria com o artista gráfico Luciano Arnold, que faz um excelente trabalho por um valor quase que abaixo do custo.

CL: Quais conselhos que gostaria de ter ouvido quando começou a escrever e poderia dizer hoje aos iniciantes?

RL: Não sei se eu acredito em conselhos. Mas eu acredito na leitura dos bons livros (dos grandes livros) e na procura intensa por um caminho particular. Acredito também em consciência de trabalho, de forma e de ideologia. Por fim, acredito que é preciso se distanciar dos grupos, do glamour e da vida “chapa-branca”.

CL: Do que se trata O céu dos suicidas, livro seu que será lançado em breve? O que podemos esperar dele?

RL: Em 2008, um dos meus amigos mais próximos se matou, depois de uma situação muito complicada. Fui uma das últimas pessoas a estar com ele antes. O livro é sobre isso. Eu não queria adiantar mais, porém.

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Os escritores ficcionistas sabem o quanto é difícil criar um livro. Qual história contar? O que serve ou não para aquela história? Tais cenas são suficientemente boas para compor a obra? Como construir o personagem? Quais características ele terá? Vai gostar de cerveja ou vinho? Quanto do real estará presente nas páginas? Quais palavras usar para descrever uma situação que pode ser descrita de inúmeras maneiras? Qual o melhor começo? Por onde começar a escrever? Construo primeiro um final, a primeira frase, crio um roteiro…?

É sobre essa aflição do autor que trata Procura do romance, de Julián Fuks, publicado neste mês pela Record. O personagem principal da obra é Sebastán, um escritor brasileiro que retorna à Argentina para, no apartamento onde cresceu e passou boa parte da juventude, procurar inspirações para o seu próximo romance. Boa parte toda a história se passa na cabeça de Sebastián. Quase todos os objetos que toca, cenas que vê e pessoas que tem contato são capazes de fazer com que o personagem desencadeia uma série de pensamentos ou mergulhos em sua memória. Até as coisas mais banais desencadeiam-lhe ideias e sentimentos. A dúvida é sempre a mesma: posso usar isso ou não para o próximo livro? A conclusão é quase sempre negativa. E quando esses mergulhos na consciência de Sebastán tocam o passado do escritor, acabam por revelar, até de forma inesperada, um pouco da história do personagem.

Contudo, antes de qualquer coisa, Sebastián é um traído, uma traído pelo seu próprio criador. De nada adiantaria ele achar uma ideia brilhante para a sua obra. O narrador tem acesso a tudo o que se passa em sua cabeça e revela essas confabulações em Procura do romance. Se a história do livro é a história de Sebastián em busca de uma história, qualquer história que Sebastán pensasse já estaria retratada no livro de Fuks. Ou seja, já teria sido contada, revelada. Na verdade, tudo o que Sebastián descarta, Fuks aproveita em Procura do romance.

Fuks opta por começar a obra com a fala de uma personagem em espanhol para nas páginas seguintes explorar a consciência de Sebastián. O recurso de usar o espanhol para a fala dor personagens argentinos é bastante interessante, uma pena que não tenha sido mantido nos diálogos mais extensos. Ao compor a narrativa, o escritor também demonstra um vasto conhecimento das palavras da língua portuguesa, contudo, a variação vocabular – que por si só é uma grande qualidade – em alguns momentos parece forçada, o que acaba deixando um ar de pretensão exacerbada. Essa pretensão também está presente em algumas descrições, às vezes carregadas de detalhes que não fazem a menor diferença para o texto – não cumprem função estética alguma e frequentemente travam a  leitura – ou para a história.

Tradutor e autor de Histórias da literatura e cegueira e Fragmentos de Alberto, Ulisses, Carolina e eu, Fuks possui diversas semelhanças com Sebastián. A mais óbvia é que ambos são escritores. Mas os dois são brasileiros filhos de país que vieram da Argentina para o Brasil fugindo da ditadura e possuem uma forte ligação com o país vizinho. Em muitos momentos, Fuks parece colocar em Sebastián as suas opiniões, apenas para dizer o que pensa de alguns assuntos, como a arte voltada puramente para aspectos comerciais.

Ainda com relação à ditadura, o tema parece ser o grande mote para a produção artística na Argentina – ou das histórias que na Argentina se passam – nos dias de hoje. É bastante comum vermos filmes e livros que tratam do assunto com bastante profundidade e que, por mais que a enredo tome outros rumos, acaba flertando com o período que os militares argentinos estiveram no poder de seu país, como é o caso de Procura do romance.

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