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Posts Tagged ‘Monteiro Lobato’

Por Igor Antunes Penteado

SuassunaPoucas semanas foram tão trágicas para a história da literatura quanto a que passou. Em um espaço de cinco dias, perdemos três de nossos maiores escritores: João Ubaldo Ribeiro, no dia 18, Rubem Alves, no dia 19, e Ariano Suassuna, no dia 23. Mortes que não deixarão apenas um vazio imensurável para a cultura nacional, mas, sobretudo, que projetam lenta e definitivamente o fim de uma estirpe de escritores que praticamente não temos produzido mais.

Entretanto, a discussão que quero propor aqui é outra. Ariano Suassuna, ao longo de sua vida, foi bastante marcado por uma relação estreita com a política e, em muitas oportunidades, esteve envolvido em campanhas e mandatos. Ultimamente, vinha atuando de forma que divergia do meu posicionamento, o que me levou a um questionamento: até que ponto devemos deixar os fatos da vida privada de uma pessoa influenciarem em nosso julgamento sobre a obra produzida por ela?

Embora apresentasse em várias de suas produções críticas mordazes ao coronelismo, Suassuna manteve por anos uma proximidade indigesta –para mim – com várias figuras protagonistas deste papel, infelizmente ainda tão comum e tradicional na política nordestina e nos interiores mais profundos do Brasil. A contribuição do escritor para a nossa cultura – inclusive além dos livros propriamente ditos – é, sem dúvida, inestimável, mas sua postura em diversas ocasiões sempre me foi “estranha”. E é tão difícil colocar em cheque uma figura por quem se tem tanta admiração.

Voltando à pergunta, até que ponto uma discordância pessoal deve influenciar na avaliação sobre a obra de alguém? Parece-me que, quando a questão se refere a uma conduta moral ou a uma divergência de pensamento, o mais sensato é mesmo tentar separar as coisas. Monteiro Lobato era racista – como quase todos em sua época –, mas seria bizarro ignorar toda a sua contribuição positiva em tantas outras frentes. Nelson Rodrigues, autor daquele que elegi como meu livro favorito, era um tremendo machista e reacionário, mas genial escritor e cronista, entre outros campos em que atuou.

Como esses, vários outros exemplos me vêm à cabeça. Meu poeta favorito, Vinicius de Moraes, certa vez disse que “Existem umas feias potáveis. Mas a maioria só serve mesmo para fazer sabão”. Eu deveria ignorar todo o resto do que tanto gosto em nome desta tosquice? As bobagens antissemitas do Mel Gibson desabonam seu maravilhoso Coração Valente? O pensamento retrógrado em relação às mulheres diminui o brilhante desenvolvedor do jiu-jitsu (arte que tanto admiro) que foi Hélio Gracie? Não devo nunca mais prestigiar uma peça com Marília Pêra ou Claudia Raia pelo apoio das duas atrizes à candidatura do Collor em 1989? Acho que não.

Se no campo das ideologias as coisas já são confusas, é de se imaginar que quando a conduta destoante, na verdade, é um crime, o cenário é ainda pior. Messi, quatro vezes consecutivas eleito como o melhor jogador do mundo e investigado por suspeitas de uma faraônica fraude fiscal, deve ter seu futebol menos visto e elogiado por mim? Considerado um dos maiores boxeadores de todos os tempos, Mike Tyson não bateu só nos adversários, mas espancou uma mulher. Não é possível mais admirar sua velocidade e precisão dentro dos ringues? Outros candidatos ao ostracismo por violência doméstica: James Brown, preso repetidas vezes em seus últimos anos de vida e, claro, Netinho de Paula. O ex-negritude deve cumprir para sempre essa pena “moral” mesmo tendo apresentado, após eleito vereador, vários projetos em favor das mulheres?

Mas, nesse quesito, nenhum caso é mais emblemático que o de Sean Penn. Quando ganhou o Oscar por Milk, em 2008, o ator comoveu muita gente com seu discurso pró-direitos gays. O que a maioria não lembrou é o fato de que, duas décadas antes, Sean também bateu em sua mulher, Madonna, e fazia o melhor estilo “bad-boy” canastrão e homofóbico. Qual o tamanho da pena que Sean deveria cumprir para que eu pudesse admirar seu trabalho sem peso na consciência?

E, para piorar, assim como os conflitos e julgamentos internos, os crimes também pioram. Roman Polanski, Oscar de melhor diretor por O pianista (2002), estuprou uma menina de 13 anos há quase quatro décadas, e aí? E Woody Allen, outro diretor envolvido em um escândalo sexual com uma criança, como fica? O diretor de Match point, acusado de ter molestado sexualmente sua enteada, Dylan Farrow, quando ela tinha seis anos, deveria dizer “bye bye” à minha admiração por sua obra até os dias de hoje?

Essas questões ainda me são bastante perturbadoras, mas o fato é que seres humanos cometem, sim, erros. Muitos deles. E esperar que as obras dessas pessoas paguem por isso é mais um destes erros. Descanse em paz, Ariano. Sua obra é valiosamente eterna.

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Por Rodrigo Casarin

primeira guerraSarajevo, 1914. Balas mortais atingem o arquiduque austríaco Francisco Ferdinando e a duquesa Sofia. Quem as dispara é Gavrilo Princip, um sérvio integrante da Mão Negra, organização que quer todos os territórios eslavos independentes do império austro-húngaro. Para alcançar o objetivo, usam a violência como principal arma. O assassinato do casal é somente mais um ato. Gavrilo não imaginava o que aqueles disparos ocasionariam.

A Europa vivia um momento delicado. As nações imperialistas tentavam a todo custo aumentar seus territórios. Disputavam espaços na África e, para se fortalecer, investiam muito dinheiro em armamentos. Com animosidade entre os impérios, o sentimento de nacionalismo se exacerbava em uma época cujas feridas causadas por conflitos no século XIX ainda incomodavam.

Após o assassinato, os austro-húngaros acusam a Sérvia de financiar a Mão Negra e logo declaram guerra ao país. É a desculpa que todos precisavam. Como garotos esperando qualquer olhar torto para iniciar uma confusão, as nações europeias vão à briga. A Rússia em defesa dos sérvios; a Alemanha, contra a França e depois contra a Rússia; a Grã Bretanha, contra a Alemanha, em defesa da Bélgica; a Itália um tanto perdida, sem saber ao certo em quem bater. Logo os Estados Unidos chegariam para dar uma força aos amigos bretões e franceses.

A briga seria superlativa. Duraria até 1918, envolveria países de todos os continentes, deixaria mais de quinze milhões de mortos e seria conhecida como a Primeira Guerra Mundial, ou A Grande Guerra.

2014 marca os cem anos do início do conflito e o mercado editorial prepara novidades sobre o assunto. A Rocco lançará Adeus à Europa, de Olivier Campagnon, um estudo que mostra o impacto da batalha nos países latino-americanos, principalmente no Brasil e na Argentina. Segundo Campagnon, a mudança na imagem europeia, outrora exemplo de civilização, levanta questões identitárias que levam a uma reformulação do nacionalismo na América Latina.

Pela Companhia das Letras, chegará às prateleiras The Sllepwalkers (ainda sem título em português), de Christopher Clark, que trata das razões que motivaram a luta armada, e The beauty and the sorrow (outro ainda sem nome em nossa língua), de Peter England, um retrato das pessoas comuns durante o combate. A Alfaguara também trará uma novidade: O bom soldado Svejk, de Jaroslav Hasek, uma comédia que flerta com o absurdo, previsto já para o primeiro semestre.

A literatura da Primeira Guerra

As editoras se aproveitam da efeméride. Contudo, ao longo desses cem anos, diversos livros já abordaram A Grande Guerra. Os dois mais comumente associados ao evento são os romances Nada de Novo no Front, de Erich Maria Remarque, e Adeus às armas, de Ernest Hemingway.

Erich Maria Remarque é o pseudônimo de Erich Paul Remark, alemão que esteve no campo de batalha. Nada de novo no front, de 1929, é protagonizado por Paul Bäumer, que se alista ao exército germânico e vai combater no oeste europeu, onde se dá conta do que é realmente a guerra: um bando de homens matando outros homens por causa de homens que jamais viram na vida. A matança é intercalada por momentos de monotonia e fome – a dificuldade em encontrar comida às vezes é grande. Quando Paul volta à cidade, surpreende-se com as pessoas que acompanham tudo de suas casas, loucas por uma triunfal vitória, bastante diferente dos soldados da linha de frente, que só querem permanecer vivos.

Hemingway também esteve no front. Recusado pelo exército de seu país, os Estados Unidos, arrumou uma vaga na Cruz Vermelha. Foi enviado à Itália, onde dirigiu ambulâncias até estilhaços de uma bomba lhe atingirem na perna, obrigando-o a retornar para casa. Da experiência nasceu Adeus às armas, que, se lançado hoje, com certeza fomentaria ainda mais a discussão sobre as metaficções. A obra, lançada no mesmo ano de Nada de novo no front, narra a história de Frederic Henry, estadunidense que vai à guerra ser piloto de ambulância e é ferido na perna, veja só. Assim como Hemingway, Frederic se apaixona em meio à barbárie. É sobre a relação do personagem com sua amada que o enredo desenrola até seu final publicado – apenas um dos 47 finais elaborados pelo escritor.

Se o cenário dessas duas obras é Primeira Guerra Mundial, em outras ela aparece de forma velada, com influência sobre o ambiente que os personagens vivem – é o caso de O grande Gatsby, clássico do estadunidense Scott Fitzgerald, lançado em 1925 e que mostra a prosperidade e o deslumbramento da elite de seu país nos anos que sucederam o conflito –, ou explicitamente, mas de maneira pontual – como em O tempo redescoberto, último volume da Em busca do tempo perdido, do francês Marcel Proust, do qual se destaca a cena do protagonista passeando por uma Paris em meio a bombardeios.

No Brasil, um dos personagens mais marcantes de nossa literatura nasceu inspirado pelo combate. Jeca Tatu, uma espécie de arquétipo caipira, apareceu primeiro em um artigo para o jornal O Estado de São Paulo em 1914, mas foi eternizado no conto “Urupês”, do livro Cidades mortas, de 1919. Quando criou o personagem, Monteiro Lobato estava revoltado com brasileiros que se preocupavam mais com a condição da Europa do que com o interior do seu próprio país.

Em Cidades mortas ainda há o conto “O espião alemão”, no qual Lobato ridiculariza quem pensava que o Brasil poderia ser alvo de exércitos estrangeiros, enquanto uma verdadeira batalha acontecia em seus rincões: a luta pela sobrevivência.

É evidente que a lista de prosas ficcionais que tratam do assunto não se esgota nesses títulos. Contudo, como se trata de um acontecimento histórico, é importante destacarmos os livros de não ficção que abordam a Grande Guerra. Com o nome nada original de A Primeira Guerra Mundial, temos obras assinadas por Michael Howard, Lawrence Sondhaus e H.P. Willmott, que trazem uma visão panorâmica do conflito. Focado no início do embate, enquanto estavam sendo decididos os rumos que influenciariam o mundo, há Canhões de agosto, de Barbara Tuchman, que alia informações históricas à narrativa literária em um trabalho que valeu o Prêmio Pulitzer de 1963 à autora.

Infelizmente, uma outra obra histórica construída em forma de narrativa ainda não foi publicada no Brasil. Trata-se de Der Kleine Frieden im Grossen Krieg (algo como Um pouco de paz na Grande Guerra), de Michael Jürgs, que refaz a trégua de quase uma semana entre soldados inimigos para celebrar o natal, enterrar seus mortos, jogar bola e até mesmo trocar alguns presentes. Fosse ficção, provavelmente soaria piegas.

Já com uma abordagem diferente, que dá luz às pessoas comuns, que vivenciaram e sofreram o período, há os relatos contidos em Vozes esquecidas da Primeira Guerra Mundial, trabalho de Max Arthur em parceria com o Museu Imperial de Guerra britânico.

A literatura na Primeira Guerra

Apesar dos exércitos, invasões, balas e mortes, novidades literárias continuavam aparecendo durante a Grande Guerra. E com um detalhe importante: o conflito, de certa forma, influenciou a que, para muitos, é a santíssima trindade literária do século XX: Franz Kafka, Marcel Proust e James Joyce, que, após uma busca de década por quem o editasse, lançou o livro de contos Dublinenses, uma de suas obras mais importantes, poucos dias antes de soarem os primeiros tiros. Nele, o escritor traça um retrato da vida dos habitantes de Dublin e apresenta sinais do estilo que radicalizaria em Ulysses. É de se imaginar que algumas pessoas deixassem os assuntos bélicos de lado e preferissem discutir as histórias do irlandês.

Outro título que deve ter sido posto em pauta entre uma opinião ou outra sobre o conflito é A metamorfose, um dos trabalhos mais representativos de Kafka, lançado em 1915. A saga do homem-inseto Samsa foi escrita após o início da Primeira Guerra Mundial, que impactou tanto na própria obra – o pessimismo da época, as questões que a modernidade trazia, a desesperança – quanto no autor tcheco, que passava por uma crise emocional agravada pelos episódios de matança.

Completando o trio sacro, já mostramos como a embate aparece no último volume de Em busca do tempo perdido, de Proust, mas faltou dizer que a publicação da septologia foi interrompida por conta da luta entre países. No caminho de Swan chega às livrarias em 1913, enquanto À sombra das raparigas em flor sai apenas em 1919. Apesar da conhecida morosidade da escrita do francês, o lapso entre publicações foi um motivo externo ao autor. A guerra também aparece de forma velada em Em busca do tempo perdido, afinal, não haveria como retratar a sociedade de sua época sem levar em conta os efeitos que ela provocou.

Apesar de distantes, não escapamos de novidades que flertam ou se agarram à confusão europeia. Lima Barreto, por exemplo, publica Numa e a ninfa e a versão em livro de O triste fim de Policarpo Quaresma durante os anos de conflito. Porém, é na poesia brasileira que o combate exerceu uma influência mais direta, em autores dos mais importantes para o movimento modernista no país.

Manuel Bandeira era tuberculoso, por isso, em 1913, mudou-se para a Suíça – iria se tratar por lá. Iria, caso não tivesse que retornar ao Brasil no ano seguinte, por conta do início das animosidades. De volta ao seu país natal, publica em 1917 A cinza das horas, sua primeira obra, que sai com uma edição de 200 exemplares custeados pelo autor. Mais evidente é a influência da Grande Guerra em Mário de Andrade, que também em 1917 publicou, sob o pseudônimo de Mario Sobral, Há uma gota de sangue em casa poema, livro inspirado pelas barbáries da batalha.

E tudo isso começou, de certa forma, com os tiros de Gavrilo Princip.

Texto publicado originalmente na edição XX suplemento literário Pernambuco.

Ps: Desculpem pelo jogo de negrito e não-negrito, mas há algum tempo venho apanhando do WordPress.

 

 

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Por Fred Linardi

PEIXE_GRANDE_1293121765PTendemos a imaginar que a fantasia está se enfraquecendo. O mundo se tornou chato, dizemos também. As histórias infantis, em especial os livros clássicos, são um campo minado prestes a explodir na primeira análise dos fiscais do politicamente correto. Tira-se do contexto de época e de repente Monteiro Lobato se torna perigoso para nossa frágil moral. E então, no mundo de hoje, com crianças precocemente adultas, a impressão que temos é essa, a de que o mundo da fantasia vive num arriscado limiar.

Tanto a literatura quanto o cinema encontram um grande apelo comercial quando a história prestes a ser lida ou assistida se trata de uma narrativa inspirada numa vida real. Parece que as horas investidas na poltrona encontrarão mais sentido do que se a história em questão fosse meramente ficcional (como se isso fosse simples, como se a inventividade tirasse a autenticidade de uma vida inventada). E então, no entanto, nos lembramos do que há de real numa ficção e do que existe de universal em qualquer história tirada da imaginação.

No final, o que se extrai tanto de uma literatura quanto da outra é o que de há de humano, o que move o leitor na história. Ao cabo, chegamos à conclusão que não esgota o ciclo dessa questão, de que a fantasia jamais vai perder seu espaço, mesmo num mundo chato como ele se apresenta.

Peixe grande, de Daniel Wallace, é uma prova disso. Trata-se de um pequeno livro, uma história sobre a vida de Edward Bloom, que se encontra agora no leito de morte. É seu filho, William, que narra a história intercalando com diferentes momentos dessas horas do fim da vida com as extraordinárias passagens que ouviu sobre o passado do pai. Ouviu-as do próprio Edward, mas também as complementações e variações dos fatos que amigos e estranhos contavam sobre aquele homem sem igual. Dessa forma, o conhecido e mitológico pai está se esvaindo diante de um filho que, na verdade, pouco lhe conhece.

As inúmeras histórias, que se parecem mais fábulas que os adultos contam para entusiasmar as crianças, parecem não preencher o vazio que o filho sente em relação à ausência deste pai que tanto viajou durante a infância e juventude de William. De espírito aventureiro, não conseguiria jamais viver entre as paredes da casa, repletas das previsíveis coisas da vida.

Toda pergunta ou observação do filho sobre o pai, nos derradeiros diálogos antes da morte, ainda levam Edward a se lembrar das anedotas das quais ele teria participado e protagonizado ao longo de sua vida. William se irrita o tempo todo, pois, de tanto ouvir tantas histórias diferentes, sofre por nunca saber de fato quem havia sido seu pai além daquelas histórias deslavadamente inventadas, mesmo que tivessem realmente acontecido – sim, há um jogo de confusão e realidade digna de mestres contadores de histórias.

Mas acontece que o tão carismático e adorado-por-todos é um Edward que vive e morre como todos os seres humanos. Sua figura é imperfeita, mas escolheu contar ao filho os melhores pedaços de sua história. “Não importa; a história está sempre mudando. Todas as histórias mudam”, escreve o narrador em dado momento do livro. E o que fica é o que sabemos enxergar dela. O final redentor da relação entre pai e filho prova que a vida é grande, maior do que aquilo que escutamos e queremos acreditar. Maior do que nos contam ou do que ouvimos.

Vale dizer que o livro, adaptado para o cinema em 2003 pelo diretor da fantasia, Tim Burtom, teve muitas modificações em seu roteiro, com uma série de elementos e personagens criados para a tela. Dessa forma, o leitor de Peixe Grande tem contato com essa história a partir da inventividade própria do autor Daniel Wallace que, além de escritor é também ilustrador. A única frustração é que a edição do livro não conta com seu trabalho como desenhista, o que poderia contribuir muito com a riqueza deste trabalho. De qualquer maneira, suas palavras são o suficiente para ilustrar a mais árida das imaginações.

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Por Igor Antunes Penteado

A 3ª edição da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, feita pelo IBOPE Inteligência a pedido do Instituto Pró-Livro (IPL) e divulgada este ano, apresentou os nomes dos 25 autores mais admirados pelos brasileiros. A lista traz escritores de estilos e épocas diferentes da literatura nacional, mas, assim como aconteceu no levantamento anterior, divulgado em 2007, o paulista Monteiro Lobato foi eleito o escritor brasileiro mais querido pelo público.

Acredito que o autor não precise ser apresentado – até porque uma rápida busca na internet pode suprir essa demanda muito melhor do que eu –, mas Lobato é absolutamente presente no imaginário popular por seus personagens fabulosos e oníricos, que extrapolaram os livros e chegaram também à televisão. Se os programas na TV e a universalidade de suas histórias – tão relevantes para as crianças da cidade quanto para as crianças do interior – são as principais marcas de seu sucesso, o trabalho nas escolas primárias com seus textos também teve contribuição relevante para que Monteiro Lobato e o universo de personagens criados por ele fossem absolutamente íntimos de todos nós.

E é justamente esse último elemento contribuinte para o sucesso do escritor que vem sofrendo uma sistemática perseguição. Isso porque o parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) liberou a adoção do livro Caçadas de Pedrinho no Programa Nacional Biblioteca na Escola, e distribuiu exemplares do livro em escolas de todo o país. Entretanto, a obra tem sido acusada de ter “elementos racistas”. O questionamento sobre o conteúdo do livro foi feito por uma entidade do movimento negro e por um técnico em gestão educacional (saiba mais aqui). Mas será que a coisa é mesmo por aí?

Publicado em 1933, Caçadas de Pedrinho relata uma aventura da turma do Sítio do Picapau Amarelo à procura de uma onça-pintada. Entre os trechos que justificariam a conclusão de racismo estão passagens como “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão” e “Não vai escapar ninguém – nem Tia Nastácia, que tem carne preta”.

Em primeiro lugar, como esclareceu de forma bastante pontual em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo o articulista e filósofo Hélio Schwartsman, criticar tão severamente a obra ignorando o contexto no qual ela foi escrita é se prestar a um tremendo de um analfabetismo histórico. Segundo ele, nosso maior erro é interpretar o passado com os olhos de hoje, aplicando critérios contemporâneos, mas ignorando que todos somos prisioneiros da mentalidade de nossa época. Isso é, por estarmos tratando de escritos dos anos 30 – época em que quase todo mundo era racista –, torna-se difícil não encontrarmos termos que tenham esse tipo de conotação, ainda que fossem interpretados de outra maneira à época.

Em segundo lugar, o que precisa ficar claro é que, como diria o brilhante Alex Castro, o racismo não é um problema individual. Tratar dessa questão é entrar em uma mata densa, fechada e que provavelmente vai exigir de você um esforço de compreensão e revisão de seus conceitos muito maiores do que você imagina. Indico que você leia a trilogia Racismo e Normalidade escrita por ele para o também excelente PapodeHomem (parte 1, parte 2 e parte 3) ou, se tiver mais tempo e curiosidade, acesse o material completíssimo já produzido por ele sobre o assunto. Entretanto, acho fundamental deixar um trecho de um texto do Alex Castro que serve para começar a abrir nossa cabeça em relação a algumas coisas:

“Eu (n.1974) cursei o ensino fundamental no Colégio Santo Agostinho, o médio na Escola Americana do Rio de Janeiro e, depois, História no IFCS/UFRJ (’99) porque meu pai cresceu em Botafogo, fez o ensino médio no Colégio Andrews e se formou bacharel em Economia (’70) pela mesma UFRJ.

Meu pai (n.1946) estudou na UFRJ porque meu avô estudou engenharia no Instituto Eletrotécnico de Itajubá, atual Universidade Federal de Itajubá (’38) e trabalhou durante muitos anos para a Chesf (Companhia Hidro-Elétrica do São Francisco), inclusive nas obras do Complexo Hidrelétrico de Paulo Afonso.

Meu avô (n.1909) foi engenheiro porque meu bisavô (n.1876) saiu do Mato Grosso (onde seu pai, veterano do Paraguai, estava servindo desde a guerra) pra estudar no Colégio Militar do Rio de Janeiro, onde foi comandante-aluno de 1897, depois formando-se engenheiro militar, participando do episódio dos 18 de Forte e reformando-se coronel.

Em 1888, com 12 anos de idade, meu bisavô estudava na capital do Império, em um dos melhores colégios públicos do país, com bolsa integral, soldo e emprego garantido após a formatura. Se, ao invés disso, nesse mesmo ano, ele tivesse sido libertado (leia-se posto pra fora de casa) com a roupa do corpo, analfabeto e despreparado, sem conhecer pai e mãe, desprovido de qualquer poupança ou bens, teriam seus descendentes estudado nas melhores escolas e universidades do país e feito parte da elite brasileira?” [está tudo aqui]

E aí, isso tudo diz alguma coisa a você? Espero, sinceramente, que sim. Ao menos no sentido de ampliar um pouco o conceito de racismo. E, não querendo me alongar ainda mais no assunto, tratar de racismo em um país estruturalmente racista como o nosso tem de ser um processo feito com muito cuidado. Como dizem os estudos do Alex Castro, o problema do racismo é sistêmico e intrínseco demais nas bases da sociedade para ser debatido e compreendido apenas olhando de maneira rasa e superficial para as relações interpessoais do dia a dia.

É importante lembrar também que esse tema passa pelo exaustivo e contraproducente debate sobre o politicamente correto. Usado popular e indevidamente como muleta para defesa da liberdade de expressão, temos de ter consciência da função social que ele exerce.  Pra mim, por exemplo, é fácil discursar sobre o preconceito, afinal, sou branco, venho de classe média, nasci em São Paulo (maior centro econômico do país), fui criado dentro dos princípios da igreja católica (dominante até então) e tive oportunidade – ao contrário de mais de 90% da população brasileira – de cursar o ensino superior. Ou seja, pra mim é tão fácil discursar sobre o preconceito quanto é óbvio o motivo dessa facilidade: alguém como eu simplesmente não sofre preconceito. E aí, em posição confortável, é fácil julgar a discussão por igualdade, mesmo sabendo que ela nunca existirá.

Assim, antes de discutirmos racismo e demais formas de preconceito, é sensato que lembremos que uma conscientização nesse sentido impede que extremismos e posições radicais priorizem uns em detrimento de outros. Não pensar de maneira abrangente é ajudar a perpetuar uma cultura de exclusão. Mas, por outro lado, impedir a universalidade de acesso a conteúdos fundamentais para a formação de um indivíduo, sobretudo de crianças e pessoas com pouco acesso a cultura, como é a obra de Monteiro Lobato, também é continuar mantendo o “natural” cabresto cultural que a nossa sociedade impõe aos menos escolarizados.

Em contrapartida, algo de tessitura bastante tênue precisa ficar claro. Este debate gira em torno de uma decisão que envolve o bem-estar de crianças e exige atenção especial nesse aspecto. Como expõe formidavelmente em seu artigo ao jornal Rascunho o escritor Alberto Mussa, não podemos julgar que uma criança seja capaz de abstrair a totalidade de conteúdos de um livro e os contextualizar histórica e sociologicamente – sem contar o fato de que elas não estão livres para escolher, já que muitas vezes a obra será sugerida pela escola. E, ainda mais, é de uma inocência infantil (sem contradições) achar que a explanação e debate propostos por um professor dentro da sala de aula será capaz de barrar a sanha infantil em torturar psicologicamente um colega negro em meio a uma briga (levante a mão quem não se lembra de nenhuma prática assim dos tempos de escola).

Posto tudo isso, o que acredito que há de mais plausível nesse revisionismo proposto com a obra do Monteiro Lobato é que, sim, deve haver uma necessária adaptação de obras como essa – inclusive com a exclusão ou reescrita de trechos –, até porque, como lembra Alberto Mussa, o livro pode violar “a integridade psíquica e moral da criança — que somos, por lei, obrigados a proteger” e algo assim não irá diferir muito de outras adaptações, como as que foram feitas para a TV, por exemplo. Dessa forma, é importante que os mais conservadores, que não admitem cortes ou correções no texto original, entendam que um conteúdo destinado a crianças exige certas adaptações, não só para tentar minimizar um passado vergonhoso de total subjugação, mas, sobretudo, para que de forma alguma as crianças de hoje sejam privadas do acesso ao delicioso universo criado por este precursor da literatura infantil brasileira.

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A escola de samba Dragões da Real, que disputa o Grupo de Acesso do carnaval de São Paulo e que esse ano chegará ao Grupo Especial, torço eu, desfilará no Anhembi com um enredo totalmente ligado à literatura: “A Felicidade se Conta em Contos”. O samba falará sobre contos (óbvio, né!?rs) infantis e como eles são importantes para a formação das crianças. A música conta com referências de obras como Branca de Neve e os sete anões, João e Maria, Alice no país das maravilhas, Cinderela e Bela Adormecida. Eis o samba da Dragões, que também pode ser lido e baixado aqui:

A literatura é algo bastante presente no Carnaval. Em 2008, a Mancha Verde ficou em 7º lugar no Grupo Especial com o enredo “És imortal! Ariano Suassuna: Sua Vida, Sua Obra, Patrimônio Cultural”, que homenageou o escritor paraibano.

Em 1989, a Unidos da Vila Maria entrou na avenida com o enredo “O Mundo Encantado de Monteiro Lobato”, sobre o escritor que também foi transformado em carnaval pela Pérola Negra, em 2002, cujo enredo foi “Monteiro Lobato, Da Fazenda Buquira (Taubaté-SP) Para o Mundo – Um Homem Além do Seu Tempo”. Também em 2002, o enredo da Águia de Ouro foi “Tupy or not tupy- Mario de Andrade”, uma lembrança ao escritor modernista.

Uma das escolas mais tradicionais de São Paulo, a Camisa Verde e Branco desfilou com o tema “Literatura de Cordel”, em 1972.

Outras duas escolas tradicionalíssimas já entraram na avenida tendo algo do universo literário como enredo. A Vai Vai desfilou com “Amado Jorge, a História de uma Raça Brasileira”, em 1988, “A Volta ao Mundo em 80 Minutos”, uma clara referência à obra A Volta ao Mundo em 80 Dias, de Julio Verne, em 1987 e “O Guarani”, em 1975. Já a  Nenê de Vila Matilde levou para o Anhembi “Casa Grande e Senzala”, em 1956, “Paulicéia Desvairada”, em 1970 e “São Paulo na Academia Brasileira de Letras”, em 1973.

Claro que no carnaval carioca também temos muitos exemplos das letras invadindo o mundo do samba. Em 2010, por exemplo, o enredo da Acadêmicos do Salgueiro foi “Histórias sem Fim”, que contou a história da literatura.

Contudo, como outras matérias já foram feitas associando os desfiles do Rio de Janeiro aos livros, deixo com vocês uma da Globo e outra do Livros e Pessoas.

 

Um muito obrigado à amiga – e fã de carnaval – Kátia Morelatto (@kamorelatto), que ajudou nas pesquisas para esse post!

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