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Por Alberto Nannini

cuba_minha_revolucao_capaNa resenha anterior, comentei que havia lido duas obras sobre Cuba: “A casa dos náufragos”, de Guillermo Rosales, e “Cuba – Minha revolução”, de Inverna Lockpez e Dean Haspiel. Pretendia naquela ocasião utilizá-las para falar sobre o controverso regime cubano, mas, ante a riqueza do livro de Rosales, a resenha foi toda baseada nele, e falou sobre a loucura.

Agora, retomo a proposta original, resenhando a segunda obra e utilizando ambas para tocar no assunto bem espinhoso: o regime imposto por Fidel Castro.

Cuba – Minha revolução

A sinopse da obra, uma graphic novel, diz:

Quando Fidel Castro toma a cidade de Havana no despertar do ano de 1959, Sonya – então com 17 anos – acredita nas promessas da Revolução Cubana. Estudante de medicina que sonha em virar pintora, ela junta-se à milícia e acaba presa entre o idealismo e a ideologia. Como voluntária na Baía dos Porcos, ela se choca ao encontrar um antigo amor do outro lado do campo de batalha, e mais ainda quando é presa e torturada pelos seus próprios camaradas. Com cicatrizes físicas e emocionais, Sonya tenta encontrar satisfação na arte. Mas, quando se dá conta de que nenhuma de suas iniciativas – seja com uma arma ou um pincel na mão – se enquadra no novo regime, ela precisa fazer escolhas entre sua família, seu amor e seu amado país. Ilustrada pelo artista indicado ao prêmio Eisner, Dean Haspiel (The Alcoholic), esta história é baseada em fatos reais.”

Publicada pela Panini Books, é caprichada: capa dura, papel couchê, e colorida em quatro cores: branco, preto, e tons de vermelho e cinza. Os desenhos são excelentes, e comunicam muito além do texto, como toda boa obra de quadrinhos: enquanto a narradora divaga ou recorda, as ações desenhadas podem mostrar outras ações.

Aliás, um parênteses: imagino que leitores deste blog não tenham preconceito com quadrinhos – literatura da melhor qualidade vem nesta forma, como provam os livros Fun Home, Maus, Escalpo e diversos outros. Mas, caso haja em você alguma resistência, este livro é um ótimo remédio para quebrá-la: uma história fechada (em volume único), interessante, perfeitamente equilibrada e muito incrementada pelo meio escolhido para contá-la.

Voltando, leia e embarque na vida de Sonya: testemunhe o que é viver a gênese de uma revolução, passar por mudanças radicais e veja o quanto isso vai afeta-la e a todos que a cercam.

Engajada e prisioneira

Idealista, a personagem rememora seus 17 anos, quando Cuba ainda estava sob o jugo de Fulgêncio. A mãe dela, muito bonita, é fútil; o padrasto, um sujeito prático; e o pai, russo e mais distante, médico.

KONICA MINOLTA DIGITAL CAMERASonya não se conforma em apenas assistir a revolução iminente. Quando o carismático Fidel Castro sobe ao poder e profere seu 1º discurso em rede nacional, em 8 de janeiro de 1959, ela se decide: vai se alistar na revolução. Suas ambições em ser uma artista ficarão em segundo plano – se tornará médica, para melhor servir à causa.

Como voz de fundo, vão aparecendo as consequências do novo regime: o comércio do padrasto vai à falência, e depois, todos os outros comércios são fechados; os revolucionários passam por treinamento de guerrilha, e médicos, como ela, não podem atender prisioneiros; muitos fogem do país, e o estado de guerra prossegue.

Há também uma história de amor, perdida e reencontrada, como conta a sinopse. O inferno de Sonya está só começando. Acusada de ter amigos na agência americana CIA, é levada prisioneira, e torturada sistematicamente para confessar. Mas isso ainda não quebra sua confiança na revolução.

Quando é solta, sua irmã por parte de mãe nasceu, mas não há muita esperança. O novo governo vem se mostrando tão ruim ou pior que o anterior. Apesar de uma tintura de normalidade, que envolve um casamento, ela se divide entre continuar fiel à causa ou tentar se safar – este é o dilema que vai dar o tom da história.

Quase biografia

Embora a autora tenha utilizado uma personagem, ela conta que o roteiro foi baseado na sua vida – veja o agradecimento: “Queria agradecer ao Dean Haspiel por ter me encorajado a contar minha história”. Ainda que caiba interpretar a qual história ela se refere, esta frase, uma vez entendida dentro do contexto do livro e após algumas pesquisas, embasa essa premissa.

O mérito literário é significativo: trata-se de uma leitura fluida, apesar de contar um drama com passagens pesadas. A construção da narrativa com tintas autobiográficas tem o ritmo daqueles filmes em que o personagem mais velho conta sua história, e as passagens da sua juventude o retratam exatamente como era – no caso de Sonya, a voluntária que podia estapear alguém que contestasse o regime, ou que brigaria com quem mais ama pela revolução – e, conforme passa o tempo, retrata suas mudanças e amadurecimento.

Aliás, da mesma maneira que o livro de Guillermo Rosales, não vejo como contar uma história como esta sem muito conhecimento de causa. Ainda que não se possa determinar o quanto dela foi inventado, uma vez que a autora e a personagem são nativas de Cuba, exiladas, ex-revolucionárias, ex-médicas e artistas, parece suficiente para admitir como algo que vai além do “baseado em fatos reais”.

Talvez coubesse alguma precaução contra a amargura dos desiludidos, que, eventualmente, podem retratar seus algozes com piores tintas e características; contudo, a autora, por meio de sua personagem e alter ego, não perde tempo demonizando-os – ela foca mais sua vida e experiências, dentre as quais a revolução e seus agentes são ingredientes. De qualquer maneira, o retrato que ela dá daquele país é condizente com outras narrativas, inclusive a do já citado Guillermo Rosales, em “A casa dos Náufragos”.

Até aqui, já é possível recomendar a leitura como um drama digno de ser lido, e que ainda vai ensinar coisas sobre a ilha que só quem lá viveu saberia. Partindo disto, então, é possível aprofundar a discussão: o que há em Cuba?

Marcando posição pela liberdade

Humildemente, preciso ressaltar a falta de alcance desta resenha para retratar algo tão complexo como um dos regimes mais controversos da história recente. Mas, como todos, eu tinha alguma opinião pré-estabelecida sobre isso, e li livros (selecionados?) que a reforçou em alguns sentidos.

A virulência dos atacantes e dos defensores de Cuba sempre me impressionou. Os defensores apoiam o exemplo do regime, suas taxas de escolaridade, a resistência ao imperialismo americano, a excelência em ciência, esportes e medicina. Os detratores apontam os massacres de inocentes, a pobreza e falta de opções, o cerceamento de liberdade, o controle absoluto do Estado em tudo – dos bens de consumo aos itens básicos de sobrevivência.

Aqui, já posso marcar posição: acho a liberdade mais importante do que quaisquer eventuais benesses que o governo possa me oferecer. No regime onde fui criado, o Estado tem obrigação (nem sempre bem cumprida) de fornecer um mínimo operacional em estrutura, e de não cercear minha liberdade.

Ainda que caibam muitos senões – de diversos tamanhos – a estes reducionismos, e haja ataques mais ou menos ruidosos à liberdade mesmo nas melhores democracias, estas sempre vão me parecer melhores que as alternativas.

Uma vez que faltam opções melhores, cumpre tentar melhorar e aperfeiçoar o que se tem (que não é pouco), e aprender com os erros que os piores regimes ensinaram.

censura_das_tiraniasReis e mares de sangue

Uma lição aprendida é: tirania de qualquer espécie é ruim, não importa como ela tenha surgido. Relativizar não cabe: trocar um tirano péssimo por um “mais bonzinho” equivale a preferir ser sequestrado por bandidos corteses aos sanguinários – óbvio, mas duas péssimas alternativas de qualquer jeito. Ao se confiar em um só homem ou em um colegiado deles com poderes extremos, necessariamente se abre mão de muitas premissas: a individualidade, a liberdade, a própria vontade de se expressar e de inovar.

O tirano é um mal em si. Já disseram que os bem-intencionados são ainda mais perigosos, porque suas ações são difusas e confundem – eles oferecem algo, e tomam outro tanto, muitas vezes sem as pessoas se darem conta.

A tirania sempre assolou e continua assolando a humanidade, com várias roupagens: monarcas, caudilhos, militares e até dinastias. Pessoas que mandam nas vidas dos outros, e que, invariavelmente, acumulam o máximo de benesses para si. A lista é vasta, e inclui algumas das piores e mais danosas personalidades de todos os tempos: Pol Pot, Hitler, Mobuto, Kadafi, os Kim norte-coreanos, Mao Tse Tung, Stalin – a contagem de seus cadáveres passa da centena de milhões. E inclui Fidel, que mandou fuzilar inimigos, e que teria vastas posses, como uma ilha particular, num país onde a propriedade privada era proibida para todos os efeitos.

Mesmo assumindo um viés utilitarista, e aceitando que os governantes em geral precisam tomar decisões difíceis, que eventualmente traga sofrimento e até mortes, os erros e pecados dos tiranos não podem ser atenuados, porque eles pensam primeiramente em si mesmos e em seus apadrinhados, e porque não medem o custo de seus caprichos.

Esta é uma diferença significativa entre os regimes despóticos e as democracias, mesmo as mal estabelecidas. É verdade que há políticos tão ruins e gananciosos quanto qualquer tirano, mas a democracia não lhes dá plenos poderes, nem permite que eles os usurpem impunemente.

Esta argumentação é feita tendo em vista o defensor ferrenho do castrismo: aquele que acha que a democracia é ruim, o capitalismo é péssimo, Fidel é um grande herói e que é pena não haver algo assim por aqui. Aliás, este opositor é um tanto bizarro: ele acredita que conhece mais deste regime do que quem o viveu na pele, e até lutou por ele, como no caso de Inverna Lockpez.

Este tal defensor ferrenho acha ter maior autoridade que nativos como Yoani Sanchez, blogueira cubana que já foi presa e vivia sobre constantes ameaças, e a chama de “vendida” (segundo eles, ela teria um conluio com a CIA, agência americana). Ou seja, ele maximiza os (muitos) erros e falhas da democracia e do capitalismo, e costuma minimizar ou desconsiderar o custo da ditadura castrista e às vezes também de outras ditaduras, conforme sua orientação ideológica.

E é aí que ele erra.

males_do_socialismoMales do socialismo…

A construção do tipo “tal coisa é péssima, veja seu (pior) exemplo/ em compensação, tal coisa é ótima, veja meu (melhor) exemplo” é tão comum que se impregna em discursos bastante variados. Ufanismo vs. “complexo-de-vira-latas”, feminismo vs. misoginia, progressos vs. tradições, nacional vs. estrangeiro. O que há em comum entre estas cismas é que as posições extremas que qualquer um dos lados adotam não resistem a um exame mais apurado.

O radicalismo sempre tende a errar pelo excesso. A crítica absoluta do regime de Fidel é mais ideológica do que pensada; mas o inverso também é válido. A defesa exagerada deste chega a ser desrespeitosa, com o tanto de medo, de mortes, torturas e exílio que ele gerou.

No final das contas, tudo vai pender para simpatias pré-definidas, cismas e valores particulares. O fiel da balança vai ser aquilo que mais vale para o argumentador.

Críticos do capitalismo pregam um mundo imaginário onde todos recebam o mesmo, e tenham as mesmas oportunidades. É um dos melhores cenários – pena que a História demonstre cabalmente que ele não consegue ser posto em prática por nenhum método ou sistema inventado até hoje.

Contra o socialismo, de maneira bastante simplista, eu me questiono: ao se recompensar a todos de maneira igual pelo o que quer que façam, não parece óbvio que logo vai se perceber que não vale a pena trabalhar muito? Já que o que se obtém não está ligado ao trabalho duro, à vontade de inovar e de criar, nem há mérito em nada que se faça, tanto faz o empenho com que se trabalha.

Se a contestação é que quem pensar nisso é trapaceiro, então precisaria haver uma “solução final” para eliminá-los, porque todas as sociedades humanas (e até algumas de animais) têm os trapaceiros – aqueles que percebem que podem ficar à custa dos outros. O que me parece é que, numa sociedade comunista, a trapaça pode se tornar contagiosa.

Talvez se argumente que o socialismo ideal constrói uma sociedade onde o papel de cada um seja respeitado, e onde todos têm a mentalidade de que, dando seu melhor, todos ganham (o que, segundo alguns especialistas, resultaria no comunismo propriamente dito). Mas esta sociedade utópica não precisa ser necessariamente socialista. O capitalismo seria muito melhor assim, embora o que realmente aconteça esteja bem distante disso, como vamos ver mais adiante.

A principal falha do socialismo cubano, o que fez virtualmente ruir o regime castrista e todas as tentativas similares, não é apenas a superioridade da economia de livre mercado, mas algo que pode fazer ruir a sociedade moderna: os gananciosos homens.

Nenhum sistema dispensa homens para dirigi-los. Até a anarquia acabaria elegendo seus “cabeças”. E é aqui que a coisa realmente fede: são muitos os carniceiros que assumem o título de soberanos. Ditadores, como o próprio Fidel, nem são o pior que existe: há déspotas mais sanguinários ainda, que não se preocupam em dar qualquer contrapartida à população, a não ser aquele mínimo que os perpetue no poder, e apenas porque reis precisam de súditos e servidores. Houve e há muitos destes na África, que apenas enriquecem roubando. E há ainda a bizarra dinastia de ditadores com poderes semi-divinos na Coreia do Norte (alvo de uma das minhas próximas resenhas).

Enfim, a ganancia dos socialistas que exercem o poder não fica nada a dever aos piores capitalistas, com o agravante que seus desvios e desmandos vitimam diretamente a população que governam. Está muito bem testemunhado no livro de Inverna Lockpes este proceder.

males_do_capitalismo…e males do capitalismo

Eu tinha uma opinião rasa de que o capitalismo e a democracia eram os dois melhores sistemas possíveis, apenas sendo necessários ajustes do tamanho ideal do Estado e de sua intervenção. Pesquisei mais, e ainda acho que, combinados, formam o melhor disponível; mas as mudanças precisam ser feitas imediatamente, ou tudo que conhecemos poderá desabar.

Indícios do caos vieram com a crise econômica mundial, que levou bancos e até países ao colapso, há seis anos. Isto demonstrou o quanto o mercado é vulnerável às suas próprias liberdades e excessos. Um cenário com a economia se liquefazendo e bancos quebrando geraria pânico, aonde populações inteiras veriam suas economias sumirem, e o resultado seria um Deus-nos-acuda. Os exemplos – como a Finlândia e a Argentina – são preocupantes. Em escala mundial, isso poderia gerar uma catástrofe sem precedentes.

Porém, este não é a única falha possível: há um “bug” no sistema capitalista, só recentemente detectado, até onde eu sei. Analistas respeitavam um cenário chamado “a curva de Kuznets”, de um economista bielorrusso, Simon Kuznets. Ela dizia, grosso modo, que num país em desenvolvimento, o gráfico da desigualdade imita a forma da letra “u” invertida (ou Curva de Gauss): de pouca desigualdade, já que todos começariam pobres, ela subiria bastante com os investimentos (cujas melhores recompensas vão para poucos); mas depois cairia de novo e se estabilizaria, conforme o progresso se instalasse.

Porém, o economista francês Thomas Piketty compilou seus estudos num livro de mais de 700 páginas, chamado “O capital no século XXI”, bastante polêmico, onde contesta a curva de Kuznets, com uma grande análise de dados estatísticos referentes às rendas de habitantes de alguns países ditos “de 1º mundo”.

Piketty percebeu que a desigualdade não se estabiliza depois da instalação do progresso, pelo simples fato que, no capitalismo como é hoje, tudo favorece que os mais ricos enriqueçam mais e num ritmo maior do que a camada mais pobre e muito mais numerosa progrida e ascenda nas classes sociais. Na verdade, a desigualdade aumenta, ainda que, na teoria, haja menos pobres – enquanto eles ascendem um pouquinho nas suas posses e independência, os ricos ficam milionários, e os multimilionários, bilionários.

Isso se dá porque o sistema econômico, como o concebemos hoje – globalizado, interligado e quase onipresente – está recompensando mais aqueles que invistam seu dinheiro fora da cadeia de produção. Especulação imobiliária, carteira de ações, heranças e ganhos de capital em cima de capital dão retorno maior que produzir e empreender, e traz menores custos.

Sem produção, o intricado modelo de mercado desanda – é como tirar uma engrenagem de uma máquina. Vão quebrando todos os sistemas interligados: empregos, capacitação, crédito. Aí, a ascensão das classes desfavorecidas fica cada vez mais difícil, e tudo recai nas costas do Estado. Se este for bem administrado, até pode suprir, por um tempo; mas, se for inchado e obsoleto – como o nosso – aí, complica.

O modelo atual não é sustentável independente da eficiência do Estado. O sistema capitalista está rumando ao colapso. A desigualdade é sentida na pele, e provoca um clima belicoso, gera exclusão e violência, que podem resultar em tragédia. Fora isso, as regras mudam para cada indivíduo, na medida em que haja mais dígitos em sua conta bancária. Ricos são imunes às leis, mandam suas fortunas para paraísos fiscais, não declaram ganhos, e enriquecem cada vez mais. Mas os cidadãos pobres e os médios – como eu e provavelmente você – pagam seu imposto até o último centavo, não tem a quem recorrer, e são esfolados de todos os lados.

Para piorar o cenário, as oportunidades não são nem nunca foram iguais. Por exemplo, o ingresso em universidades públicas. Se fosse uma corrida de 400 metros com barreiras, poderia se alegar que todos que ingressam na faculdade começarão do mesmo ponto. Mas se esquece que há os nascidos em berço de ouro que nada fizeram a não ser se preparar para esta corrida de cartas marcadas, e foram carregados até a linha de partida. Já outros, tiveram que “correr” a vida inteira, por quilômetros, entre empregos mal remunerados, educação de baixa qualidade e pouco acesso à cultura.

Se você fosse apostar nesta corrida imaginária, e visse um corredor que já vai começar a prova cansado, suado e arfando, com as mãos nos joelhos, enquanto outro está descansado, super equipado e bem preparado, apostaria em quem?

Pela falta de oportunidades, a maioria nem mesmo chega à linha de partida, para disputar a tal corrida. E o ingresso em faculdade pública é uma de muitas corridas, todas claramente desequilibradas.

O fato é que a desigualdade é um fato incontestável nas sociedades capitalistas. As sociedades socialistas parecem ter mais igualdade, mas apenas porque, fora os governantes privilegiadíssimos, todos os outros sofrem terrivelmente, de maneira parecida.

Justiça à meritocracia

Há uma particularidade nas sociedades democráticas capitalistas que sofre também com defesas e ataques extremos: a meritocracia.

Em minha opinião, é uma grande invenção. Graças a ela, existe alguma justiça no sistema. Antes dela, e mesmo hoje, onde ela não vigora, imperam sistemas de castas. As pessoas ficam condenadas a ser aquilo para o que nascem/herdam. É o caso dos intocáveis da Índia.

Contudo, ela não pode ser colocada como a “solução mágica”, nem distorcida para controle e acusação dos desfavorecidos. Isso porque, ao apontá-la como solução, utilizando como exemplo pessoas que, fora da curva, conseguiram vencer na corrida por empregos e uma vida digna, mesmo saídos da base da pirâmide social, se endossa o discurso errado de que a culpa dos milhões e milhões que não ascendem é exclusivamente deles mesmos, que não teriam estudado e batalhado o suficiente. Absurdo. Nem todos partem nas corridas da mesma linha de largada.

Também que se apontar que os critérios de medição dos méritos nem sempre são claros ou justos. Mas tenho certeza que você preferirá trabalhar em qualquer lugar onde seu esforço seja reconhecido em algum momento, e não onde você esteja condenado a ficar submisso a outros que não tem suas competências, mas somente influências ou parentesco com os poderosos.

Veja, não estou dizendo que não haja isso por aí – há sim, e bastante. Pode ser que você seja vítima da meritocracia do QI – “Quem Indica”, ou do nepotismo, que pode favorecer incompetentes. Mas o desrespeito a ideia não a enfraquece, da mesma forma que o fato de haver quem queira levar vantagem em tudo não enfraquece a honestidade. Ao contrário, a torna mais necessária. A meritocracia é uma ideia tão poderosa que, nas sociedades competitivas, quando é ignorada, traz mais prejuízo que lucro.

O grande porém é que ela não basta para balancear a situação vigente de oportunidades tão díspares. Pode corrigir um pouco as injustiças, mas são necessárias ações afirmativas parta diminuir a desigualdade – como é o caso das cotas raciais, contra as quais eu mesmo me posicionava, antes de refletir melhor.

Enfim, para atacar mesmo a desigualdade, seriam necessárias ações mais drásticas. Piketty sugeriu taxar fortemente as grandes fortunas. Há muito barulho condenando isso, o que não é de se admirar – há muitos que condenam a provisão de cerca de 0,5% do PIB brasileiro para o programa de distribuição de renda Bolsa Família, exemplo mundial e comprovadamente efetivo.

piramide_insustentavelCríticas a todos

Isto posto, e tendo, como de costume, me alongado, resumo aqui a ópera: Cuba teve o valor de tentar um novo sistema, conseguiu progressos científicos, educacionais e esportivos. “Peitou” o maior império do planeta. Mas pagou preços altos, deixando sua população à míngua (conforme relatos dos próprios habitantes), e se tornando obsoleta em muitos dos avanços que tinha conseguido. O comunismo idealizado por Karl Marx apenas inspirou o regime de Cuba, que acabou distorcido.

O capitalismo, por sua vez, reina no mundo, mas traça uma rota insustentável de enriquecimento sem limites dos que já são ricos, falta de interesse em produção e falta de uma ética que recuse lucros a qualquer custo. Ou seja: qualquer indústria ou comércio que gere bilhões vai pesar se compensam os riscos; se os dividendos forem fartos, não há limites para o que possa virar comércio: tráfico de pessoas, mão de obra análoga à escravidão, entorpecentes, armas etc. Tudo em nome de Mammom – o deus-dinheiro.

Mas enfim, os dois autores dos livros mencionados, Inverna Lockpez e Guillermo Rosalez, mostram a derrocada de Cuba, perdendo seus artistas e intelectuais justamente para seu arqui-inimigo. Claro que eles são amostra pequena, mas, só por eles, arrisco afirmar que o regime castrista é um arcaísmo. Há que se registrar também que o maior libelo do capitalismo, os EUA, começam a experimentar decadência – um bom exemplo é a cidade de Detroit, que já foi uma das maiores e mais avançadas metrópoles do mundo, e hoje, agoniza, tentando sobreviver com medidas que estimulem a reocupação de seus bairros inteiros abandonados.

Em relação ao tópico “tiranos”, afirmo, categórico: eles são sempre desprezíveis. A tirania é causa de prejuízos incomensuráveis – de vidas, de recursos, de avanços. Tiranos como o próprio Fidel tinha o poder de mandar fuzilar quem dele discordasse. Qual pessoa permaneceria sana com um poder destes na mão? Estes seres nem sempre humanos desviam recursos para si e seus apadrinhados, sem se dar conta da culpa de sangue que existe nesta atitude: toda a pessoa que morra por falta de recursos desviados (de hospitais, digamos), recai sobre quem desvia. Isso vale, lógico, para políticos.

Ainda sobre os tiranos, registro que eles não são só governantes de países ou ditadores: há deles em todos os lugares. Há os chefes tiranos, que sentem prazer em humilhar os subalternos; há até os amigos tiranos, que não admitem serem contrariados e não aceitam brincadeiras, embora a todos contestem e tirem sarro; enfim, pode existir tirania onde quer que haja uma relação de poder.

O detalhe é que toda relação humana é uma relação de poder. Em casamentos, em família, até de pais com filhos, sendo que alguns defendem que as crianças e jovens (e nem tão jovens) de hoje tiranizam seus pais e responsáveis, que acabam reféns de seus caprichos e vontades, como um fardo eterno.

O que precisa ser feito

Voltando à política, ditaduras, que pressupõem tirania (de um ou vários), nunca são uma boa escolha. A democracia tem defeitos evidentes, inclusive abriga tiranos muito poderosos, sejam pessoas ou instituições, como políticos, a polícia e outros. Verdade. Mas há liberdades na democracia que simplesmente não existem em outros sistemas. Isso é um fato. Se há desrespeitos a estas liberdades, e por mais reprimidos que sejam alguns direitos, como o de livre manifestação, ainda é possível articular uma resistência e lutar por mudanças – algo bem difícil de fazer quando se está vendado num paredão de fuzilamento, ou escravizado num campo de trabalho forçado ou ainda, silenciado pelo medo ou mesmo “sumido” da face da terra.

Se foram apontados defeitos e criticados os principais macrorregimes econômicos, é porque, mesmo a um leigo, pareceram evidentes suas falhas. Contudo, prefiro tomar a posição e valorizar a democracia – o menos pior dos regimes – a apenas criticar sem nada propor. A desigualdade pode e precisa ser combatida, com ações afirmativas de inclusão, mesmo que pareçam paliativas ou até desproporcionais, como, por exemplo, cotas raciais e assistência do Estado para redistribuição de bens. Elas visam corrigir distorções e, de maneira secundária, mudar a mentalidade segregacionista em vários níveis. Estas medidas só parecem erradas porque há pouco interesse real em mudanças significativas, e porque a correção de erros radicais pode precisar ser radical, ao menos de início.

Assim como os seres vivos, sistemas complexos visam a autopreservação. O capitalismo está em rota de catástrofe, e quando uma sociedade perde o balanço de estabilidade que a mantém, ou há uma correção, ou há a extinção. Os exemplos são inúmeros. Não se pode perder de vista que ele já foi uma correção a outros sistemas mais injustos ainda – e que possibilitou a criação de riqueza e progressos em vários níveis para centenas de milhões. Mas também não se pode perder de vista que hoje, muitos acham que o capitalismo é apenas servir a outro tirano – o lucro. Trocar “seis por meia dúzia” não vai funcionar.

O que deveria ser viável é que todos percebessem que o capitalismo predatório acabará com tudo – com todos os recursos ambientais e humanos, apenas para que poucos enriqueçam além da capacidade de gastar o dinheiro e muito, mas muito além da necessidade para uma vida confortável, produtiva e feliz.

Algumas iniciativas vêm surgindo, tímidas. Empresas preocupadas com os impactos ecológicos (além das obrigações por lei). Comprometidas em dar contrapartes sociais, revertidas á todos, e não apenas aos clientes. Gestão mais humana. Não buscando apenas mais lucro.

Então, um capitalismo mais responsável é possível. Sei que parece conversa de Nova Era. Utopia. Ingenuidade. E é mesmo. Mas é absolutamente necessário também. E urgente.

Claro que sempre haverá sujeitos gananciosos, que querem ser milionários. Ainda poderão sê-los, mas não a qualquer custo – especialmente de se manter miseráveis, ignorantes, dependentes e condenados a subsistência dois terços da população mundial, enquanto cerca de 1% concentra metade ou mais de todas as riquezas. Isso vai gerar revoluções sangrentas, que não ficarão restritas a uma ilha.

praca_tianamenTiranomaquia’

Titanomaquia, da mitologia grega, foi o embate dos titãs contra os deuses do Olimpo, que venceram e governavam tudo. A “tiranomaquia”, minha paráfrase, é o embate dos tiranos contra o resto do mundo. Tudo o que tiraniza o homem deve ser combatido, sob pena de se escravizar, disfarçadamente (ou não), a maioria das pessoas. Todos os sistemas ditatoriais, capitalistas ou não, estão inclusos; o que dirá então dos déspotas clássicos. Nós, o resto do mundo, precisamos ganhar. Não há mais lugar para Fidéis.

Há uma linha evolutiva – antigamente, a tirania era o governo comum, legitimado pelos regimes em voga, como a monarquia; hoje, eles são minoria, mas ainda resistentes em serem varridos para o lixo da história. Onde persistem, prejudicam os países que governam em todos os índices importantes, e são responsáveis por oceanos de sangue, sofrimento e morte. Sem contar que, onde há ditadura, não há liberdade – o pior cenário possível, em minha opinião.

E é por isso que uma má democracia é preferível a uma ótima ditadura.

Destituídos os tiranos de carne e osso, precisamos acabar com o tirano feito de cifrões. É bem mais difícil.

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Por Alberto Nannini

medHomensAlmasA inglesa Taylor Caldwell tem um estilo facilmente reconhecível: extremamente detalhista nas ambientações e descrições de personagens e localidades, muito precisa nas reconstruções históricas, e sempre baseando seus muitos livros no ideário cristão.

No caso do livro Médico de homens e de almas, a autora fez uma grande pesquisa para romancear a história de Lucas, a quem se atribui um dos evangelhos canônicos. Médico no seu tempo, contam algumas lendas que se atribuíam milagres e prodígios a ele antes mesmo de sua conversão ao cristianismo.

Com este mote, ela costura um romance envolvente, que conta a história do futuro santo, que sente grande compaixão pelos homens e que “não gosta” muito de Deus, ou melhor dizendo, não O sente próximo. Sua aproximação à ideologia do carpinteiro de Nazaré vai se mostrando como um arranjo perfeito, suprindo-o daquela convicção que lhe falta. Enquanto isso, Taylor Caldwell descreve costumes (chamou-me a atenção as refeições da época), localidades, vestimentas e elucida arranjos políticos no intricado panorama social vigente naqueles tempos, com os romanos buscando conter a insurgência crescente dos rebeldes judeus.

A autora, muito prolífica, escreveu também O grande amigo de Deus, romanceando a história de Paulo, o apóstolo que, bem dizer, fundamentou o cristianismo e lhe deu as bases que possibilitaram que ele reinasse soberano por milênios e que continue uma das mais influentes filosofias do mundo.

Tenho uma relação de afinidade com os livros de Taylor Caldwell – tanto que pretendia dar dica de leitura outro livro dela, mas pensei que havia tanto a falar a respeito deles que valeria uma resenha.

De qualquer forma, caso aprecie romances com fundo histórico e queira saber mais sobre os primórdios do cristianismo, a dica é ler um destes livros mencionados. Possivelmente, se ler um e gostar, vai desejar ler o outro. Foi o que aconteceu comigo.

 

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Por Alberto Nannini

capa_a_casa_dos_naufragosCuba. A pequena ilha, emblemática resistência de um regime alternativo, está sempre nos noticiários, bem como seu governante, o ditador Fidel Castro, ultimamente afastado.

Li duas obras ligadas ao país: A casa dos náufragos, de Guillermo Rosales, e Cuba – minha revolução, de Inverna Lockpez e Dean Haspiel. Ambas são relatos de cubanos exilados, e são bastante politizadas, no sentido de passar impressões sobre o regime por gente que o viveu na pele.

Meu plano original era abordar algumas particularidades do regime castrista por um olhar leigo e desapaixonado, interpretando o discurso dos autores destas obras. Porém, tive que mudar a abordagem. A primeira obra era tão rica e suscitava tantos questionamentos e reflexões que seria um desperdício utilizá-la apenas para falar sobre Cuba.

Mergulhar na loucura

Comprei A casa dos náufragos sem qualquer indicação, e me surpreendi. Magnífico.

A orelha do livro diz:

Exilado em Miami, o escritor cubano William Figueras é internado pela família em um asilo destinado a inválidos e doentes mentais. Sofrendo de alucinações auditivas episódicas e comportamento paranoico não violento, o personagem está em posição privilegiada em relação aos outros pacientes. ‘Já te observei bastante’, diz o abjeto zelador da instituição, ‘e você não está louco’. O que a princípio poderia ser uma vantagem termina por aprofundar sua dor.

Capacitado a compreender o estado de miséria humana que o rodeia, desnutrido, perturbado e sem perspectivas, o escritor pressente a morte. Egresso de uma Cuba mergulhada na ideologia e na censura, ele se situa no presente como um náufrago que nem pertence ao território que habita nem sente falta do que abandonou.

A exemplo de sua ficção, Guillermo Rosales também deixou Havana e se mudou para Miami em 1979, onde permaneceu até a morte, em 1993. Membro do círculo intelectual cubano que se transferiu para os Estados Unidos, foi lido pela comunidade hispanófona de Miami, mas permaneceu desconhecido do grande público, já que A casa dos náufragos só foi traduzido para o inglês nos anos 2000.

Curto (apenas 122 páginas), mas poderoso. Uma história humana e pungente. Fica na memória, por seus muitos méritos. E faz pensar em muitas coisas.

Tons autobiográficos

Não é fácil separar personagens literários de autores, para não dizer impossível: a dimensão da literatura abarca, extrapola e reinventa os fatos, refletindo-os com uma lente difusa, mesmo quando a intenção é ter um tom autobiográfico. De qualquer forma, a polêmica sobre isto vai muito longe (a discussão sobre os livros de Ricardo Lísias abordam o tema com maestria; leia as resenhas aqui já publicadas, sobre o último romance, Divórcio, e sobre O céu dos Suicidas, aqui e aqui).

Mas algumas características do livro de Guillermo Rosales empurram para uma leitura de notas autobiográficas: segundo consta, o escritor tinha esquizofrenia, e frequentou diversas instituições psiquiátricas ao longo da vida.

Além disso, o protagonista do livro, William, conta de sua relação com o regime cubano e das leituras que fez ao longo da vida, também muito semelhantes à história do próprio autor: “’Este é meu fim’, declara ‘eu, que li Proust completo quando tinha quinze anos, Joyce, Miller, Sartre, Hemingway, Scott Fitzgerald, Albee, Ionesco, Beckett. Que vivi vinte anos numa revolução, sendo carrasco, testemunha, vítima’”.

De qualquer maneira, a força do livro prescinde completamente de que se determine o quanto há de autobiografia nele. A história comove e arrasta, no abismo de desalento que sempre acompanha a loucura, mesmo quando alguma esperança vã teima em acender.

Por isso, o título A casa dos náufragos é muito apropriado, e até a edição do livro e a capa dele – uma pequena casa amarela flutuando num fundo preto e azul escuro, que evoca a imensidão do mar – remete ao tipo de leitura que vai se mergulhar, sem nunca deixar de ser uma metáfora mais abrangente do exílio, da solidão e da crueldade.

imagem_loucoNaufragando…

A trama começa com Willian sendo levado pela tia à “boarding home”, espécie de abrigo para desvalidos, ou um hospício disfarçado. Lá, ele vai perceber como serão as coisas, e verá que a lei do mais forte é a regra única, e entenderá mais sobre a miséria – sua e a dos outros – do que jamais imaginou.

Com o tempo, o protagonista vai se acomodando à situação, e passa a entender o posto que ocupa. Ele percebe que a desesperança ali é a regra, inclusive para os opressores, como o zelador ladrão e abusador, ou o dono, que acolhe “hóspedes” de olho nos cheques de pagamento que recebe do governo para cuidá-los. Um mero negócio, vil como qualquer outro.

Um dia, o já razoavelmente adaptado Willian vê a chegada de uma nova “hóspede”, que concorda com tudo o que dizem. Ele e todos os outros “testam” a novata, de maneiras terríveis. Mas ele começa a dedicar maior atenção a ela, e se permite ter alguma esperança. E a convida para um plano – fugir do asilo e recomeçar a vida, os dois se lançando ao mundo. E de novo a fuga de Cuba se repete aqui, metaforicamente: se lançam, de forma precária, contra outra imensidão de mar escuro – o mundo desconhecido da “normalidade”, longe de surtos e medicações, sendo um a boia do outro. Uma fuga em múltiplos níveis: exilados fugindo duas vezes da exploração, da loucura e da desesperança.

Pode dar certo, eles não são mais loucos que a média que se via do lado de fora. Qual será o desfecho desta tentativa desesperada? Da derradeira chance, do último suspiro de sanidade e de normalidade para dois excluídos? Vale a pena ler e conferir.

Historicamente crível

A história é relativamente simples, mas não sei se seria possível escrevê-la sem algum conhecimento de causa. Cabe relembrar que o autor esteve internado diversas vezes. Tudo isso vai se insinuando, após a leitura, quando se considera o quanto há de Guillermo em Willian.

Voltando à ficção, outro componente interessante na trajetória do protagonista é o quanto ele se mimetiza aos loucos, tornando-se tão brutal quanto for necessário. Presumo que este fato, num caso real, seja uma imposição, e não uma escolha.

Então, supondo que haja um determinado tanto de autobiografia: poucos discordariam que estas partes – as desabonadoras – são as historicamente mais críveis, porque todos “editam” suas facetas mais obscuras a seu bel prazer, quando relatam algo de si mesmos (Facebook, alguém?). Ou seja, haja o que houver de tons autobiográficos no livro, é brilhante que ele demonstre conhecer tão bem a loucura, e conte os deslizes que cometeu, ao invés de apenas retratar o sentimento de inadequação de estar ali. Ao contrário, em algum momento, ele passa a pertencer ao lugar, e sempre há uma luta (literalmente) insana, que acontece em diversas frentes.

O pequeno romance de Guillermo é notável pela amplitude de leituras que permite, e não se presta a uma só interpretação.

Análise prometida para breve…

Das várias maneiras que se poderia aprofundar esta obra, duas se insinuam: sobre a loucura em si e sobre a fuga.

Como já disse, o plano inicial era abordar, como leigo que sou, um pouco do rico material de discussão sobre o regime comunista de Cuba e sobre algumas polêmicas que sempre o cercaram. Com a manifestação dos autores das duas obras citadas, ambos exilados da ilha, eu pretendia analisar alguns pontos da ditadura castrista, o que ela trouxe e o que custou.

Porém, deixarei esta abordagem para uma próxima resenha. Nesta, terei que priorizar a abordagem sobre a loucura, por causa de uma obra lida anteriormente.

holocausto_brasileiro_capa… e pequeno parênteses sobre a loucura

A obra referida é o livro reportagem de Daniela Arbex: Holocausto brasileiro, já brilhantemente resenhado pelo Rodrigo Casarin aqui.

Ler Holocausto brasileiro é uma viagem a um mundo de terror pior que o pesadelo mais insistente. Saber que ele é uma reportagem, que foi escrito mediante a aferição de fatos, é estarrecedor. Se no livro de Guillermo sobra lirismo e beleza literária, no de Daniela a crueza dos fatos te atinge como um soco no estômago com luva de ferro. Se a verdade se obnubila no primeiro, e nos perguntamos o quanto daquela história magnífica e daqueles personagens foram reais, no de Daniela, ficamos sabendo do desfecho de alguns, e da tristeza que prevaleceu em suas vidas.

É impressionante como as obras se acrescentam. Ler A casa dos náufragos é como conseguir acessar a narrativa autoral, feita por um interno que fosse um romancista excelente, de uma das milhares de histórias que aconteceram em Colônia, o hospício retratado em Holocausto brasileiro. E ler Holocausto é entender profundamente a que tipo de situação Guillermo se referiu, em seus rudimentos – porque a vida dos desgraçados em Colônia era ainda bem pior que a ficção.

Pensar nisso dá vertigem.

O que é loucura, afinal?

A loucura não é um ponto pacífico. Eminentes psiquiatras e estudiosos buscam um consenso. Há bem pouco tempo, as perturbações mentais, por mais diversas que fossem, costumavam ser categorizadas do mesmo jeito. Conforme diz Charles Pépin, autor francês, sobre o louco, “Ontem percebido como mensageiro divino, hoje como doente mental, não há uma verdade acerca dele; a maneira como o consideramos varia segundo os sistemas de pensamento e poder”. Daniela Arbex endossa estes dizeres em seu livro, relatando que entre os internados, havia esquizofrênicos, dementes, mas também pessoas apenas tímidas ou caladas, e muitos sem qualquer anomalia digna de nota – apenas pessoas indesejadas (ou inconvenientes para alguns poderosos). Este estigma de loucura para aqueles que se quer excluir é muito importante.

Possivelmente, foi o questionamento deste estigma que levou o psiquiatra húngaro Thomas Szasz a abalar os alicerces da psicologia com sua obra “O mito da doença mental”. Na obra, grosso modo, ele defende que “doença mental” é uma metáfora. As mentes podem estar “doentes” apenas no sentido em que as brincadeiras estão doentes ou as economias estão doentes. Ou seja, o estigma de doente mental se baseia em uma teoria e não em um fato, semelhante a acusar alguém de estar possuído pelo demônio, por exemplo.

A razão da perpetuação deste rótulo que remanesce até hoje seriam interesses – excluir pessoas indesejadas, diferentes e fora dos padrões. Conforme o verbete sobre Szasz no Wikipédia diz, “os diagnósticos psiquiátricos estigmatizam rótulos, construídos à semelhança dos diagnósticos médicos e aplicados a pessoas cujo comportamento incomoda e ofende a outros”.

Para Szasz, a doença mental é um instrumento de controle e exclusão, e não tem sequer uma pequena parte da precisão que reivindica.

Mesmo porque, a normalidade também é um conceito difuso, e talvez nem mesmo muito desejável. Quase sempre, são os “fora-do-normal” que criam e questionam. Mas a normalidade se torna “desejável”, no sentido em que, uma vez estabelecido um comportamento normal, e contanto que as pessoas e suas reações estejam dentro dele, o status quo permanece: poder concentrado nas mãos de pouquíssimos, conformismo e impotência para a imensa maioria. Este ordenamento, tão antigo quanto as sociedades, se impõe em qualquer cultura. Os “fora da curva” serão categorizados: a doença mental, quando acomete a uma pessoa rica, a torna apenas “excêntrica”; se for pobre, a torna, além de maluca, perigosa, o que impõe que ela precisa ser contida, seja do jeito que for.

Como lidar com os loucos

O hospício de Colônia, de história tão recente, é mais apavorante que qualquer ficção. O “””consolo”””, bem entre aspas e bem ironicamente, é que o tratamento de doentes mentais e excluídos pior do que a animais não é exclusividade do Brasil (lugar onde sabemos bem o quanto o dinheiro, o poder e a influência fazem diferença); barbarizar os loucos era uma espécie de regra. O hospital Willowbrook State School, em Nova Iorque, nos anos 60, tinha mais de 6.000 internos que andavam nus, eram espancados e abusados pelos cuidadores.

Ou seja, assume-se que uma desordem mental tira a humanidade da pessoa. Mesmo que não haja uma maneira 100% segura de diagnosticar esta desordem, e, principalmente, que tanto o diagnóstico como o remédio proposto sejam radicalmente influenciados pela posição social que o doente ocupa. Se for um bilionário, talvez, no máximo, sofra processos de interdição dos herdeiros (será que, talvez, quem sabe, mais preocupados com a saúde do que com a dilapidação do patrimônio?); mas, se for um pobre, antigamente, seria deportado, para depósitos de pessoas. Hoje em dia, seria largado à própria sorte.

Loucas inconsistências

De qualquer forma, o assunto é muito amplo até para especialistas, mas algumas considerações podem ser feitas.

O psiquiatra escocês Ronald David Laing (1927 – 1989) pesquisou a esquizofrenia e, segundo ele, a doença é uma reação compreensível a situações impossíveis de serem vividas. Ele procurava padrões na fala dos esquizofrênicos, e questionava a validade do diagnóstico psiquiátrico para desordens mentais, já que estes são baseados no comportamento do “doente”.

Laing apontou o problema de se diagnosticar uma conduta mental a base de um comportamento, mas tratá-la de forma biológica, com remédios. A medicação interfere na capacidade de pensar, e por conseguinte, na cura.

É verdade que a precisão dos diagnósticos e o conhecimento sobre as desordens mentais cresceu, mas outro fator acompanhou também este crescimento: o comércio em cima das doenças, puxado pela indústria de medicamentos. E isto se liga a um outro problema bem complexo: a indústria do diagnóstico.

Interesses comerciais

Lou Marinoff, em seu livro Pergunte a Platão, falou sobre a indústria do diagnóstico: segundo ele, para que profissionais como psiquiatras e psicólogos sejam ressarcidos pelos planos de saúde, eles tem que diagnosticar algo. Assim, se construiu uma nação inteira de doentes – qualquer pessoa, qualquer uma mesmo, pode ter alguma disfunção mental diagnosticada. Basta que seja humana, e que se sinta triste ou angustiada de vez em quando, para ter sua CID (código internacional de doença) no seu atestado, e possivelmente, com uma receita prescrevendo alguma medicação acompanhando.

Daí que , embora os avanços médicos sejam evidentes, outros interesses continuam a tornar a loucura algo nebuloso.

Então, depois de todas estas considerações, há que se perguntar: apesar das inconsistências no diagnóstico da loucura, apesar do uso dela como desculpa para exclusão de indesejáveis, apesar do histórico pavoroso de massacre dos doentes mentais pobres, e apesar do comércio e dos interesses financeiros que existem em cima disso, será que, pelo menos, os médicos sabem diferenciar os realmente perturbados dos sãos?

cartun_loucoComo distinguir a loucura da sanidade?

Se qualquer um pode ser diagnosticado como vítima de alguma transtorno mental, como distinguir os loucos dos normais?

Bom, o psicólogo americano David Rosenhan fez um experimento clássico a respeito. Se os psiquiatras dizem que transtornos mentais podem ser diagnosticados de modo preciso com base em sintomas, e assim serem categorizados como doenças, eles deveriam saber diferenciar, por estes mesmos critérios, os loucos dos sãos.

Só que não. Não se consegue diferenciar os loucos dos sãos nos hospitais psiquiátricos. O estudo de Rosenhan reuniu oito pessoas sãs (ele próprio no meio), para tentar internação em instituições psiquiátricas. Orientados a dizer sobre vozes que ouviam, todos os pacientes foram internados, com diagnóstico de esquizofrenia, embora não apresentassem sintomas da doença.

Uma vez internados, eles se comportaram de maneira absolutamente normal. O que quer que fizessem era interpretado como sintoma da doença. Para um dia inteiro de internação, o contato com os médicos era de cerca de sete minutos diários. Os únicos a perceberem o embuste foram alguns dos outros internos – supostamente loucos.

O pesquisador divulgou o estudo e informou que enviaria, nos próximos meses, um ou mais pseudopacientes, como eles foram, para tentar novamente a internação. Após conhecerem o estudo e avisados, nos hospitais da época, de 193 novos internos autênticos, 41 foram identificados como suspeitos por pelo menos um membro da equipe da instituição, e 23 como possíveis pseudopacientes por pelo menos um psiquiatra.

O chato é que Rosenhan não enviou ninguém.

Distinções falhas

Ou seja, a loucura, em grande medida, é uma cisma – por uma normalidade e por uma padronização que muda ao sabor dos costumes e interesses. Houve, sim, progressos: há desordens mentais mais ou menos compreendidas. Desgraçadamente para alguns loucos antigos, ficava ao sabor da história e da cultura local se aquele atributo deles, por exemplo, de ouvir vozes, era um dom – o que poderia torná-lo um profeta – ou uma maldição – o que o tornaria um endemoniado. O matemático americano John Nash, autor da Teoria dos Jogos, era esquizofrênico, e poderia ter sido morto, há apenas… ia dizer algumas décadas, mas me lembrei que Colônia e Willowbrook são seus contemporâneos.

Ou seja, é bastante razoável supor que pessoas que poderiam contribuir para o progresso da humanidade foram empilhadas e sacrificadas, apenas porque não as entendiam, porque elas eram muito pobres, ou ainda, porque eram muito tímidas ou pouco articuladas. Ou qualquer combinação destes fatores.

Evidentemente, isto não significa que pessoas que não pudessem contribuir de qualquer forma tivessem que ser sacrificadas. Limitadas ou não, eram pessoas. E a vida delas, tão sagrada quanto a de qualquer “normal”.

Em grande medida, aliás, eles, que eram simples de coração e reduzidos em suas capacidades, precisavam ainda mais da ajuda dos outros. É o mesmo raciocínio que leva a absoluta maioria de pessoas a ter ojeriza a maus tratos com animais – seres meio dependentes, com limitações, puros, sem maldades ou interesses. Não sei precisar em porcentagens, mas deduzo que a maioria dos deficientes mentais sejam assim. Às vezes, pode nos enojar o quanto eles se reduzem aos instintos básicos/fisiológicos, e o quanto lhes falta pudores. Como comem, copulam e se sujam como animais; mas esquecemos que pudores são construções sociais mutáveis, e andar nu, por exemplo, é aceito em algumas comunidades. E pior, esquecemos que, ao amontoá-los como bichos, lhes tiramos qualquer dignidade que poderiam preservar, e só lhes restará mesmo o instinto de sobrevivência.

Ainda em defesa da inofensividade da maioria dos loucos, me parece que os perigosos e violentos da nossa sociedade gozam perfeitamente de suas capacidades mentais – lhes falta empatia e um tanto de humanidade, e lhes sobra egoísmo e ganância. Criminosos, de maneira geral, não são loucos. Claro, há aqueles que têm surtos psicóticos, que causam massacres. Mas o que há de loucura num sequestrador, que arquiteta um plano cuidadoso para levar sua vítima, ter seu resgate e não ser pego?

Loucura moderna

Recentemente, mais um garoto recalcado (Elliot Rodgers), perturbado num nível profundo, massacrou seis pessoas, nos EUA, por não ser reconhecido, e se sentir inferiorizado. Qual o nível de loucura disso? Internos são mais loucos e mais perigosos que alguém assim?

E sobre o norueguês Anders Behring Breivik, que planejou um atentado por anos, e rumou para uma ilha e massacrou perto de 70 inocentes? E sobre Columbine, e mesmo do brasileiro Wellington Menezes, que imitou a “moda” americana de massacres em escola e assassinou 12 (o massacre de Realengo)?

Como diagnosticar estes loucos modernos? O que fazer?

holocausto_Não sei, mas sei o que não fazer: não se pode colocá-los em nada que se assemelhe a um hospício antigo. Argumentos em contrário, por mais persuasivos que sejam, especialmente para quem perdeu alguém em qualquer um dos massacres, reabrem a exceção que criaram distorções como Colônia e Willowbrook (que aliás, à sua época, não eram exceções, mas a regra); ou legitimam asilos e abrigos como comércios vis que nada tem de humanos, e que visam apenas lucro, como o relatado por Guillermo Rosales em seu livro.

Retroceder e permitir a volta de colônias ou a legitimação de “boarding homes” (hospícios particulares) são caminhos terríveis, que já deveriam ter sido totalmente abolidos.

A sombra da loucura continuará a afetar as sociedades, mas precisamos progredir no tratamento dos doentes. Este é um problema de dimensões tão profundas e tão controverso que parece pacífico que não haja uma solução unânime e sem riscos. Desenvolver medicações para tratar doentes, além do problema do comércio de fármacos e da indústria de diagnósticos, tende a robotizar as pessoas. Interná-las, quase sempre, é apenas excluí-las do convívio – mesma alternativa que se pensa para outros indesejáveis, como viciados, mendigos e criminosos de menor potencial ofensivo.

Assumo que não consigo pensar, nem ingenuamente, em algo que pudesse funcionar, neste caso. Talvez uma série de ações conjuntas e ordenadas e também uma mudança social. Mas repito: hospícios devem ser peças de museu (de horrores, no caso).

A balada do louco

Concluindo para ligar todo o exposto à obra de Guillermo Rosales, muitos loucos tem visão mais sã e verdadeira da sociedade que muitos ditos normais. Muitos normais são apenas bovinamente conformados, e nunca utilizaram a capacidade oculta que carregam de questionar a ordem das coisas – ordem esta que prioriza outros deu$e$ em detrimento da compaixão pelos semelhantes.

A loucura pode ser uma face da genialidade, e nem todos que as cometem são necessariamente loucos – aliás, segundo o psicólogo americano Elliot Aronson, qualquer pessoa, em determinadas situações, pode fazer algo que seja considerado insensato.

O autor de A casa dos náufragos era considerado insano, por alguns parâmetros, mas entregou uma obra de rara sensibilidade. Seja para refletir sobre a loucura, seja para pensar sobre as fugas, ou para apreciar uma peça de literatura magnífica, a indico.

Acho que Rosales endossaria a clássica música “Balada do louco”, do grupo brasileiros Os Mutantes, que intitula esta resenha. Especialmente o verso:

Eu juro que é melhor

Não ser o normal

Se eu posso pensar que Deus sou eu.

 

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Por Alberto Nannini

fim-fernanda-torres-tipssFernanda Torres é um pouco irritante. Quer dizer, ela parece ser uma pessoa bem bacana e divertida fora do palco; mesmo sendo filha da melhor atriz brasileira da história, ela é uma atriz excelente, cheia de recursos, comediante com timing invejável. Como se não bastasse, é uma ótima cronista. E agora, resolveu ser escritora também, com a costumeira excelência. Precisava mesmo ser boa em tudo?

Brincadeiras à parte, imaginei que as críticas generosas a seu primeiro romance, Fim, fosse mais por boa vontade dos vários amigos e conhecidos que ela deve ter, e da legião de admiradores que certamente tem, do que por mérito literário.

De qualquer forma, eu tinha que ler para dar meu veredicto, até porque nem sempre eu e a crítica geral afinamos nossos gostos. Há coisas que os críticos dizem ser sensacionais, e que eu acho péssimas (como exemplo, me vem à cabeça o filme Tabu, de Miguel Gomes). E há coisas que eles detestam, e eu gosto muito.

Enfim, li o livro da Sra. Fernanda Torres, com uns sete pés atrás.

E tenho que me render – o livro é ótimo.

Os fins

Um grupo de cinco amigos, separados, relembram episódios de suas vidas, e também atividades do dia a dia e a amizade que os unia, pouco antes de suas mortes, quase todos já velhos. Assim, o livro é dividido em cinco capítulos – cada qual narrado segundo a perspectiva de um dos integrantes do grupo, e intitulados com os nomes deles: Álvaro, Sílvio, Ribeiro, Neto e Ciro – e completado por um último capítulo, cujo título é “O próximo”.

Na página que inicia os capítulos, vem o nome do narrador e uma inscrição com as datas de seu nascimento e morte, como numa lápide. A narrativa é em primeira pessoa, e traz as memórias dos personagens e transcrições de seus pensamentos, enquanto fazem suas atividades rotineiras. Daí, as vozes vão se alternando, até seu último dia. Como as datas de óbito são afastadas, também vai se falar como as mortes dos primeiros afetarão os ainda vivos.

Estas digressões, pensamentos, diálogos e comentários entregam personagens esplendidamente construídos, absolutamente reais em suas mágoas e mesquinharias, de perfil psicológico consistente e de fácil identificação.

Isso, por si só, já é um grande mérito.

Mas a construção é ainda mais elaborada, porque, pelo fato deles serem amigos, comentam uns sobre os outros constantemente, e assim, entregam mais detalhes de seus comportamentos e atitudes, além de pontos de vista alternativos para alguns eventos-chave.

Ou seja, Fernanda conseguiu um feito e tanto, ao estabelecer uma narrativa que é perpassada pelas outras vozes o tempo todo, sem nunca perder a identidade de cada um, e ainda revelar mais destas identidades na visão inimitável e privilegiada que só o outro pode ter.

Os meios – demais personagens

A proeza de ter encadeado as vozes de cinco personagens, sem perder as características de cada um, é aumentada, porque há também as falas dos coadjuvantes, em subtítulos. E estes aparecem em mais de um relato dos protagonistas: são as esposas, ex-namoradas, filhos e filhas, dentre outros; todos igualmente bem construídos. O ponto de vista deles enriquece mais ainda o cenário desenhado e dá novas nuances às personalidades dos cinco amigos e a alguns dos fatos que eles relatam.

A teia de protagonistas e algumas das pessoas que gravitam em torno deles é uma microrreprodução do mundo: seres reais, que convivem e tem suas visões sobre as coisas e pessoas, que tem seus segredos e frustrações, e que confundem as memórias com os fatos.

Este pequeno recorte que Fernanda fez, das vidas e situações de todos os personagens que desfilam pelas 200 páginas, é em tudo fiel à realidade, e traz todos os ingredientes que conhecemos bem aqui fora do papel: esperança, sonhos, escolhas boas e ruins, anseios, alegrias, segredos, mágoas e desencontros, e também humor, tragédia, e muita, muita beleza.

Uma ideia de enredo tão simples, mas imensamente trabalhosa, que poderia desandar ao menor descuido – que felizmente, Fernanda não comete.

Uma pitada de humor…

Eu esperava humor vindo de Fernanda Torres, comediante de primeira linha. E claro, há até bastante dele no livro, mas muito cadenciado. De fato, o humor é aquele que vem do inusitado, ou mesmo daquela sensação de que a vida é mesmo uma grande comédia, com suas idas e vindas.

Acho dificílimo escrever algo engraçado; são necessárias sutileza e elaboração muito delicadas, para não cair em algum extremo, como o grotesco ou o patético. Para ser bem sincero, houve duas ou três vezes durante o livro que parecia que a “Fernanda-comediante-do-imaginário-comum” estava escrevendo, com situações que pareciam vindas de alguma de suas comédias encenadas. Mas isso passou tão rápido como uma brisa, e a leitura prosseguiu, fluindo daquela maneira gostosa que vamos lendo sem perceber as páginas sendo viradas.

Então, na absoluta maioria das vezes em que o humor apareceu, veio de maneira perfeita – arrancando o riso como um ato reflexo, do qual só vamos nos dar conta do porquê rimos depois de já tê-lo feito.

… e uma de atrevimento

Já seria uma obra notável e uma estreia impressionante se ficasse nisso. Uma história correta, bem costurada, verossímil e divertida. Mas talvez alguém dissesse que faltou um pouco de imprevisto. Seria ainda uma obra de arte, como um quadro pintado com perfeição fotográfica, como os de Almeida Júnior – mas talvez carecesse de uma pitada de ousadia.

Nem isso faltou.

A danada da Fernanda ousou sim, e de maneira magistral, no final de seu romance, com algo que não pode ser entendido de imediato. Enquanto eu lia, fiquei aventando possibilidades, mas o mistério só é revelado no final (não se preocupe, isso não é um spoiler, nem quebra o encanto de ler a obra).

Há um sutil toque de fantástico no enredo – exatamente igual acontece no dia a dia. Basta ler o noticiário para o fantástico e o absurdo saltarem aos nossos olhos e estapearem as nossas caras.

Por isso, achei a última travessura da genial autora formidável, que deu ao livro aquela particularidade para não apenas torná-lo correto e bem escrito, mas ímpar.

Outra beleza

Fernanda Torres demonstra com esta obra ser uma ouvinte e uma espectadora atenta do cotidiano, e alia a isso a sensibilidade de mostrar que o dia a dia, o comezinho, as vidinhas que acendem e apagam todos os dias no mundo tem, em si, a mesma força que acendeu as estrelas.

E como tudo isso – a obra, a vida, a morte – é essencialmente belo, cabe traçar um paralelo com outra obra, em outra mídia, que toca nestes mesmos temas: o corriqueiro, as impressões dos outros, a vida normal que nunca é normal, e a morte e sua imprevisibilidade, que dá sentido a tudo.

É o filme Beleza americana.

beleza-americana

Ambas as obras falam da morte. Beleza americana é narrada postumamente por Lester Burnham, medíocre funcionário que segue emasculado e submisso a todos: aos chefes, aos clientes, à mulher e à filha. Ele é uma piada, até o dia em que resolve virar a mesa e começar a fazer o que quer e o que gosta.

***(Em off: quanto há de Lester Burnham em mim? E em você?)***

Em dado momento de sua vida, depois que ele rompe suas amarras, as coisas ficam bem esquisitas. Sua mulher o trai, sua filha o despreza, ele larga o emprego e se envolve, inadvertidamente, com tipos estranhos, como o garoto vizinho, que tem fixação pela sua filha e lhe fornece maconha, e o pai dele, ex-militar durão e preconceituoso, que talvez seja algo bem diferente por debaixo da casca. E a amiga da filha, uma jovem que ele tenta seduzir, e que parece experiente.

Bom, não vou publicar spoilers do filme, apesar dele ser já antigo (2000) e de ter passado inclusive na TV aberta. Se você já assistiu, sabe aonde quero chegar – a ironia e a fragilidade da vida, contada com humor mordaz – que bem pode ser uma descrição do magistral livro de Fernanda Torres.

A protagonista oculta

morte2A morte, esta desconhecida tão familiar, espreita em ambas as obras, e é enquanto ela não chega que as tramas vão se desenrolando para os narradores, e – surpresa! – continua se desenrolando depois que ela lhes alcança com seu derradeiro toque. 

Isto é significativo, porque a morte é o Fim, como bem batizou Fernanda Torres, mas não se sabe qual fim. Se definitivo, se só passagem, se uma porta para o nada, ou para o tudo. Mas o que se infere destas obras é que o sol continuará a nascer, depois da sua morte, não importa o que você tenha chegado a ser. Que o mundo continuará basicamente o mesmo. Que você viverá nas memórias e impressões dos outros, e esta será sua sobrevida. Que a pessoa que você é acaba quando descer o caixão, mas que sua lembrança seguirá, enquanto os que te conheceram viverem.

E que até isso acontecer, você viverá, talvez, como cantou Sinatra, com duas doses de alegria para uma de tristeza. E então, deixará tudo isso para trás, na vida como carne e osso. Ou seja, independente do que você creia para depois da morte, a sua singularidade – Fulano(a) de Tal da Silva, filha de Sicrano e Beltrana – jamais se repetirá no universo conhecido.

Há que se ter humor para se encarar esta implacável verdade.

Influências cinematográficas?

Mas nem só de morte vive este romance. Há muito a acontecer, antes de ela chegar. Sobre influências da autora, arrisco dizer, sem ter certeza, que ela seja cinéfila, porque não apenas enxerguei paralelos evidentes, mas também entrevi influências de filmes consagrados no seu enredo: Magnólia, de Paul Thomas Anderson, Short Cuts, de Robert Altman e Crash, de Paul Haggis – todos eles com diversos personagens, em tramas que são cuidadosamente entrelaçadas, embora pareçam independentes. E também pelo fato de todos serem obras que ganham muito numa segunda visita – para perceber sutilezas, dicas e autocitações, que escapam na primeira leitura.

Os personagens de Fim, em minha opinião, alcançaram a mesma profundidade dos destes filmes, se não foram além, porque uma interpretação possível demonstra que a interação dos cinco protagonistas uns com os outros, durante a maior parte de suas vidas, foi de tal forma intensa e próxima que os moldou e imprimiu neles marcas definitivas. Embora esta seja uma extrapolação da leitura, é perfeitamente cabível, exatamente da mesma maneira que acontece “aqui fora”. No livro, se percebe o amigo infantilizado, o recalcado, o canalha, o certinho, todos eles se assumindo, se transformando e se reforçando, conforme o convívio entre eles acontecia.

Aliás, outro mérito foi a tranquilidade da autora em dar vozes masculinas a seus personagens. Ela reproduziu perfeitamente expressões, palavrões e visão de mundo essencialmente viris. Embora haja um tanto de chavões nelas, percebi também algumas sutilezas, que fogem do imaginário comum de que todos os homens são mulherengos (convictos ou disfarçados) e machistas.

Enfim, acredito que o fato de Fernanda ser uma atriz, ter vivido desde sempre entre artistas e atores, e ter que interpretar e contracenar com personagens que são construídos segundo um roteiro, tenha sido determinante para conseguir montar personagens tão ricos, tão multidimensionais e tão interdependentes, como são os de seu livro. Dá a nítida sensação que ela “conhecia” mais os personagens, em suas nuances, do que pôde relatar no papel.

Oh, crianças / Isso é só o fim”

O tom escolhido para alguma obra que imite a vida (todas?) depende do autor. Pode ir de tragédia à comédia, mas eu, particularmente, gosto bastante quando este tom se situa entre ambas, ou vai de uma a outra, sem se firmar.

Fim pende mais para a comédia, mas é por meio dela que também dramatiza, trazendo dilemas e vidas tão iguais as nossas, com toda a sensibilidade que os escritores seguros têm. Achei notável a estreia de Fernanda, e me surpreendi positivamente – e parece que não estou sozinho: o livro continua bem comentado e a autora aceitou o convite e confirmou a presença na Flip 2014 (Festa Literária Internacional de Paraty, que acontecerá de 30 de julho a 3 de agosto).

Falar sobre este pequeno intervalo entre dois períodos de tempo absolutamente desconhecidos – que nós chamamos de vida – brincando com a impermanência, com o cotidiano, com a vaidade e a forma aleatória com que tudo acontece, e de quebra, arrancar risos, fazer refletir e deixar uma sensação de bom tempo gasto, é tudo o que um bom livro pode desejar.

Em minha opinião, Fernanda Torres alcançou com méritos este Fim.  

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Por Alberto Nannini

O_GENIO_DO_CRIME_1230942899PDepois das resenhas para o público principalmente infanto-juvenil que escrevi – Os meninos da rua Paulo e O enigma das estrelas, nada mais justo que uma dica de leitura do mesmo tom.

Clássico sem perder a atualidade, é excelente para presentear aquele(a) sobrinho(a), primo(a), enfim, aquele(a) jovem meio desinteressado pela leitura: é o livro O gênio do crime, de João Carlos Marinho.

Uma rápida pesquisa me informa que a obra, de mais de 40 anos, teve mais de 1 milhão de exemplares vendidos em mais de 60 edições, e é considerado uma das referências fundamentais da literatura infanto-juvenil brasileira.

A história é simples: uma turma de garotos coleciona figurinhas num álbum de futebol, que, se preenchidas, dão direito a bons prêmios. Mas alguém está falsificando as figurinhas, e o proprietário da fábrica que as produz não tem capacidade da dar todos os prêmios, e pode ir à falência. Então, uma turma de garotos – a Turma do Gordo: Edmundo, Pituca e Bolachão (depois, também Berenice) – se unem para descobrir quem está por trás daquela fraude: eles vão se deparar com um gênio do crime e precisarão de toda a astúcia para desmascará-lo e se safarem.

Nem preciso dizer que, para alcançar o sucesso que alcançou, o livro é necessariamente muito bom, mas reforço: é muito bom. Passagens dele me marcaram, apesar de ter lido há uns trinta anos. A invenção do Gordo para seguir um dos bandidos é uma sacada inteligentíssima, que fez escola. Tem até cenas de tortura, que te deixam angustiado.

Uma memória curiosa: um ex-namorado de uma das minhas irmãs, um rapaz de enorme coração, mas meio bronco, gostava muito de conversar comigo, embora eu fosse só uma criança. Eu falava empolgado dos livros que lia, e ele (provavelmente disléxico) dizia que não conseguia ler nada. Então, eu dei a ele meu exemplar de O gênio do crime, depois de fazer uma enorme propaganda, mais ou menos como esta, para que ele o lesse; e me lembro de quando eu o via, e ele vinha comentar as passagens do livro que tinha lido, e que estava gostando, e isso me deixava muito feliz.

Então, se por acaso não o conhece, procure-o em qualquer sebo; se já o leu, revisite-o, e, se conhecer alguém que não consegue se apegar à leitura, esta é uma ótima dica de presente!  

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Por Alberto Nannini

enigma das estrelas capaAs gerações que tenham hoje entre quase trinta e quase cinquenta anos certamente já ouviram falar dela – uma série de livros de grande sucesso, editados pela editora Ática, a partir de 1972: a famosa série Vaga Lume.

Seus livros, com grandes tiragens, eram sucesso de público e de crítica. Lidos por muitos jovens, trabalhados nas escolas, sempre funcionaram como uma espécie de iniciação às leituras mais consistentes. A edição era simples, e as tramas, ágeis. Raramente iam muito além das 100 páginas.

O sucesso da série fez com que personagens de alguns de seus livros estrelassem mais de um romance. Era o caso do personagem Xisto, de Lúcia Machado de Almeida, que estrelou Aventuras de Xisto, Xisto no espaço e Xisto e o pássaro cósmico, e de Léo, o garoto que estrelou os sucessos O mistério do cinco estrelas, O rapto do garoto de ouro, Um cadáver ouve rádio e depois, Um rosto no computador, do autor Marcos Rey.

A série Vaga-lume foi citada aqui por três motivos: a obra que será resenhada a seguir poderia perfeitamente fazer parte de seu acervo; seus personagens estrelarão mais de um romance e, por fim, embora não tenha certeza, apostaria todas as fichas que o autor F.T. Farah lia esses livros, e que eles foram uma de suas fontes de inspiração.

Série infanto-juvenil Clube dos Mistérios, primeiro volume: O enigma das estrelas

A sinopse no site do autor diz assim: “Cercado por estranhos acontecimentos, o vilarejo mineiro de Morro do Ferro é o destino das férias de julho de cinco adolescentes: Jonas, Alfredo, Carola, Carmem e Vicentinho. Em O Enigma das Estrelas – primeiro volume da série Clube dos Mistérios –, eles partem para o primeiro acampamento de suas vidas. Para os pais, a aventura é um ritual de passagem para a vida adulta. Para Jonas, o mais velho da turma, é a ocasião perfeita para conquistar Carola e amedrontar os amigos. Na primeira noite fora de casa, ele conta histórias aterrorizantes em torno de uma fogueira. E acaba sendo vítima de uma delas. Levado a bordo de uma nave espacial, o adolescente é surpreendido por seres extraterrestres e passa por um estranho ritual de passagem”.

O livro lido (gentilmente cedido pelo autor) é uma reedição recém-publicada, já que sua primeira edição estava esgotada. Farah revisitou a obra, e a atualizou, substituindo cartas que os personagens escreviam por e-mails, além de acrescentar textos que dialogam com o leitor, em caixas separadas, com uma edição e aparência que lembra revistas ou sites.

Aliás, o design gráfico do livro é primoroso, e estas “caixas de diálogo” são uma sacada inteligente. Funcionam muito bem. Nelas, Farah aprofunda alguns temas, como listas de filmes com o tema de extraterrestres, palavra de estudiosos do assunto, dicas de acampamento e outros.

Outro ponto positivo são os muitos ganchos deixados, lembrando que este livro é o primeiro de uma série de cinco. Os garotos e meninas do grupo vão revelando suas personalidades e interesses, e alguns destes ganchos poderão ser aprofundados, como certos segredos só insinuados ou ligações que há entre personagens secundários. Por exemplo, é revelado neste 1º volume que houve um relacionamento antigo entre o pai de Jonas e a mãe de Carola. O atual marido desta, Murilo, sabe disso e não se sente confortável.

A linguagem utilizada pelo autor, quando dá voz a seus personagens, é bem fiel. Sem exagerar em gírias e trejeitos, consegue caracterizar as particularidades da comunicação entre eles, e também retrata bem suas preocupações típicas.

O fato dos protagonistas criarem um grupo – “O Clube dos mistérios” – lembrou o clássico infanto-juvenil de Pedro Bandeira, A droga da obediência, e o grupo deles, “Os Karas” (como o li só uma vez e há muito tempo, não conseguirei compará-los melhor).

Enfim, Farah, bom escritor (leia a resenha de outra obra sua já resenhada por aqui: A outra face de Deus), tem domínio de técnicas narrativas e soube construir um enredo instigante. Como já li o livro com intenção de resenhá-lo, atentei para o fato de que o autor tem a imagem dos personagens bastante nítida e também sabe exatamente aonde a história contada os levará.

Talvez daí venha alguns problemas que minha leitura detectou.

Um deles é que, embora ele tenha vívida a imagem dos garotos e das cenas descritas, há vezes em que sua descrição delas não é perfeita, ou ainda, não se passa daquela forma desapercebida, que se materializa, instantânea, conforme a leitura flui.

Acredito que isso se dê por conta de Farah utilizar praticamente apenas o recurso de descrever as ações após os diálogos. Por exemplo, em um deles, Jonas cumprimenta Vicentinho, que o interrompeu, mas o estado de ânimo dele – “se mordendo de raiva” – só é descrito após o cumprimento. Há o contexto, claro – na ocasião, Jonas estava sendo interrompido – mas há uma ampla gama de reações possíveis a isso, e faz parte da leitura “adivinhar” o desenrolar – a não ser que a maestria do autor o conduza por onde ele queira, e você nem se dê conta.

Quando isso não acontece, poderá travar um pouco a leitura, porque, se não se percebe de maneira automática o ânimo dos personagens e o desenrolar de suas ações, vai se imaginar o que pareça adequado, que poderá se chocar com a cena construída pelo autor, descrita em seguida.

Por conta disso, acredito que alguns diálogos poderiam ser aperfeiçoados. Há maneiras de descrever ou induzir o leitor a perceber o estado de ânimo dos personagens antes do diálogos, bem como eliminar ações evidentes como “ – tal tal tal – retrucou fulana” (ainda que nem sempre se possa escapar da identificação do interlocutor).

Desta forma, se minimizaria aquela armadilha da escrita, na qual o autor sabe exatamente o que quer dizer e passar, mas nem sempre consegue descrever de maneira adequada para os leitores. Serviria também para evitar a repetição do recurso (de sempre colocar a voz narrativa após), que também tende a cansar a leitura.

Registre-se que há muitos momentos em que estes pequenos senões não aparecem, e a leitura flui muito mais fácil.

A primeira aventura

A trama fala sobre discos voadores e abduções, e é muito bem construída em cima deste mote. Gostei bastante das inúmeras referências, que vão de deuses à lendas. Farah cita no livro inúmeros filmes, músicas, seriados e obras do tema, e consegue costurá-las de forma bastante satisfatória.

Copyofouroboros_by_Saki_BlackWingAs mitologias que giram em torno das serpentes foi bem explorada, com figuras míticas, símbolos, como o ourobóros (a serpente que devora a própria cauda), a serpente emplumada asteca e outros, que se encaixam bem na trama. Porém, no tocante às músicas de Raul Seixas, e também sobre uma participação especial da imagem dele, achei um pouco fora de propósito. Mas esta é uma questão de gosto particular.

No geral, e considerando, principalmente, o público-alvo – infanto-juvenil – achei a obra muito adequada. O tom é condizente, e pode ser bastante divertido embarcar nela, com as devidas concessões. Lembrou-me do filme Super 8, de J.J. Abrams (também citado no livro), que foi feito tendo em mente o mesmo público, e buscou identificação deles com os personagens, mas também conseguiu divertir o público adulto e todos aqueles que ainda se lembravam de como era ser criança.

Talvez o maior problema do crítico que vos fala esteja aí – ter deixado de ser criança.

Outros mundos

Quando era pequeno, tinha curiosidade insaciável por quase tudo, e isso incluía OVNI’s e ET’s. Li alguns livros do suíço Erich Von Daniken, como Eram os deuses astronautas?, mesmo sem entender quase nada, e outros com temática semelhante.

Porém, minha formação católica me impedia de acreditar que pudesse haver algo como abduções. Eu já as entendia como um ato mau, por ser análoga ao sequestro. E não me parecia correto que Deus não nos protegesse deles (ET’s), como protegia dos demônios – se você fosse bom, rezasse e tivesse fé.

Ou seja, para meu raciocínio infantil, contra o mal que poderia incorrer sobre as pessoas, como influências de “espíritos”, o próprio azar e a maldade de outras pessoas, para tudo isso poderia haver proteção divina, mas, aparentemente, não frente à tecnologias e intenções escusas de seres de outros mundos. Sem contar que eu não saberia dizer à imagem de quem eles teriam sidos criados.

Cresci, e sempre deixei a mitologia em torno de discos voadores e abduções em plano secundário, mesmo quando já havia percebido que o Deus da minha infância era uma abstração.

Mas aí, conheci Carl Sagan e li seu espantoso livro O mundo assombrado por demônios. Isto mudou tudo.

A ciência vista como uma vela no escuro

A ideia de que o desconhecido nos assombra e que inventamos explicações para ele, ou melhor, que precisamos inventar explicações para ele, foi um dos ensinamentos mais poderosos que eu aprendi, e mudou completamente a minha maneira de ver a vida.

Percebi que nossa história mostra que o mecanismo de preenchimento de lacunas de conhecimento com fantasias e mitos não só é recorrente, mas também definidor do que é ser um humano. Procuramos explicações e padrões para tudo e tendemos a repetir os construtos, variando o objeto que eles explicariam.

A ciência, em princípio, desapaixonada, veio modificar bastante esta dinâmica. Ela não substitui (nem poderia) a mitologia, a fantasia e o anseio da divindade. Mas ela clareia alguns erros cognitivos, que nos levam a crer no inexistente.

Carl Sagan recebeu centenas de cartas de pessoas que alegaram terem sido abduzidas. Ele, desapaixonadamente, inquiria se os alienígenas deram alguma informação científica ao abduzido.

Nunca deram.

Para aqueles que alegavam ter contato contínuo com extraterrestres, Sagan perguntava as noções mais elementares da física – algo que viajantes em discos espaciais necessariamente deveriam dominar.

Mas, supondo que se queira contestar isso, admitindo que a física deles seja diferente da nossa (isso é algo unânime: eles sempre são mais avançados), ainda assim, é um postulado científico difícil de ser contestado que a linguagem matemática deveria ser entendida por qualquer organismo consciente. Então, para alienígenas que nos estudaram, que sabem falar de alguma forma mensagens inteligíveis a nós, seria fácil resolver um ou dois teoremas matemáticos dos mais simples. Mas isso também nunca aconteceu.

Note bem que Sagan era um cientista, mas não se achava um deus – ele apenas achava que havia uma histeria em torno das abduções, semelhantes a histerias passadas, como por exemplo, em torno da bruxaria. Aliás, ele compara, com coincidências impressionantes, as abduções às aparições de santos e divindades, quase sempre a crianças, que eram um pouco mais comuns antes dos óvnis. Ou seja, estes (da sigla Objeto Voador Não Identificado – UFO em inglês) são um mito moderno.

Como Sagan, não acho que não possa haver outras civilizações. É até provável que haja vida fora da Terra. Sagan escreveu o livro Contato, para imaginar, com bases científicas, como seria um provável contato extraterrestre. Eu, por minha vez, não acredito que tenha havido algum destes. Quando contatamos uma civilização mais atrasada tecnologicamente, sempre a modificamos ou a dominamos. Na nossa história, há inúmeros exemplos de sociedades dizimadas por conquistadores.

Partindo daí, acho improvável que seres extraterrestres tenham tido ou mantenham contato conosco e não tenham se revelado ou influenciado decisivamente em nosso planeta (que, aliás, está quase pedindo mesmo uma intervenção externa).

Conheço alguns argumentos que defendem a existência de alienígenas, e estas influências, que já seriam operadas. Bem, quando os argumentos não são furados e tendenciosos, eles tudo se assemelham à parábola do dragão invisível, contado pelo mesmo Sagan.

A navalha de Occam contra o dragão

O sujeito diz para o outro que não só há dragões, como um deles mora na sua garagem. O segundo sujeito diz que quer ir lá ver, para acreditar, mas o primeiro diz que o dragão é invisível. Então, o segundo diz que utilizará óculos especiais, que permitem ver o espectro de calor, mas o primeiro diz que o dragão não emite calor algum. Eles diz então que vai espalhar sensores no chão, que captarão o peso, mas o dragão paira acima do ar, e não tem peso. O segundo diz então que filmará de longe com câmeras de lentes especiais, que captam qualquer espectro de energia e radiação, mas o segundo diz que o dragão não emite qualquer radiação conhecida.

Ora, um dragão invisível, que não emite calor nem qualquer radiação conhecida, que não tem peso nem materialidade alguma, está bem aqui, em cima da minha cabeça no momento em que escrevo isto. Ao final, afirmá-lo equivale a dizer que ele é em tudo semelhante a um dragão inexistente.

Esta parábola se aplica ao deus personalizado também. Há uma contradição de base em se tentar materializar o imaterial, em conhecer o incognoscível… ***Ou talvez tudo isso seja uma questão de se utilizar os instrumentos adequados, o que leva à conclusão que o intelecto e a ciência não são suficientes, neste caso. Mas isso levaria a conversa para um outro rumo, que não será apreciado agora.***

Retomando, descarto as abduções e não creio em visitas de discos voadores, por falta de evidencias cabais. Qualquer um que tenha um conhecido de um vizinho que foi abduzido, ou que tenha tido visão de discos voadores, ou ainda contato com alienígenas – e que simpatize ou defenda as teorias conspiratórias para explicar o acobertamento de tudo isso – será facilmente contestado por teorias mais simples, perfeitamente lógicas e cabíveis, que até um leigo como eu domina.

Esta é a aplicação do princípio da Navalha de Occam, que diz, a grosso modo, “se houver duas explicações para um fenômeno, a mais simples tende a ser a mais correta”. Ao invés de elaborados sistemas que categorizam aliens e suas visitas, e dependem de uma série de premissas não tão bem costuradas para se sustentar, é mais simples perceber que os discos voadores fazem parte do imaginário humano, e que nosso cérebro, além de ser pré-configurado para acreditar, não é 100% fiel em suas deduções e certezas.

variedades da exp sagan capaSagan também disse sobre isto, em seu livro Variedades da experiência científica:

Dizem as vezes que pessoas que adotam uma abordagem de ceticismo em relação aos óvnis ou até a algumas variedades de demonstrações de religiões, estão na verdade sendo preconceituosas. Sustento que isso não é preconceito. É pós-conceito. Isto é, não é um juízo feito antes de examinar as evidências, mas um juízo adotado depois de examiná-las.

Para mim, a mitologia que envolve o assunto é isso – uma mitologia. Repetindo, isso não significa que eu afirme não haver vida fora do planeta Terra. Ante a imensidão do universo, é provável que haja vida aí fora. Mas o mesmo raciocínio e a mesma configuração cognitiva que nos levaram a acreditar em seres mitológicos, há alguns séculos, nos leva hoje a acreditar em abduções, sexo com extraterrestres, experiências deles, e naves espaciais (que nem seriam a melhor maneira de uma civilização avançada se comunicar, de qualquer maneira).

Outra falha é, por incrível que pareça, a falta de imaginação – os alienígenas, sempre humanoides, e sempre falando exatamente nos termos pelos quais as pessoas medianas que são abduzidas conseguiriam falar por si próprias. Mas, por dedução razoável, a configuração e a lentíssima evolução que resultou na humanidade não deve ser o único caminho para a vida vicejar aí afora, e por isso, pode ser que vida extraterrestre tenha formato muito diferente do baseado em carbono que conhecemos.

Alguém na escuta?

Mas, enfim, é bem sabido que argumentos lógicos são contestados sem lógica, ou ignorados, pelos que escolhem crer. Ou seja, não vou convencer ninguém que creia em óvnis e abduções que não há qualquer prova cientificamente aceitável a respeito.

Por isso, voltando ao livro de Farah, é uma boa diversão e uma boa leitura para a juventude de hoje, tão diferente, tão melhor informada, mas tão confusa quanto foi a da minha geração. Algumas necessidades são universais e atemporais. A de acreditar que haja algo além é uma delas, essencial. Por isso, respeito quem ignora, por opção ou por desconhecimento, as ferramentas científicas que, infelizmente, não autorizam a acreditar, por enquanto, em óvnis e abduções.

O mundo fica mesmo mais sem graça sem algo do tipo “pode ser que os aliens coloquem na cabeça dos cientistas e dos escritores pretensiosos a certeza que eles (aliens) não existem, para não atrapalhar seus planos”. (Risos) Talvez. Pode ser que haja dragões imateriais invisíveis também. E o mundo com graça é bem melhor.

O que é certo é que não somos o centro de tudo, como acreditamos. O planeta Terra é um grão de poeira no espaço, e nossas vidas, nas escalas cósmicas, são tão breves que mal se percebe que existiram.

Para quem quer acreditar

Mulder-and-Scully-mulder-and-scully-8678647-1681-2100O homem vasculha a imensidão em busca de companhia. Isso é até corajoso. Mas, enquanto nada de conclusivo se detecta, podemos nos distrair imaginando como seria este contato, por ficção boa como a de Sagan – o livro Contato (que foi filmado, com Jodie Foster no papel principal), ou a série de Farah, especialmente se você for jovem e/ou ufólogo.

Aficionados pelo antigo seriado Arquivo X (um dos mais bem sucedidos da TV, que falava sobre uma conspiração alienígena, e cujos protagonistas, o crédulo Fox Mulder e a cética Dana Scully, batizam este texto), talvez leiam esta resenha com aquele ar de desaprovação dedicado aos descrentes, e só diriam, meio condoídos: “a verdade está lá fora”. Mas como ela não dá sinais incontestáveis, por enquanto ficarei com as verdades e a vida daqui de dentro mesmo. E outra: Mulders precisam de Scullys, ou não há um time.

 

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Por Alberto Nannini

Memórias-de-um-sobreviventeEsta é uma dica dupla: ao reler o excelente Estação Carandiru, de Dráusio Varella, me recordei do livro de Luis Alberto.

Autodidata, o autor o escreveu enquanto cumpria a maior parte de sua pena no Carandiru, o célebre presídio já desativado. Sua história de erros, exageros, drogas, sexo e crimes o levaram para a cadeia antes dos 20 anos, da qual só saiu depois dos 50.

O estilo mostra alguém que domina as letras (ouvi falar que ele teria lido toda a biblioteca que havia na prisão), e é bem pessoal: tem floreios, mas não deixa de ser direto.

Quando li a obra, fiquei pensando quais inevitáveis edições o autor fez, ao romancear sua história. O que omitiu, o que transformou, intencionalmente ou não. Por exemplo, em relação ao assassinato que o levou preso, de um segurança de posto de gasolina; segundo suas palavras, ele teria reagido mesmo enquadrado por quatro armas (a sua e de seus parceiros). Deu-me a impressão de que Luis lamentou mais a “imprudência” do alvejado e ter sido pego por este crime que o levaria à pena máxima do que propriamente tê-lo cometido e a vida desperdiçada.

Luis Alberto virou colunista da revista Trip, antes mesmo de ser solto, e escreve nela até hoje, com um estilo que se refinou bastante com o tempo, e com a perspectiva de um homem que passou metade de sua vida preso, e que por isso tem outros valores e enxerga outras nuances, diferente da maioria de nós.

Se já leu Estação Carandiru, vai gostar do Memórias de um sobrevivente – é como o aprofundamento de uma de suas crônicas. Mesmo que não tenha lido o primeiro, o livro de Luis Alberto Mendes vai valer a pena (sem trocadilho).  

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Por Alberto Nannini

o-pacto_joe-hillQuando as pessoas que você ama lhe viram as costas, e sua vida se torna um inferno, ser o diabo não é tão mau assim”. Esta é a chamada de capa do livro O pacto, de Joe Hill. Fisgou minha atenção numa livraria, e me levou a ler a sinopse e as orelhas, achando-o instigante, até finalmente comprá-lo.

Depois de já começada a leitura, meu amigo César me informou que Joe Hill é filho de Stephen King, para meu espanto. Embora não seja uma regra absoluta (vide Antonio Prata e Mário Prata, Érico Veríssimo e Luis Fernando Veríssimo, dentre outros), não utilizar o sobrenome famoso, quando se tenta o mesmo ofício que o pai bem sucedido, é um bom sinal e soa corajoso.

Uma história de chifres

O livro fala sobre um rapaz, Ignatius Perrish, o Ig, que vive um pesadelo dantesco: o amor de sua vida, Merrin, foi estuprada e assassinada, e todos acham que ele é o culpado, já que eles tinham rompido o namoro e brigado feio na noite do crime. Inocentado mais pela influência da família do que por provas, um belo dia ele acorda com chifres (que é o título original da obra – Horns). As pessoas veem os chifres, mas quase não se assustam, logo se esquecem de tê-los visto, e começam a contar a Ig seus desejos e pecados mais secretos.

Ig está se tornando o (ou um) diabo, e quer descobrir quem matou Merrin e por que, e se vingar. Parece que será uma tarefa fácil. Mas, a princípio, os chifres e seu poder de fazer as pessoas confessarem se mostram mais como um incômodo constrangedor do que uma vantagem, já que Ig descobre segredos inconfessáveis de seus parentes, amigos e até desconhecidos, e também o que eles pensam dele de verdade. Mas fica muito pior: em matéria de maldade, perto de muitos humanos, diabos são reles amadores, e a jornada do novo chifrudo será, literalmente, um inferno.

Impressões sobre o livro

A construção de personagens é talvez o ponto alto da trama. Ig, Merrin e Lee Torneau, o melhor amigo de Ig (antes do crime), são muito bem delineados, e parecem saltar das páginas para o mundo. Ficaram bem reais. Outros personagens, como Gleena, namorada de Ig após o crime, e Terry, seu irmão, também mostram, em sua caracterização e ações, perfis psicológicos consistentes. Isto é fundamental para que tramas que tenham um pé no sobrenatural fluam de maneira satisfatória. Ponto para o autor.

A divisão dos capítulos, que procura alternar o ponto de vista entre os três protagonistas, funciona muito bem. Suas motivações e o tipo de elo que os une, além das impressões que tem uns dos outros, engrenam perfeitamente.

Outro ótimo mérito é a premissa do homem se tornar o diabo. Bastante criativa, abre o leque para uma série de interpretações e considerações, que serão retomadas mais à frente.

O estilo de escrita é condizente. Há palavrões quando cabem, e não há abuso de adjetivos. A tradução parece não comprometer, embora tenha encontrado pelo menos um erro grave nela (tudo indica que foi traduzido terrific como terrível). Mas as pouco mais de 300 páginas passam bem rápido, e o livro prende, na expectativa do desfecho que explique as ações dos personagens e que mostre a trajetória do novo diabo.

Como pontos negativos, não me convenceu bem o fato de todos acharem que Ig era o culpado pelo crime de estupro e morte da namorada e grande amor de sua vida. As narrativas de sua história, que incluem episódios da infância e adolescência com Lee e Terry, e também do momento em que conheceu Merrin e sua paixão instantânea por ela, nunca demonstraram que ele seria capaz de um ato como este – já que foram namorados por seis anos até o crime, e tinham rompido naquela noite, numa briga triste mas nada fora do comum, como bem sabe qualquer um que já tenha terminado algum relacionamento.

Além disso, com todo o aparato tecnológico que existe para se apurar crimes – especialmente os de grande apelo popular, de caráter sexual e que envolva famosos ou seus parentes, como no caso – dificilmente não seria desvendado.

O surgimento dos chifres poderia ter sido melhor amarrado. Talvez eu não tenha entendido direito a origem deles (tenho algumas hipóteses que não posso revelar, porque seriam spoilers), mas o fato é que eles surgem sem explicação, cerca de um ano após o crime; Ig está vivo, conversa e convive com todos que o toleram, embora esteja reduzido à condição de pária e beberrão.

Lá pelo fim, há uma explicação da atitude de Merrin, sobre o fim do namoro; achei desnecessária. Tenta amarrar bem esta ponta, e erra a medida. Muitas outras pontas terminam soltas, como o destino final de Ig.

De qualquer forma, é um livro notável, no meu entender, tanto pelos méritos e até pelos deméritos artísticos, como pela discussão que traz à baila: a personificação do mal.

O diabo e outros males

Na minha última resenha/artigo, que falava sobre o genocídio em Ruanda, perguntei se você, leitor, acredita que o Mal seja personificado. Uma tirinha de Calvin e Haroldo (brilhante!) que ilustra o artigo lança um olhar interessante:

Calvin: Você acredita no demônio? Sabe, um ser supremo, maligno, dedicado à tentação, corrupção e destruição do homem?

Haroldo: Não sei se o homem precisa desta ajuda…

Discutindo um pouco a origem do mito, tudo remete às dicotomias, e à natureza dual do homem. Quase sempre precisamos do oposto para entender algum conceito: claro/escuro, longe/perto, bem/mal.

O Deus único é um conceito relativamente recente. Por isso, chegaram a nós bem documentadas as tradições de muitas civilizações mais antigas que cultuavam panteões de deuses, como o caso da grega, um dos pilares da civilização ocidental. E há outras que ainda são assim nos dias de hoje, como o hinduísmo e algumas religiões africanas.

Este Deus único e seus pressupostos de perfeição – Onipotência: tudo poder; Onisciência: tudo conhecer e ver e Onipresença: estar em todos os lugares – gera alguns paradoxos, como o problema da existência do mal. Tal aspecto é tão importante que, conforme já havia citado no mesmo artigo de Ruanda, o filósofo Leibniz sistematizou uma corrente de pensamentos que procura conciliar a existência dele com a existência do mal – a Teodiceia, e a cisma entre os teístas e os ateus (especialmente os modernos ateus militantes, como Richard Dawkins, Sam Harris e o falecido Christopher Hitchens) baseia-se principalmente nisto.

A solução mais comum e antiga sempre foi a personificação da maldade em um opositor – o diabo, com a origem de todos os males sendo a ele atribuída.

A face do Mal

O antagonismo ao deus único já figurava no zoroastrismo, religião monoteísta mais antiga que se tem registro. Nela, o opositor era Ahriman, ainda que não representasse propriamente uma entidade, mas sim uma manifestação de tudo o que é negativo.

Na tradição judaico-cristã, o diabo, originalmente, tinha outra atribuição, como o próprio nome dizia: acusador. Conforme se desenrolam as narrativas da Bíblia, vai mudando de função. Ele se torna a serpente, que dá o fruto da árvore do conhecimento do Bem e do Mal (só este nome é mais que significativo…) à Eva; em Jó, vira o adversário, que tem livre acesso a Deus, e O contesta, quando Ele aponta Jó como exemplo de homem íntegro. Segundo o diabo, Jó só era assim porque tinha todas as graças. Então, Deus autoriza que se tire tudo de Jó, poupando-lhe só a vida.

No novo testamento, Jesus se encontra com o diabo, que por três vezes lhe tenta a cair. Demônios são expulsos das pessoas, e depois, os apóstolos advertem para as pessoas se defenderem das artimanhas do tinhoso. No livro de apocalipse, se dá a batalha final do diabo contra as hostes angélicas, e o dia do juízo final, onde todas as pessoas, vivas e que já morreram, serão julgadas e terão que enfrentar seu derradeiro destino: subir aos céus, aonde reina Jesus, ou ser banida para o inferno, e lá sofrer por toda a eternidade.

Na cultura, o diabo é um personagem riquíssimo, e já figurou em literatura, peças, filmes e muitas outras manifestações artísticas – além deste livro.

O sermão de fogo

Aproveitá-lo em seu enredo, e reinventá-lo totalmente foi a sacada do autor em O pacto. Afinal, quem está ali é sempre Ignatius (trocadilho no nome do inglês igneous – ígneo: que é de fogo). Ele se torna um quase-diabo, mas é sempre ele por baixo dos chifres. Meio como Peter Parker se tornar o Homem Aranha.

Sem apologia ao ateísmo, Joe Hill ataca os estigmas usuais do diabo e de deus, com um jocoso “sermão de fogo”. Só isso já vale o livro. Cito apenas dois trechos dele para você apreciar ou contestar:

Há muito tempo Satanás é conhecido como o Adversário, mas Deus teme muito mais às mulheres do que ao diabo, e Ele está certo. Ela, com seu poder de trazer vidas ao mundo, é quem foi realmente feita à imagem e semelhança do criador, e não o homem.

O diabo sabe que só aqueles que têm coragem de arriscar a alma por amor merecem ter alma, mesmo que Deus não saiba.

quadrinhos carlos ruasSua interpretação diferente do papel do diabo não é nova, mas tem personalidade. Saramago, ateu declarado, reviu o papel do adversário em seu clássico O evangelho segundo Jesus Cristo (já indicado aqui no Canto dos Livros). Para ele, o diabo é muito mais próximo da humanidade do que Deus. Outro autor consagrado que inverteu o conceito da figura (Lúcifer, no caso) foi Neil Gaiman, em seu clássico Sandman (que muitos julgam ser a melhor história em quadrinhos já publicada). Seu Lúcifer é quase discreto, e está cansado de cuidar do inferno, o larga e vem viver entre os humanos.

A mitologia do anjo caído

Toda a história criada a respeito de um arcanjo que era o mais bonito, mas que caiu em desgraça pelo pecado do orgulho, é uma mitologia muito bonita e rica. Pensando bem, não difere, em sua estrutura, daquelas que ninguém leva ao pé da letra, como as de diversos exemplos da mitologia grega – como Hades ter se tornado senhor dos infernos, e que depois sequestrou Perséfone e deu origem às estações do ano.

Indo um pouco mais a fundo na do arcanjo caído – Lúcifer, que embora se confunda com satanás e com o diabo, não é o mesmo ente – o orgulho foi a causa de sua queda. Ora, veja se este orgulho que ele teve não é tal e qual o do filho primogênito, que tem a atenção roubada pela chegada do caçula. Não parece igual? O amor confundir-se com o ciúme é algo humano, demasiado humano. E que pai expulsaria seu primogênito, por ele dizer e acreditar ser melhor e mais bonito que o filho mais novo? (O caçula de Deus, segundo a tradição, é a humanidade). O que há de fora do comum nisso? Tudo bem que a mitologia de Lúcifer diz que ele queria usurpar o posto de Deus. Este é um pecado mais grave, mas danação eterna sempre me pareceu exagero, até para o diabo, que um dia amou a deus e foi amado por ele.

Mas quais pecados são além da redenção?

Difícil responder. De qualquer forma, é de se pensar: se Deus detesta os pecadores, e o diabo os pune, ambos não estariam do mesmo lado?

Bem, Deus tem critérios misteriosos. Algumas coisas este deus não aceita, e insurgência, como bem sabem Lúcifer, Adão e Eva, parece ser o pecado mais grave aos seus olhos – tal e qual qualquer ditador.

Personalização de deus

Na minha opinião, toda esta polêmica e os furos irremediáveis da mitologia cristã se dão pela personalização excessiva de deus. Algo perfeitamente compreensível, ao se ver os atributos que tinham as antigas deidades.

Para um povo nômade e continuamente expulso, como os judeus, ter um deus senhor dos exércitos fazia bastante sentido. Já hoje, sabendo o que há numa guerra, e pensando que todos são seus filhos, é, no mínimo, um contrassenso.

Deus ter “inimigos” entre os humanos é uma desproporção. Ele tomar partido de um povo e auxiliá-lo em guerras contra outros é ingênuo. Era exatamente o que eu desejava quando era pequeno e os caras grandes na escola me batiam – torcia para Deus se vingar deles por mim (o que, felizmente, parece nunca ter acontecido).

Ou seja, a visão de deus e do diabo de muitos – até mesmo a de religiões – é muito semelhante à visão de super-heróis e super-vilões que é tão comum hoje. Deus é o super-herói supremo, e o diabo, o arquivilão. Além de ser algo incrivelmente infantil, também é uma redução de sentido totalmente disparatada. Um ser onipotente teria mais o que fazer do que se preocupar com orações bem feitas, adorações e pecados.

Pretendo retomar esta discussão em outra resenha. Há muito para se considerar sobre isso.

Pobres diabos

Joe Hill parece promissor. Seus livros tem feito sucesso e ele angariou muitos fãs. Quanto ao O pacto, li resenhas apaixonadas sobre, pessoas que o consideraram o melhor que já leram. Acho que não é para tanto. É um bom livro, uma história bem construída e contada, ainda que tenha algumas falhas, na minha opinião, que, se sanadas, resultariam em uma obra mais coesa.

De qualquer forma, se o ler, preste atenção ao “Sermão de Fogo”, uma contraposição ao Sermão da Montanha, sem contudo desrespeitá-lo ou desacreditá-lo (o que não seria possível, de qualquer forma).

Talvez o diabo esteja com os dias contados. Disse o sociólogo francês Michel Maffesoli, em seu livro A parte do diabo: “a pessoa plural num mundo policultural tende a integrar o mal como um elemento entre outros”. Ou seja, o mal personificado vai perdendo sua função, e o diabo vira um personagem literário.

Sobre a maldade dele, me assustam mais os homens em qualquer guerra, ou munidos de alguma justificativa semelhante, ou simplesmente possuídos (?) pelo ódio e pela ignorância. Pobres diabos, estes (sub)humanos. Concordo com o que cantam os Racionais MC’s, em seu clássico “Diário de um detento”:

Já ouviu falar de Lucífer? / Que veio do Inferno com moral, um dia… / No Carandiru, não… ele é só mais um. / Comendo rango azedo, e com pneumonia…

E, por último, a respeito destas e de outras crenças, o magistral Joseph Campbell:

Mitologia é o nome que damos às religiões dos outros..

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19_SkreemerPor Alberto Nannini

Era o começo da década de 90, eu continuava lendo quadrinhos, mas as editoras tradicionais (Marvel e DC) começavam uma queda livre, com sagas inusitadas, argumentos infantis e desenhos absurdamente exagerados.

De repente, caiu em minhas mãos a minissérie Skreemer, e fui completamente surpreendido. Não se parecia nem remotamente com nada que eu tinha lido: uma espécie de futuro pós-apocalíptico, mas copiado da década de 30, com seus gangsteres, lei seca, destilarias clandestinas e mafiosos.

Em meio aqueles dias turbulentos, Charles Finnegan, um irlandês, tenta cuidar de sua família, sem contrariar seu senso de justiça e suas convicções. Mas seu caminho vai cruzar com o trio formado por Veto Skreemer – principal assassino dos mafiosos, temido até por eles, e seus amigos e parceiros Dutch Amsterdam e Victoria Chandler, unidos desde crianças, e que ascendem juntos na máfia. O narrador da história só é revelado nas últimas páginas, e esta é apenas uma das surpresas.

A criatividade do roteiro e o tanto de referências que ele revela ainda hoje me impressionam. Fui apresentado a James Joyce por esta obra. A discussão que ela traz sobre livre arbítrio, religião e destino é simplesmente magistral (ao ponto de eu achá-la herética na minha juventude), e o mecanismo de flashbacks vai explicando algumas atitudes e consequências, até o desfecho surpreendente.

Se fosse adaptado para o cinema e dirigido por Tarantino ou Scorsese, teria cenas e diálogos antológicos, como o dilema de Charles e as duas crianças, ou a revelação de Veto ao desfigurado Dutch.

Mas os quadrinhos são a única maneira de apreciar esta obra prima. É possível achá-la em sebos, nas seis edições originais ou em encadernados (prefira os da editora Abril, que são coloridos e melhores).

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Por Alberto Nannini

sobrevivente de ruandaOutro dia, numa discussão na internet, veio à tona o genocídio em Ruanda – o massacre de cerca de 800.000 pessoas, da etnia tutsi, pelos hutus, entre 6 de abril a 4 de julho de 1994. Eu e os outros debatedores tínhamos conhecimento superficial sobre o assunto. No meu caso, retalhos de informações lidas aqui e ali, além do excelente filme Hotel Ruanda, assistido há alguns anos.

Mas sempre tive curiosidade de entender como aconteceu aquela barbárie, tão recente, num dos países mais pobres do mundo. Quais os motivos? O que aconteceu depois? O que isso nos ensina?

Súbito, de forma quase simultânea, eu tinha dois livros sobre o assunto para ler: Uma temporada de facões, do jornalista Jean Hatzfeld, e Sobrevivi para contar, de Immaculée Ilibagiza (com o jornalista Steve Erwin). O primeiro tem como base entrevistas com um grupo de hutus presos, que participaram do massacre como algozes, e o segundo, o depoimento de uma sobrevivente.

Meu plano era ler minuciosamente o primeiro livro, e utilizar a leitura do segundo como apoio. Para facilitar a leitura desta resenha, a dividi em três: a Parte I tem como base o 1º livro; a Parte II, tem como base o 2º, e a Parte III traz as conclusões sobre ambos.

Parte I – Colheita de ossosUMA_TEMPORADA_DE_FACOES

Uma temporada de facões é o segundo livro de Jean Hatzfeld sobre o tema. O 1º, Dans le nu de la vie (que aparentemente, não foi traduzido para o português), focaliza sobreviventes do genocídio em Ruanda. Uma temporada se baseia em entrevistas de um grupo de dez matadores, dentre os milhares que se tornaram assassinos, feitas na prisão, enquanto aguardavam suas sentenças.

A proposta do livro me fisgou: depoimentos dos matadores, cuja leitura talvez possibilitasse o entendimento das raízes dos problemas que descambaram num dos maiores massacres que se tem notícia, além de dar a perspectiva deles, de como foram absorvidos e/ou se deixaram absorver pela desumanidade total que o episódio comprova.

Li-o duas vezes, e é absolutamente surreal. Na primeira vez, os relatos dos assassinos e do escritor, que os entremeia com informações sobre o genocídio e sobre como planejou e conseguiu escrever a obra, me deixaram tão pasmo que foi difícil reter as informações. Na segunda vez, já familiarizado com os nomes dos entrevistados e fazendo anotações, comecei a entender a relevância desta obra. Dar a perspectiva dos matadores a torna única. Em Ruanda, naquele período sanguinário, grande parte, talvez a maioria dos homens hutus saudáveis se tornaram assassinos. E o grupo de entrevistados eram amigos antes, durante e depois do massacre.

Depois, li o livro de Immaculée. A princípio, me pareceu que ele tinha um fundo proselitista, e imaginei que deveria ter sido bancado por alguma associação religiosa. A autora dá palestras até hoje, trabalha na ONU e está a frente de iniciativas e ong’s que auxiliam vítimas de guerra. Ou seja, pensei que, apesar da história impressionante, tudo seria um pano de fundo para falar sobre a fé, pela qual ela acredita ter sido escolhida e salva, em meio a centenas de milhares de mortos.

Não está de todo errado: o livro fala sobre fé sim, porque esta é indissociável de sua autora, e talvez de sua história. Mas ele vai muito além disso.

Destrinchando o genocídio

No dia 6 de abril de 1994, o presidente ruandês, Juvénal Habyarimana, voava em seu avião, pouco depois de ter engendrado alguns acordos com rebeldes tutsis. Mas o avião foi derrubado, matando o presidente e muitos outros do alto escalão.

O massacre iniciou neste mesmo dia, pelas forças fiéis ao presidente e pelas milícias por ele organizadas. Até aí, sem poder se imaginar o alcance que estas ações teriam, foi até meio previsível, como represálias, ante a animosidade que pairava no ar.

Mas como foi que, de repente, além das milícias e do exército, uma turba de lavradores apanharam seus facões, utilizados na roça para colheita de bananas e outros, e saíram por ali cortando, mutilando e matando seus vizinhos?

Houve um longo percurso.

No início do século XX, Ruanda era uma monarquia, na qual os tutsis governavam, com apoio dos belgas. Conta-se que foram os belgas que diferenciaram as duas etnias: mediam a largura dos narizes, e atribuíam a aqueles que tinham traços mais finos e eram mais esguios a descendência tutsi, enquanto os hutus tinham narizes mais largos e eram mais atarracados.

Estranho haver duas etnias num país que sempre compartilhou da mesma língua, crenças e antepassados.

Mas as diferenças se estabeleceram, bem como algumas particularidades – apesar destas serem difíceis de se provar, e que talvez sejam apenas circunstanciais, como o fato dos tutsis serem descritos como criadores de vacas, enquanto os hutus, essencialmente, agricultores.

De qualquer forma, em 1959, a realeza tutsi foi abolida, e a república instaurada numa revolução popular. Nesta ocasião, tutsis foram mortos em massacres, e milhares se exilaram. Em 1973, o então major hutu Juvénal Habyarimana subiu ao poder, com um golpe militar. As acusações contra os tutsis, que nunca cessaram, ganharam novo fôlego. Habyarimana instituiu cotas escolares obedecendo a proporcionalidade da população: 85% aos hutus, pouco menos de 15% aos tutsis e perto de 1% aos twas, etnia de pigmeus. E também houve confiscos de bens, proibição de casamentos “mistos”, e execuções mais ou menos esparsas.

Em 1990, tropas rebeldes tutsis, formadas a partir dos exílios forçados, entraram em guerra com o exército ruandês, a partir de bases ugandesas, ao norte do país.

Durante todo o período, a maioria hutu estigmatizava a figura do tutsi como um estorvo. Eram chamados de “baratas”, e tudo o que vinha deles era lamentado (e também invejado). Os comediantes, professores, políticos e outras figuras hutus influentes reforçavam o tempo todo um ódio que dormia subjacente em tudo o que faziam.

Estas mesmas figuras e outras lideranças já pensavam num genocídio antes da morte do presidente. Precisavam de machetes_rwanda_94um pretexto, e agora tinham (há inclusive a suspeita que os próprios hutus poderiam ter matado Habyarimana). Conta-se que foram investidos milhões de dólares, possivelmente oriundos de ajudas humanitárias, para importar fuzis, granadas, e principalmente, novos facões, que eram distribuídos aos hutus.

As rádios convocavam os homens hutus para largarem suas roças e se encontrarem com os interhamwes – milícias organizadas por Habyarimana, cujo nome significa “aqueles que atacam em conjunto” – que lhes orientariam, em companhia das tais lideranças e dos burgomestres (espécie de subprefeito), sobre as próximas ações. E eram alertados: levem seus facões.

Veja a transcrição de trecho do livro de Hatzfeld, com as palavras de um dos assassinos, Fulgence:

Dia 11 de abril, o conselheiro comunal de Kibungo mandou seus mensageiros convocarem todos os hutus lá no alto. Tinham chegado montes de interhamwe de caminhão e de ônibus. O conselheiro nos disse, a um de cada vez, que doravante não devíamos fazer mais nada a não ser matar os tutsis.

Os hútus, de modo geral, abraçaram a solução final proposta: exterminar todos os tutsis.

Uma multidão de matadores

Lavradores viraram assassinos, e mataram seus colegas, vizinhos e até parentes. Um hutu casado com uma tutsi poderia poupá-la se dedicasse especial empenho para matar os outros tutsis, começando pelos parentes por parte da mulher. Um tutsi casado com uma hutu estava além de qualquer chance de salvação.

Os tutsis, perdidos, abandonaram suas terras e posses, e muito correram até as igrejas, confiando que o solo sagrado seria respeitado.

Em apenas uma destas igrejas, mais de 5.000 foram mortos, e seus corpos, deixados ali, apodrecendo. Novo relato de um dos assassinos, Adalbert:

A primeira pessoa que matei com o facão, não me lembro dos detalhes exatos. Estava dando uma ajudazinha na igreja; ataquei com golpes largos, atingi de todos os lados(…)

***Interlúdio: se você já leu alguma resenha minha, sabe que tento dar ênfase para aquilo que me parece mais importante, com negritos, maiúsculas e repetições, para simular a forma que fazemos numa conversa, com a entonação da voz e com outros sinais de comunicação. Mas os depoimentos que selecionei para transcrever nesta resenha, dentre as dezenas que sublinhei na leitura do livro, devem ser lidos todos como destacados, de tão surreais que são. A carnificina descrita como uma atividade cotidiana entorpece os sentidos, e lemos coisas como o sujeito falar sobre “dar uma ajudinha na igreja” – auxiliar ao massacre de cerca de 5.000 pessoas, inclusive crianças, mulheres e idosos, muitos dos quais ele conhecia e tinha até amizade – como se fosse algo normal. Os relatos são quase todos assim.” Fim do interlúdio***

Nenhum lugar era respeitado ou seguro. Nos primeiros dias do genocídio, os interhamwe cercaram, além das igrejas, palco do assassinato de milhares, também a maternidade Sainte Marthe. Valérie, uma enfermeira hutu, conta que as milícias assassinas exigiram muito dinheiro para poupa-las; todas as enfermeiras, funcionárias e parturientes se reuniram e conseguiram junta-lo. Mas, no dia seguinte, a mesma exigência: uma vez mais, extraindo tudo o que tinham, conseguiram. Ou seja, elas adiaram o massacre por dois dias. No terceiro dia, ela conta:

Matavam as mulheres (tutsis) com facão ou porrete. Quando a mãe escondia debaixo de si o filho, eles primeiro a levantavam, depois cortavam a criança, e a mãe por último. Os recém-nascidos, eles nem se davam o trabalho de cortar adequadamente. Atiravam-nos contra a parede para ganhar tempo, ou os jogavam longe, vivos, sobre montes de cadáveres.       

A estrutura do livro

Hatzfeld escreveu Uma temporada de facões sob os apelos dos leitores de seu 1º livro, com os relatos dos sobreviventes. Planejou entrevistar os matadores que estavam presos por suas atuações no massacre, e, pela tentativa e erro, descobriu a maneira de viabilizar os depoimentos: falou com um grupo de amigos que já se conheciam antes do episódio, e que mantinham laços de amizade na prisão, e mais importante, logo após filtrar os primeiros relatos de negação, mentira e fantasia por eles narrados, percebeu como deveria deixar que eles falassem:

A chave do enigma chega por acaso quando, sem me dar conta, passo às vezes do “você” a “os senhores”, não por polidez, mas porque quero falar no plural. Toda vez, como que por encanto, as respostas se tornam precisas e acabo compreendendo a relação de causa e efeito.
Por exemplo, à pergunta: “Você pode detalhar suas ocupações no início da manhã?”, eles respondem: “Eu me levantava e caminhava até o meu lote para cortar o sorgo e contar as cabras…”. Mas à pergunta: “Os senhores podem detalhar suas ocupações no início da manhã?”, eles respondem: “Nós levantávamos bem cedinho, na aurora, nos reuníamos por volta das nove horas no campo de futebol… depois descíamos aos pântanos e o revistávamos, com a ajuda dos facões…”.

Desta forma, durante um longo período, selecionando um grupo coeso de presos que se dispunham a falar, após um primeiro momento de resistência, e com o apoio da direção da cadeia, além de levar notícias dos familiares e presentes e mantimentos, parecidos com os bondes que as mães de prisioneiros brasileiros levam a seus filhos, o autor conseguiu os depoimentos, que reuniu sobre temas, que intitulam os capítulos.

Assim, os dez depoentes – Fulgence, Pancrace, Élie, Adalbert, Jean-Baptiste, Ignace, Pio, Alphonse, Joseph-Désiré e Léopord – além de algumas mulheres, alguns sobreviventes e outras figuras, vão alternando seus testemunhos, para falarem sobre “A organização”, “A primeira vez (primeiro assassinato que se recordam)”, “O aprendizado (no ofício de retalhar pessoas)”, “As pilhagens”, “E Deus em tudo isso?”, dentre muitos outros.

A solução final

Após as primeiras chacinas, todos os representantes ocidentais se retiraram. Dez soldados belgas foram mortos no início, e a ONU e outras organizações praticamente evacuaram o país, retirando as pessoas brancas que puderam. Os EUA sequer reconheceram o genocídio que estava em curso. Os assassinos contaram que temiam, num primeiro momento, a represália dos muzungus, que etimologicamente, significa “aquele que tomou o lugar” – o homem branco, com seus armamentos terríveis. Ao perceberem que nada foi feito para salvar os tutsis, sentiram-se respaldados, e dedicaram-se à tarefa de erradicá-los com mais afinco e método.

Começavam as matanças pela manhã; quando os sobreviventes fugiam e se escondiam nos pântanos e florestas, a tarefa era caçá-los e exterminá-los ali. Segundo Ignace, “Nos pântanos, bastava vasculhar e matar, até o apito final.”

Recrutando a maioria dos homens hutus, bombardeados pelo ódio que as autoridades sempre demonstraram contra os tutsis, e por isso, bastantes suscetíveis à “lavagem cerebral” de que o extermínio era uma boa solução, a tarefa de dizimar os tutsis foi alcançando grande eficácia (estima-se que sobreviveram apenas um de cada seis ao massacre):

Pancrace: “Muitas pessoas não sabiam matar, mas isso não era um inconveniente, pois havia os interhamwe para ajudá-las nos primeiros passos”.

Léopord: “Só peguei mesmo foi o facão. Em primeiro lugar, porque possuía um em casa, e em segundo lugar, porque sabia usá-lo. Para quem é jeitoso em utilizar uma ferramenta, é fácil utiliza-la em todas as atividades; talhar nas plantações ou matar nos pântanos”.

Por aproximadamente cem dias, foi tudo o que fizeram – Alphonse: “Durante as matanças, não soubemos de nenhum casamento, nenhum batismo, nenhum jogo de futebol, nenhum ofício religioso”.

E o mais espantoso é que o principal arrependimento não é o das torturas e centenas de mortes, mas sim o de não terem conseguido levar a cabo a intenção de erradicar os tutsis. Eles acusam-se mais de negligência do que de maldade.

Dizem de si mesmos que ficaram gananciosos, relapsos. Brigavam entre si pelas terras e bens de tutsis que nem tinham acabado de serem mortos ainda. Bebiam cerveja e vinho de banana, e levavam as pilhagens para casa, como bens e até fotos de casamento dos assassinados; as preciosas folhas de zinco, com as quais se fazem os telhados; comiam as vacas dos tutsis e não queriam largar aquela “colheita”, muito mais fácil que o trabalho na lavoura – “Um trabalho menos cansativo do que plantar”.

Fim e exílio

A FPR – Frente Patriótica de Ruanda, de obediência tutsi, finalmente tomou o país, em 4 de julho de 1994, sob as ordens de Paul Kagame, que depois, se tornaria presidente. O resultado foi o exílio voluntário e ordenado de 1,5 milhão de hutus, com medo de represálias.

Alguns matadores foram presos, e, exceto se tinham posição de comando, cumpriram suas penas e foram soltos. Tentam até hoje se reintegrar, com dificuldade proporcional ao número de sobreviventes tutsis e hutus moderados (muitos dos quais também foram chacinados) tenha no lugar ao qual se dirigiram.

Alguns supostos fomentadores do genocídio, como Joséph-Desiré Bitero, entrevistado no livro, foram condenados à morte, e aguardam o cumprimento da sentença ou apelações.

Mesmo nos dias de hoje, se fala sobre o medo de um novo genocídio, talvez agora dos tutsis contra os hutus.

O painel que o livro traça, o absurdo das narrativas dos assassinos, e o caráter histórico do episódio e a proposta inovadora e singular, tornam a obra ímpar.

capa sobrevivi para contarParte II – A fé imaculada

Depois de todo o desgaste que foi ler e reler aquele livro e suas terríveis narrativas reais, li o Sobrevivi para contar, imaginado uma narrativa mais leve, porque contada por uma sobrevivente, alguém que escapou do genocídio, e também com um tom diferente, porque mais pontual que uma entrevista metódica com dez assassinos cuidadosamente selecionados.

Ante minhas predileções por relatos múltiplos, que dão mais de uma perspectiva, e também por uma dificuldade em se encarar a fé como pressupõe a autora – como algo que salva alguém dentre milhares – imaginei que este livro seria só um adendo. Em outras palavras, eu mais pareço com Hatzfeld, que planejou, trabalhou e levou a cabo um projeto para responder uma dúvida, do que com Immaculée, que encontrou forças para sobreviver de maneira inacreditável.

E, principalmente, tenho (tinha?) reservas quanto à fé como instrumento de salvação numa situação daquelas, porque imagino as 800.000 mil vítimas e suas preces fervorosas que não foram ouvidas. Aliás, há um trecho no livro de Hatzfeld que os assassinos relatam que, em determinado momento, encontraram alguns tutsis, que logo seriam retalhados, e que eles aguardavam rezando, e eram zombados por isso. Quero voltar a este ponto, um pouco mais adiante.

Continuando, Immaculée conta sua história: sua família unida, seus pais que eram lideranças tutsis (justamente a categoria mais visada quando começaram as matanças), o amor que sentiam uns pelos outros e a felicidade com a qual viviam, achando que Ruanda era o paraíso na terra.

A casa deles, modesta para padrões ocidentais, era enorme para os padrões ruandeses. Ficava num penhasco à beira do lago Kivu, que faz fronteira com o Congo, no oeste de Ruanda.

Eram em seis: O pai, Leonard, a mãe, Marie Rose (ambos professores), e quatro filhos: Aimable, Damascene, Immaculée e Vianney – 3 homens e ela.

Nos primeiros capítulos, ela conta um pouco de sua infância, projetos, estudos, e a relação harmônica com sua família, principalmente com Damascene, o irmão com quem tem mais afinidade.

A educação dada pelos pais não mencionava as segregações e cismas que havia entre hutus e tutsis, e eles tinham amizade com todos.

Hesitação fatal

Habyarimana morreu, e Leonard tentou tranquilizar a família – massacres aconteceram antes, mas as pessoas logo recobraram o juízo, e tudo ficou bem, ele pensava. Quanto à possibilidade de atravessarem o lago Kivu e ir se abrigar no Congo, até a bagunça passar, não achou necessário, nem quis largar a casa para ser pilhada pelos revoltosos.

Pela sua posição de destaque, logo havia milhares de tutsis desabrigados em frente à sua casa, em busca de orientação sobre o que fazer. Leonard foi falar com o burgomestre, Kabayi, e lhe pediu proteção – o mesmo homem que o invejava e o colocara na prisão um tempo antes, sem justificativa plausível. Um homem que era uma liderança hutu.

Enquanto isso, os massacres já aconteciam em larga escala, porque havia muitos tutsis. Os interhamwe usavam fuzis e granadas, e a tropa de ex-lavradores hutus com seus facões começavam a pegar o jeito de como matar.

Ter a vida nas mãos de outros

Immaculée, fugida, chegou à casa de um pastor amigo de seu pai, Murinzi, hutu. Ao contrário da maioria, ele aceitou ajudá-la. Em dado momento, ela, junto com outras cinco tutsis, são empurradas para um pequeno banheiro, de “aproximadamente 1,20 metro por 1,00 metro”, com uma pequena janela acima, parcialmente tampada.

Elas deviam ficar em absoluto silêncio; se por acaso precisassem utilizar o vaso sanitário, deviam atentar para quando o banheiro contíguo, que partilhava o mesmo encanamento, estivesse sendo utilizado também, e dar a descarga EXATAMENTE no mesmo momento em que a pessoa do outro banheiro desse.

A alimentação seria a base das sobras; se Murinzi comprasse mais mantimentos, reparariam; se ele cozinhasse para elas, também; e ninguém na casa dele sabia do seu gesto, que arriscava seu próprio pescoço: hutus moderados que protegiam tutsis eram igualmente retalhados.

Antes de entrar no banheiro, Immaculée pediu para Murinzi que seu irmão mais novo, Vianney, junto com um amigo, fossem escondidos também, mas ele não concordou, e ela teve que se despedir dele.

Pouco depois, alguém disse que viu tutsis entrando na casa do pastor, e assassinos alucinados começaram a revistar a casa. Immaculée narra:

Ouvi quando os assassinos chamaram meu nome.
Estavam do outro lado da parede, menos de 2,5cm de gesso e madeira nos separavam. Suas vozes eram frias, duras e decididas.
– Ela está aqui… Encontrem Immaculée.
Eram muitas as vozes, muitos os assassinos. Eu podia vê-los com os olhos da minha mente: meus antigos vizinhos e amigos, que sempre me haviam recebido com amor e bondade, andavam pela casa, munidos de lanças e facões, e chamavam meu nome.
– Já matei 399 baratas – disse um deles. – Com Immaculée, serão quatrocentas. Esse é um bom número para se matar. 

No esconderijo

O pequeno banheiro era bem disfarçado no quarto. Immaculée lembrou-se de ter estado ali antes e não ter reparado na porta. Mas os revoltosos procuravam por ela – a moça bonita com a qual eles se divertiriam muito.

Ela contou que uma inspiração divina pediu que disfarçasse a porta do banheiro com o pequeno armário que havia no quarto de Murinzi. Ele tentou resistir ao pedido, mas Immaculée suplicou, descontrolada, e ele concordou, com medo do escândalo revelá-las.

Os revoltosos voltaram muitas vezes na casa de Murinzi. Seus empregados e até um de seus filhos menores, simpatizante da causa dos hutus, eram ameaças constantes.

Um pouco mais adiante, outras duas mulheres são levadas ao banheiro minúsculo. Elas eram oito agora, no espaço que já não dava para seis. Estavam severamente desnutridas, com piolhos e escaras.

Elas passaram 91 dias ali.

Da frigideira para o fogo?

Há um burburinho sobre as tropas de Paul Kagame estarem tomando o controle do país, mas começaram pelo lado Norte, na fronteira com Uganda, e demorou muito para Murinzi achar que podia fazer alguma coisa.

E o que ele achou que podia fazer não era exatamente um alívio para as oito sobreviventes: elas tinham que sair, na calada na noite, e ir para o acampamento estrangeiro para sobreviventes tutsis, guarnecido por soldados franceses. Immaculée, que entrou no banheiro pesando 52 kg, tinha agora 29 kg, e mal podia andar.

Como ela sairia à noite, passaria por estradas infestadas de interhamwes (e com milhares e milhares de corpos) e chegaria sã e salva no acampamento? Para que sobreviver por 91 dias de absoluta penúria se ela poderia ser pega agora?

Mas ela sobreviveu para contar sua impressionante história.

Parte III – O Bem e o Mal no berço da humanidadesebastiao_salgado01

Terminei a parte da resenha que fala sobre a obra praticamente da mesma forma que minha outra resenha, que fala sobre Ishmael Beah e sua história como menino–soldado na Serra Leoa, no magnífico Muito longe de casa. Immaculée Ilibagiza agora se soma a ele, no rol dos livros extraordinários que eu li, que contam histórias decisivas para se entender os extremos do Bem e do Mal, e onde nós, como pessoas medianas, nos inserimos entre eles, e quais situações podem mudar este arranjo.

Qual equação há em comum entre estes relatos? Por que as pessoas se tornam demônios? Como raríssimas pessoas conseguiram se redimir de experiências assim?

Evidentemente, é um questionamento muito sério e amplo para um leigo como eu abordar. Mas posso tecer algumas considerações.

O problema do Mal

O que é o mal para você? É algo personificado, ou é mais difuso? Como ele age sobre os homens? Se é certo que todos podemos ser vítimas, quem são, ou podem vir a ser, os agentes, os perpetradores do mal?

calvin e haroldo demonios recortadoNão sei em que você acredita. Talvez ache que haja o mal por natureza. É provável. Há relatos de crianças assassinas e criminosas. Há diversos homens e mulheres realmente maus, que se deleitam com o sofrimento dos outros, ou que são de tal modo egoístas que pensam apenas em si mesmos, sem se importar com ninguém. Psicopatas.

De qualquer maneira, respostas prontas que carregamos desde sempre nos acostumaram a sequer falar muito sobre isso (até para “não atrair”, dizem alguns mais supersticiosos). Muitas pessoas acreditam na personificação do mal, em alguma figura do tipo diabo, ou satã. Para elas, a proteção vem de Deus e da fé que se tenha.

Este assunto é bem complicado. Parece que cada teoria tem um fundo de verdade, o que torna tudo muito confuso, já que algumas teorias incluem pressupostos extravagantes e anacrônicos. O mal personificado, por exemplo, inclui se pensar numa espécie de jogo de tabuleiro entre o diabo e Deus, sendo que os peões somos nós. Alguns são ganhos por um dos lados, enquanto outros são perdidos.

Piora ainda mais, porque a noção de um Deus de Perfeição, Onipotência e Onisciência se choca com a existência do mal entre os homens (ainda que personificado num antagonista). Esta cisma é tão importante que existe uma corrente de pensamento, sistematizada por Leibniz, para conciliar a existência do mal com a do Deus perfeito – a Teodiceia.

Mas o que realmente bagunça a noção do mal é saber que ele pode surgir de maneira avassaladora sem explicação condizente. Quando acomete só um indivíduo, ainda se procuram explicações e diagnósticos, como o da psicopatia, esquizofrenia ou outras doenças mentais, aliadas, geralmente, a infâncias péssimas e a muitos traumas. Mas como explicar o mal absoluto que acomete uma legião de pessoas?

Raízes do mal

Já citei em outros artigos alguns experimentos de psicologia que lançam alguma luz sobre como o mal se manifesta. Basicamente, qualquer pessoa comum pode se tornar um agente e fazer coisas que parecia impossível que fizesse. Stanley Milgram fez seu clássico experimento para mostrar que as pessoas agem conforme as ordens que recebem. Somos ávidos por figuras de autoridade.

Recordando, o experimento de Milgram consistia em fazer com que voluntários acreditassem que estavam dando choques numa pessoa, que era ator e que simulava dor ao recebê-los. Uma vez encorajados pela figura de autoridade, dois de cada três voluntários aplicaram o suposto choque máximo, cujas últimas escalas no aparelho que os simulava eram sinalizadas com “perigo: choque grave” e “xxx”. Este experimento tornou-se uma chave para entender a obediência em situações extremas, que vão se “normalizando” conforme o tempo passe.

Assim, eram ordens dadas a alemães que torturassem e matassem judeus e outros, e o massacre dos tutsis também. E ambos viraram rotina. Milgram concluiu: “Pessoas comuns, que estão apenas fazendo seu trabalho e não apresentam qualquer tipo de hostilidade, podem tornar-se agentes de um processo terrível e destrutivo”.

Outra influência é a do meio: Philip Zimbardo fez outra experiência clássica, onde ele simulou uma prisão, com prisioneiros e guardas sorteados dentre 24 universitários americanos que foram voluntários. A simulação saiu de controle e teve que ser encerrada em seis dias, muito antes do previsto, porque não só o próprio Zimbardo estava afetado, como os “guardas” praticaram excessos que levaram alguns prisioneiros ao colapso.

Daí, Zimbardo concluiu: “Nosso estudo revela o poder das forças sociais e institucionais para fazer homens bons praticarem atos cruéis”.

Outra pesquisa foi conduzida por Solomon Asch – dividiu voluntários em grupos, dentro dos quais alguns infiltrados sabiam qual era o real propósito: testar a capacidade de indução do grupo, que daria respostas propositalmente erradas numa série de testes, para ver se os voluntários que não sabiam do arranjo acompanhariam a decisão claramente errada do grupo ou não.

O resultado surpreendeu: quando rodeados por um grupo de pessoas que fornecia a mesma resposta errada, os participantes erravam a resposta em praticamente um terço (32%) das questões, e 75% deles responderam errado pelo menos uma questão. No estudo piloto, sem a pressão de ter que ceder a um grupo equivocado, foram cometidos apenas 3 erros em 720 testes. Isso comprovou que a tendência à conformidade pode ser mais forte do que os valores ou percepções básicos das pessoas.

Por fim, a última experiência pertinente que gostaria de abordar: Kenneth Clark queria entender quem ensina a criança a odiar e a temer um membro de outra raça. Para isso, fez o experimento da “boneca de Clark”: com crianças de três a sete anos, utilizou quatro bonecas, todas idênticas, exceto pela cor, que variava do branco ao marrom escuro. As crianças demonstraram uma consciência inegável de raça, ao identificar corretamente as bonecas pelas tonalidades de pele, além de apontar aquelas que mais pareciam com elas próprias.

Mas o mais surpreendente foi que as crianças demonstraram, na época do experimento (final da década de 30), que tinham clara preferência pelas bonecas brancas, e rejeitaram as negras, o que foi interpretado como autorrejeição.

Concluíram que bem cedo os valores da sociedade se impõem, e as crianças, obrigadas a se identificar com determinado grupo, internalizam os pensamentos segregativos. Embora seja bastante raro um pai ensinar deliberadamente aos filhos a odiar outros grupos raciais, muitos repassam e reproduzem as atitudes sociais predominantes.

Isso é bem importante para esta análise: em Ruanda, os pensamentos segregativos eram deliberadamente ensinados e encorajados.

Ensinando as crianças

Immaculée conta sobre um professor, Buhoro (que depois, ela revela como um dos mais prolíficos e cruéis assassinos), que a humilhou durante uma chamada étnica. Ele mandou “de pé, todos os tutsis”, e uns poucos levantaram; “de pé, os hútus”, e a maioria levantou. Como não sabia a que etnia pertencia, nem o que era ou qual a importância disso, Immaculée, com seus dez anos, permaneceu sentada, e foi expulsa da sala.

Desde sempre as crianças ruandesas conviviam (e convivem) com os preconceitos e cismas de seus ascendentes. A melhor amiga de Immaculée, desde crianças, uma hútu, a largou assim que começaram os massacres, e a teria denunciado se soubesse onde estava.

Outro testemunho a respeito da educação das crianças vem do livro de Hatzfeld, conforme conta Jean:

É um costume ruandês que os meninos imitem os pais e os irmãos mais velhos, pondo-se atrás deles para arremedá-los. É assim que aprendem a agricultura das sementes e dos cortes, desde pequeninos. Foi assim que a maioria começou a rondar atrás dos cães, para encontrar tutsis e denunciá-los. Foi assim que umas poucas crianças começaram a matar nos bosques dos arredores.

Por fim, narra Clémentine, uma mulher:

Vi papais ensinando os filhos a cortar. Mandavam-nos imitar os gestos do facão. Mostravam sua habilidade em pessoas mortas, ou em pessoas vivas que tinham capturado durante o dia. No mais das vezes, os meninos treinavam em crianças, por causa dos tamanhos correspondentes. Mas a maioria não queria meter as crianças nesta porcaria sangrenta, a não ser para olhar, é claro.

Tarefas impossíveis     

Entender um genocídio é impossível. Fulgence diz: “É muito difícil nos julgar, pois o que fizemos ultrapassa a imaginação humana”. O que tentei, com a leitura dos livros e a produção deste artigo, foi contextualizar, um pouco que fosse, o ocorrido em Ruanda. Enumerar as pesquisas dos psicólogos teve este mesmo intuito: explicar, um pouco que seja, o que leva homens a se transformarem no mesmo tipo de demônios que sua fé faz com que temam.

Também é impossível entender a odisséia de Immaculée. Sua fé está além da compreensão, e hoje, quem a conhece, diz que sua presença é magnética. Arrisco alguns palpites do porque ela se demonstrou inquebrantável: porque queria contar sua história; porque queria homenagear seus mortos queridos; porque se apegou à vida com uma tenacidade incomum.

Nesta mesma linha, sou capaz de aventar uma possibilidade de entendimento a aqueles que pareceram “desistir” de suas vidas. Judeus e outros prisioneiros presos nos campos de extermínio, tutsis caçados como bichos, perderam a esperança na humanidade. Desiludiram-se. Como se se dessem conta que viver num mundo onde fossem permitidos e até encorajados absurdos da ordem dos que os vitimaram, não era um bom mundo para se viver, de qualquer forma.

Para os tutsis, em sua maioria pacíficos e convivendo normalmente com seus irmãos, parentes e amigos hútus, nada fazia sentido algum, a não ser por um ódio que não inventaram e muito menos justificaram. Léopord revela:

O fato de que esperassem a morte sem gritar às vezes nos tocava terrivelmente. De noite, ficávamos refletindo todos juntos, e repetíamos: por que estas pessoas que vão morrer não protestam, por que não clamam por misericórdia?

Hatzfeld dá sua opinião, como narrador do livro: “Os tutsis não pediam nada, porque não acreditavam mais nas palavras nestes momentos fatais. Era uma tristeza todo-poderosa que os levava. Sentiam-se abandonados por tudo, até mesmo pelo que seriam capazes de dizer”.

O papel da fé

Immaculée sobreviveu por uma conjuntura incrivelmente rara, que beira mesmo o milagre. Era possível que o banheiro – que tinha uma pequena janela para o pátio da casa do pastor – não fosse descoberto, apesar de altamente improvável. Era igualmente possível que ela conseguisse chegar ao acampamento francês – mas também absurdamente improvável.

Se alguém, lógico e racional como eu, um dia a encarasse e dissesse sobre as estatísticas e probabilidades, talvez ela sorrisse e concordasse. Se ela me falasse sobre fé e propósito, o que eu responderia?

Eu aqui, do outro lado do mundo, num país abençoado sob diversos critérios, posso escrever sobre estes acontecimentos, baseados num dos eventos mais tristes da história recente. Além de me ensinar sobre a condição precária do homem, sobre seu ódio, sobre como o mal dentro das pessoas torna o diabo um reles amador, o que mais posso aprender?

Posso me lembrar do que é ter fé.

A impossibilidade racional que eu encontro hoje para ter uma fé semelhante à de Immaculée é a perfeita noção de que ter fé não me torna especial. Milhares com muito mais fé do que eu, e temor a Deus, e vidas virtuosas, não têm a sorte que alguns ímpios têm. Por que isso é assim?

Não sei responder. Este mecanismo que balanceia os destinos escapa à nossa noção de justiça e de causalidade. Vira uma questão de fé acreditar na ginástica doutrinária criada para explicá-los, adaptados às nossas necessidades.

Mas pode ser que a miopia seja minha, e que a fé proteja, além dos efeitos medicinais comprovados.

Não tenho necessidade de ser categórico. Ao contrário, ao conhecer histórias como a de Immaculée, me dou conta da minha ignorância, e da precariedade do pensamento racional para explicar muitas coisas.

Acredito que a fé é algo inerente ao humano. Os códigos e panteões aos quais se dirigem esta fé mudam, talvez porque nós crescemos e nos aperfeiçoamos, como espécie. O que, infelizmente, não evita acontecimentos como o de Ruanda. Talvez o bem absoluto surja onde exista o mal da mesma espécie.

Só sei dizer que o simples fato de ter lido estes livros me carrega de maiores responsabilidades. De ser grato por uma vida ótima e nunca ter passado por nada parecido, de obrigação de me manter fiel a um código de conduta e de honra que não teme uma punição divina, de urgência de valorizar a vida, de necessidade de reflexão e de autoconhecimento.

No final das contas, os dois livros magníficos são essenciais. O de Hatzfeld é o testemunho da persistência do homem africa paradisiacaem tentar entender o incompreensível, para talvez estar preparado. E o de Immaculée ocupa um nicho todo especial, de livros que modificam a quem os leia, e que revelam os extremos ao que os homens podem chegar – e de como responder a quem lhe tirou quase tudo.

A África mágica, misteriosa e incompreendida, que muitos acreditam ter sido o berço da humanidade, continua nos ensinando, e pedindo um pouco mais de atenção.

Nota: Para saber mais, sugiro a leitura desta reportagem, que conta como estava Ruanda há pouco mais de três anos.

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