Para viver de literatura quase sempre é preciso se desdobrar. Noemi Jaffe se desdobra. Escreve livros, prefácios, ensaios e críticas, faz curadoria, dá aula em universidades e ministras cursos e oficinas de escrita. Assim, leva uma vida sem luxos, é verdade, mas alinhada com sua paixão pelas letras. Autora, dentre outros, de A verdadeira história do alfabeto e O que os cegos estão sonhando, também mantem o blog “Quando nada está acontecendo”. Na conversa que tivemos com ela por e-mail, falou de suas obras,da literatura de uma forma geral, do belo e até mesmo de poesia, assunto um tanto raro aqui no Canto.
Canto dos Livros: O que se passa quando nada está acontecendo?
Noemi Jaffe: Quando nada está acontecendo passa o que passa distraído e é durante a distração, quase sempre, que se passam as melhores coisas. Aquelas das quais a gente não se dá conta, que não têm grandiloquência, mas têm voz e vez. Não o amor, nem a guerra, nem a paz: mas algumas palavras, algumas pessoas, lugares e ações. O que se passa é o concreto, quando nada está acontecendo.
CdL: A verdadeira história do alfabeto guarda algumas semelhanças com O livro dos seres imaginários, de Jorge Luis Borges. Ele realmente lhe é uma referência?
NJ: Esse livro, particularmente, não, porque eu nem tinha feito essa relação. Mas a literatura borgeana, sim, embora não diretamente. Borges está sempre ressoando em quase tudo o que escrevo, na sua visão de literatura como jogo, influência, espelho, circularidade e na ideia de que a linguagem e as línguas são mistérios que, quanto mais você cava, mais misteriosas ficam.
CdL: Em O que o cegos estão sonhando você parte do diário que sua mãe escreveu durante a Segunda Guerra, quando ela foi prisioneira em um campo de concentração, para criar uma ficção. Como foi o contato com esse passado da sua mãe? Quais emoções afloraram? Onde a ficção se fez essencial?
NJ: Foi, e sempre é, um contato muito difícil. Me identifico muito com ela e sinto dor, medo e culpa. Mas também aprendo, com ela, a importância da dignidade, da coragem e tento dar importância, na vida, ao que é realmente importante, sem me ater ou fixar a bobagens ou frivolidades. A ficção se fez essencial porque foi a forma que encontrei para lidar com algo de que não conseguia me libertar. Não quer dizer que me libertei, mas aprendi muito com a ficção. Aprendi sobre a importância de dividir essa história e mais algumas coisinhas sobre as pessoas e o mal, que está em todo lugar e no fundo de todo mundo.
CdL: Ainda sobre O que os cegos estão sonhando, a leitura de um relato sobre o holocausto tende a modificar o leitor. Você foi modificada pelos relatos que teve contato? Em qual medida?
NJ: Acho que já respondi na pergunta acima. Estou sempre sendo modificada por essa história e pelo que leio sobre ela. Não termina.
CdL: Você atua em diversas frentes literárias, seja como escritora, professora, crítica, curadora ou acadêmica. É possível afirmar que você vive de literatura? Como foi seu trajeto? Como é possível alcançar essa realidade que é o sonho de muita gente?
NJ: Sim, vivo de literatura. Mas principalmente das aulas de escrita criativa que ministro. Não vivo de direitos, de forma alguma. Mas é a literatura que me sustenta, através de palestras, prefácios, críticas, aulas etc.
Alcançar essa realidade é fruto de perseverança. A literatura sempre dá vontade de desistir, num país como o nosso e com a pressa que as pessoas têm de obterem repercussão. Não se pode ter pressa. Se escrever é reescrever, viver de literatura é tentar de novo. Nunca tive luxo e acho que nunca vou ter.
CdL: Dessas frentes, qual é a que lhe dá mais prazer? E há alguma que na qual você gostaria de parar de atuar?
NJ: A que mais me dá prazer é terminar um livro e vê-lo pronto. Não quero parar de atuar em nenhuma. Talvez dar menos aulas.
CdL: Quais as maiores surpresas que você já teve nas aulas e oficinas de escrita que ministra?
NJ: Ter encontrado alguns grandes escritores.
CdL: Até onde é possível ensinar alguém a fazer literatura?
NJ: Infinitamente, na mesma medida em que eu mesma estou sempre aprendendo. Eu não ensino a escrever. Ensino as pessoas, ou tento ensinar a extrair o melhor de si em termos técnicos e na demonstração de recursos, como concisão, uso de palavras, simplicidade etc.
CdL: Nas artes, em geral, e na literatura, especificamente, o clássico será sempre o belo?
NJ: De forma alguma! O belo não tem mais nome. O belo é o necessariamente belo, como disse Kandinsky.
CdL: A criação de novos gêneros textuais – tweets, posts etc – pode alterar a produção literária ou ela só existe nos gêneros consagrados?
NJ: Acredito que sim, mas ainda não. Talvez parte da literatura passe a ser mais condensada e talvez outra parte, como acredito, por oposição, retorne ao caudaloso e ao trabalhoso.
CdL: Uma de suas obras, para a série Folha Explica, trata de Macunaíma. Considerando que é possível detectar uma mudança de mentalidade na sociedade brasileira, de uns 20 ou 30 anos para cá, a análise e os paralelos possíveis de serem traçados do romance com a realidade também devem mudar? A 1ª edição do seu livro, de 2001, deveria ter algum acréscimo ou modificação significativa?
NJ: Acho que eu faria mudanças sim, mas não em função da realidade brasileira e sim em função da análise que realizei, à qual acrescentaria alguns trechos do livro que deixei de verificar. Acho que Macunaíma é mutante o suficiente para sempre ser uma representação fiel (e infiel) do Brasil.
CdL: Há alguma obra recente potencialmente similar à Macunaíma, em seu impacto e originalidade?
NJ: Penso em várias ótimas obras sobre o Brasil, mas em nenhuma especificamente, portanto acho que nada com o mesmo impacto. Gosto do José Luis Passos (confira aqui a entrevista que fizemos com ele), Paulo Scott, Bia Bracher e outros, que falaram sobre questões políticas brasileiras.
CdL: Você organizou ma antologia de poemas do Arnaldo Antunes e já ministrou curso sobre Paulo Leminski. Como está o atual momento da poesia?
NJ: Acho que está realmente bom! Poetas ótimos, com dicção nova e desafiadora. Estou adorando o momento poético brasileiro.
CdL: Do que se trata e a que se propõe o romance que você está escrevendo? Qual a previsão de lançamento?
NJ: Não tenho previsão de lançamento. O romance tem a ver com a revolução húngara de 1956. Não quero, por enquanto, falar mais do que isso.