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Posts Tagged ‘Woody Allen’

Por Igor Antunes Penteado

SuassunaPoucas semanas foram tão trágicas para a história da literatura quanto a que passou. Em um espaço de cinco dias, perdemos três de nossos maiores escritores: João Ubaldo Ribeiro, no dia 18, Rubem Alves, no dia 19, e Ariano Suassuna, no dia 23. Mortes que não deixarão apenas um vazio imensurável para a cultura nacional, mas, sobretudo, que projetam lenta e definitivamente o fim de uma estirpe de escritores que praticamente não temos produzido mais.

Entretanto, a discussão que quero propor aqui é outra. Ariano Suassuna, ao longo de sua vida, foi bastante marcado por uma relação estreita com a política e, em muitas oportunidades, esteve envolvido em campanhas e mandatos. Ultimamente, vinha atuando de forma que divergia do meu posicionamento, o que me levou a um questionamento: até que ponto devemos deixar os fatos da vida privada de uma pessoa influenciarem em nosso julgamento sobre a obra produzida por ela?

Embora apresentasse em várias de suas produções críticas mordazes ao coronelismo, Suassuna manteve por anos uma proximidade indigesta –para mim – com várias figuras protagonistas deste papel, infelizmente ainda tão comum e tradicional na política nordestina e nos interiores mais profundos do Brasil. A contribuição do escritor para a nossa cultura – inclusive além dos livros propriamente ditos – é, sem dúvida, inestimável, mas sua postura em diversas ocasiões sempre me foi “estranha”. E é tão difícil colocar em cheque uma figura por quem se tem tanta admiração.

Voltando à pergunta, até que ponto uma discordância pessoal deve influenciar na avaliação sobre a obra de alguém? Parece-me que, quando a questão se refere a uma conduta moral ou a uma divergência de pensamento, o mais sensato é mesmo tentar separar as coisas. Monteiro Lobato era racista – como quase todos em sua época –, mas seria bizarro ignorar toda a sua contribuição positiva em tantas outras frentes. Nelson Rodrigues, autor daquele que elegi como meu livro favorito, era um tremendo machista e reacionário, mas genial escritor e cronista, entre outros campos em que atuou.

Como esses, vários outros exemplos me vêm à cabeça. Meu poeta favorito, Vinicius de Moraes, certa vez disse que “Existem umas feias potáveis. Mas a maioria só serve mesmo para fazer sabão”. Eu deveria ignorar todo o resto do que tanto gosto em nome desta tosquice? As bobagens antissemitas do Mel Gibson desabonam seu maravilhoso Coração Valente? O pensamento retrógrado em relação às mulheres diminui o brilhante desenvolvedor do jiu-jitsu (arte que tanto admiro) que foi Hélio Gracie? Não devo nunca mais prestigiar uma peça com Marília Pêra ou Claudia Raia pelo apoio das duas atrizes à candidatura do Collor em 1989? Acho que não.

Se no campo das ideologias as coisas já são confusas, é de se imaginar que quando a conduta destoante, na verdade, é um crime, o cenário é ainda pior. Messi, quatro vezes consecutivas eleito como o melhor jogador do mundo e investigado por suspeitas de uma faraônica fraude fiscal, deve ter seu futebol menos visto e elogiado por mim? Considerado um dos maiores boxeadores de todos os tempos, Mike Tyson não bateu só nos adversários, mas espancou uma mulher. Não é possível mais admirar sua velocidade e precisão dentro dos ringues? Outros candidatos ao ostracismo por violência doméstica: James Brown, preso repetidas vezes em seus últimos anos de vida e, claro, Netinho de Paula. O ex-negritude deve cumprir para sempre essa pena “moral” mesmo tendo apresentado, após eleito vereador, vários projetos em favor das mulheres?

Mas, nesse quesito, nenhum caso é mais emblemático que o de Sean Penn. Quando ganhou o Oscar por Milk, em 2008, o ator comoveu muita gente com seu discurso pró-direitos gays. O que a maioria não lembrou é o fato de que, duas décadas antes, Sean também bateu em sua mulher, Madonna, e fazia o melhor estilo “bad-boy” canastrão e homofóbico. Qual o tamanho da pena que Sean deveria cumprir para que eu pudesse admirar seu trabalho sem peso na consciência?

E, para piorar, assim como os conflitos e julgamentos internos, os crimes também pioram. Roman Polanski, Oscar de melhor diretor por O pianista (2002), estuprou uma menina de 13 anos há quase quatro décadas, e aí? E Woody Allen, outro diretor envolvido em um escândalo sexual com uma criança, como fica? O diretor de Match point, acusado de ter molestado sexualmente sua enteada, Dylan Farrow, quando ela tinha seis anos, deveria dizer “bye bye” à minha admiração por sua obra até os dias de hoje?

Essas questões ainda me são bastante perturbadoras, mas o fato é que seres humanos cometem, sim, erros. Muitos deles. E esperar que as obras dessas pessoas paguem por isso é mais um destes erros. Descanse em paz, Ariano. Sua obra é valiosamente eterna.

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Por Fred Linardi

livro por diaDe um dia para o outro a rotina do jornalista policial canadense Jeremy Mercer mudou. Sem honrar o voto de confiança de um criminoso, Mercer citou seu nome num livro-reportagem sobre uma série de assassinatos ocorridos na cidade. Seria muito ingênuo pensar que o assassino deixaria por menos. Logo depois do lançamento do livro, o telefone da casa do jovem jornalista tocou. Era o próprio foragido que prometia acertar as contas mais cedo ou mais tarde.

Essa foi a maior motivação para que Mercer pensasse em sair de cena por um tempo, ao menos até que os ânimos do bandido (talvez) se acalmassem. A segunda motivação foi sua situação acadêmica. Ele estava quase jubilando na faculdade de jornalismo por causa do francês, a única matéria que faltava para concluir sua graduação. Resolveu que faria a disciplina na França, berço da língua e um país distante o suficiente para não ser perseguido por um enfurecido criminoso.

Com o dinheiro contado para poucas semanas, Mercer passou um tempo em condições extremamente simples, mas mesmo assim seus tostões acabaram. Um dia, enquanto fugia de uma das típicas chuvas de Paris, abrigou-se na Livraria Shakespeare and Company. Mal imaginava a história da loja, tampouco sobre seu dono ou sobre a principal informação que mudaria o destino de Mercer na cidade luz. George Whitman, o fundador e proprietário, vivia e pregava uma filosofia socialista e fazia de sua loja um celeiro para isso. Uma de suas atitudes era abrigar escritores e aspirantes entre as prateleiras repletas de títulos em inglês. Em meio aos livros novos, usados, antigos e raros, algumas camas compunham o romântico ambiente da loja. Jeremy Mercer apresentou-se e foi aceito para ocupar uma delas durante o tempo que precisasse – desde que escrevesse. Desde que se dedicasse à leitura, à escrita e, claro, ajudasse em algo da loja.

Um livro por dia, publicado aqui pela Casa da Palavra, é uma agradável leitura sobre a experiência de morar na livraria cuja fama se dá graças a escritores como Ezra Pound, Ernest Hemingway e James Joyce. Isso porque George Whitman abriu sua loja com o mesmo nome da primeira versão da lendária livraria que não sobreviveu à ocupação alemã em 1940. Amigo e admirador de Sylvia Beach, que criara a primeira versão da Shakespeare and Company, Whitman a reinaugurou em outro endereço na década seguinte, mantendo a tradição da original.

Mas Jeremy Mercer alojou-se na livraria no ano 2000, quando o contexto era bem diferente daquele retratado por Woody Allen em Meia noite em Paris. Não que hoje em dia não haja mais novos Hemingways na livraria – pode ser até que tenha… – mas a realidade parisiense que é outra também. Entre os suspenses vivenciados pelos jovens moradores estava a situação ameaçadora imposta por um grande magnata da hotelaria em comprar o prédio de três andares ocupado pela Shakespeare and Company. Além deste drama financeiro, Whitman carregava uma difícil questão familiar: a relação com sua filha que morava na Inglaterra e que pouco teve contato ao longo de sua vida.

Aliás, entre as maiores qualidade da maneira de Mercer narrar, está no modo que mantém pequenos suspenses entre um capítulo e outro, conquistando a atenção do leitor, que se envolve cada vez mais na leitura. Entre breves perfis de outros estrangeiros que ali vivem – incluindo um velho e excêntrico poeta inglês –, retrata a liberdade e as situações extremas daqueles que resolveram deixar seus países para morar praticamente de favor e com moedas contadas. O relato então se torna ainda mais generoso ao leitor, pois conta a história de Whitman e da livraria, mas também mostra as fraquezas e dúvidas dos personagens do livro, inclusive do próprio Mercer ao longo dos quatro meses que lá viveu, bebeu, escreveu e – devido ao costume local e ao inverno – pouco teve condições de se assear.

Vivendo em algumas questões extremas – a livraria não é munida de banheiro com chuveiro, por exemplo – Mercer relata episódios aflitivos, como os indesejáveis ratos que disputavam a comida do jantar preparado e servido por Whitman. E também como os moradores arranjavam diferentes meios para combater a miséria, valia até mesmo cuidar um pouco da higiene no banheiro de um café do outro lado da rua, já que banhos de verdade costumavam acontecer somente quando tinham a sorte de ter uma noite de amor no quarto de hotel de alguma turista que surgia na loja.

O livro aproveita as tramas de destinos incertos. O destino de Jeremy Mercer parece ter sido muito melhor do que se jamais tivesse sofrido uma ameaça de morte. Temos a certeza disso inclusive pelo livro publicado – tudo ocorreu bem e ele está vivo até hoje. Já sobre o destino da livraria e George, é preciso ler toda a obra. A leitura é gratificante, indicando que a narrativa de não ficção continua a atingir os altos níveis de qualidade que tem alcançado há décadas.

O próximo entrevistado do Canto dos Livros será o Jeremy Mercer. Não percam!

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