Por Alberto Nannini
Uma crítica certeira o descreve como “Família Soprano indígena”. Trata-se de Escalpo (Scalped), série em quadrinhos de Jason Aaron e R.M. Guéra, publicada pelo selo Vertigo de quadrinhos adultos.
O enredo é o seguinte: houve um crime na reserva Rosa da Pradaria, na década de 70. Um índio, Lawrence Beaucourt, cumpre prisão perpétua, mas o grande chefe do grupo, Lincoln Corvo Vermelho, acusado de chefiar a Sociedade de Soldados Cães – o grupo que assassinou dois agentes federais do FBI – está solto, e se tornou uma espécie de chefão do crime, que vai inaugurar, nos dias atuais, um cassino na reserva.
Pois o agente federal Nitz, que era apadrinhado pelos dois agentes mortos, não esqueceu sua vingança, e sabe que Lawrence nada mais é que um bode expiatório. Ele jurou pegar Corvo Vermelho, custe o que custar.
E vai traçando um plano: traz de volta Dashiel Cavalo Ruim, índio muito problemático e de passado atribulado, que havia se exilado da reserva, como agente do FBI. Por meio de chantagem, o infiltra na organização criminosa, para flagrar Corvo Vermelho num crime e poder levá-lo preso.
O detalhe é que Dashiel é filho de Gina Cavalo Ruim: ex-amante de Corvo Vermelho, e integrante da Sociedade dos Soldados Cães, além de ter estado, com certeza, presente na noite do assassinato dos dois agentes, junto com Corvo Vermelho, Lawrence e um outro índio, o Apanhador.
Agentes duplos ou até triplos, traição, vingança, sexo, drogas e muita, muita desesperança. Tudo isso misturado num caldo de suspense por vezes insuportável, onde são todos contra todos, e ninguém é confiável.
Parcialmente inspirado em fatos reais – de um índio sioux, Leonard Peltier, preso e condenado à prisão perpétua acusado de assassinato de dois agentes federais em 1978, e que seria inocente (leia mais sobre este caso aqui) – , repleta de referências variadas, que vão desde as literárias às históricas e fantasticamente escrito, Escalpo é literatura pura, e uma série de aulas: de como escrever, como desenhar, como criar personagens, como traçar seus perfis psicológicos, como encadear uma história no limite da tensão, como tratar a violência brutal como algo meramente coadjuvante… Enfim, como escrever uma série tida como uma das melhores de todos os tempos.
Os quadros desenhados e a colorização remetem à aridez do clima, e há uma série de mensagens subliminares por todo o cenário: pichações nas paredes, camisetas dos personagens, a própria linguagem chula, tudo é orquestrado para virar um retrato cru e hiper realista de como é uma reserva indígena no meio do nada, afrontada em seu orgulho e violentada em seus costumes.
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Foi publicada em 60 capítulos nos EUA, e aqui, sai pela Panini, mensalmente, na revista “Vertigo”, que está no número 38.
É narrada na forma de arcos, que vão se encadeando e formando uma história coesa. Por exemplo, logo após o primeiro arco, de três edições, saiu um novo arco com uma espécie de introdução de alguns dos personagens, onde se conta um pouco do passado e se revela algumas de suas motivações.
Cerveja de trigo
Na edição nº 9, somos apresentados ao Apanhador, índio já na casa dos 60 anos, integrante da Sociedade dos Soldados Cães e cúmplice esquecido do crime. Com ele, o autor aproveita para revelar vários costumes dos índios Oglala Lakotas, como orações, crenças, termos, entre outros. Apanhador tem um dom: ele enxerga os totens das pessoas, ou seja, o animal que “empresta” suas habilidades ao seu hospedeiro. Seu totem é uma coruja, animal sábio, que muito observa. O problema é que ele não consegue ficar longe de uma tentação… As cervejas de trigo.
Dá para entender: uma outra história diz que a reserva indígena tem uma população minúscula e o maior consumo de cerveja dos EUA, e um dos maiores consumos per capita no mundo, o que procede: em reservas como a retratada, uma em cada quatro crianças nasce com a Síndrome do Alcoolismo Fetal.
Mas temos que convir que cervejas de trigo são mesmo uma enorme tentação. A cervejaria mais antiga do mundo, a Weihenstephaner, desde 1040 produz estas “perdições”. Sua cerveja Vitus, uma weizenbock, ganhou diversos prêmios, inclusive o de “Melhor Cerveja do Mundo”, no WBA – World Beer Awards, em 2011.
Afinal, é para se pensar: tomar uma ou duas cervejas de trigo, como eu faço para curtir, é uma escolha consciente. Tomar várias, até se entorpecer, adoecer e morrer, também é? Talvez a pergunta esteja mal formulada, e os conceitos precisem ser mais bem definidos. Mas “escolha” não tem o mesmo sentido no meu caso e no caso de índios abaixo da linha da miséria, muitas vezes mantidos apenas pelos programas assistenciais. E o prazer de ser tomar uma weiss, que eu tenho, não é o mesmo que eles buscam – e muito menos o que eles obtém. Veja este estudo.
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De volta à história
De qualquer forma, esta história magnífica nos permite desfrutar de uma trama cheia de suspense, violência, sexo, dor e humanidade, do conforto de nossas casas, talvez até bebendo uma cerveja de trigo – coincidentemente, minha predileta. Recomendo a experiência!
E assim, podemos, de uma feita só, se deleitar com a genialidade da dupla Aaron/Guéra, contando a melhor história em quadrinhos dos últimos tempos, enquanto nos interamos também da denúncia de toda a miséria dos estados mais pobres e da população mais desgraçada do poderoso Estados Unidos da América. Estas infelizes vítimas são justamente os habitantes originais: desalojados, humilhados, explorados e “civilizados”, a ponto de se perderem em tudo de ruim que este processo traz, e usufruírem quase nada de bom, em contrapartida.
Para refletir sobre esta condição, ou somente para curtir uma história magnificamente escrita – tomando ou não uma cerveja enquanto isso – procure Escalpo Se não curte muito histórias em quadrinhos, experimente começar com esta. Se já gostar, o que está esperando?
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