Por Alberto Nannini
Estava escolhendo de que maneira eu leria o livro de Juliana Cunha – Já Matei por Menos –, uma compilação do seu blog de mesmo nome, lançado pela novíssima editora Lote 42. Decidi que seria de forma bem crítica, e já estavam ativados todos os meus filtros de fábrica, que carregam todos aqueles pré-julgamentos instantâneos que fazemos sem sequer nos dar conta disso. Quer dizer, então, que ela é mulher, nova, branca, baiana, irônica, bonita, generalista, moderna, sarcástica… Sei, sei. Já peguei o esquema.
Só que não.
A leitura do livro foi me desarmando, a começar pela nota introdutória da própria autora. Revelou um conhecimento de si nada desprezível, e também uma postura sobre sua obra que não comporta vaidades.
Aliás, ela bate sem misericórdia nas vaidades típicas de blogueiros, do tipo postar sentenças definitivas como “se você nunca leu/ouviu/entendeu não sei o quê, então você é um idiota”, ou ainda, choramingar baixa audiência ou se vangloriar de audiência razoável, como aqueles com cerca de dois mil acessos diários que se acham famosos. Já até adianto: a postagem “Todo blog tem trinta leitores” é uma das melhores!
Enfim, pude constatar logo de início atitudes que costumam trazer bons resultados com críticos chatos – se equilibrar naquela linha que não é auto desprezo, nem tampouco afetação.
Mas eu não ia facilitar as coisas para Juliana. Olhando no índice a gama de assuntos que ela falava, e interpretando o título de sua obra e blog, imaginei que ela era só uma acusadora – um trem descarrilado, como ela mesma se definiu. Uma espécie de Diogo Mainardi com saias e malemolência. Chato achar isso de alguém que nem conheço (foi mal, Juliana), mas esta impressão não durou muito.
Ao contrário de blogs com escritas irônicas ou que apenas batem em tudo, indiscriminadamente, Juliana tem um olhar diferenciado, e uma escrita condizente. Diferenciado pode significar muita coisa, mas nesse caso, diz respeito à agudeza.
Com esta agudeza, Juliana Cunha – sobrenome adequadíssimo – põe em cheque convenções e bom mocismo: “eu costumo arranhar com a chave os carros que ficam estacionados na calçada. É o meu grande ato de civismo”.
E ela aponta o tempo todo, com ironia afinada, aquela rotina comezinha, aquelas vicissitudes e todo o “barulho de fundo” que é o que preenche o grosso de nossas vidas. E faz isso com a tal agudeza, que não poupa nada – “Alimento uma descrença especial pelo kardecismo porque, vamos lá, se Deus realmente existisse, dificilmente seria tão cafona” – nem ninguém: “Gisele [Bündchen] excluiu o filtro solar. Um dia desses exclui a água. A bonita vive da luz que emana do próprio ego. Energia sustentável, sabe como é.”
Uma das coisas que mais gostei no livro foi que a autora não se coloca acima daquilo que critica e aponta. Ela não faz o tipo intelectualóide, nem se parece com aquelas blogueiras assexuadas, que pairam sobre as “mesquinharias” das outras mulheres. Ao contrário, ela relata preocupações e questionamentos que nós, homens, imaginamos que todas as mulheres tenham – sobre beleza, trabalho, vaidades femininas, tudo aquilo que as tornam tão lindas aos nossos olhos.
Aliás, eu acho que justamente esta leitura, que percebe Juliana como normal, de carne e osso, parecida com aquela amiga ou conhecida mordaz que quase todo mundo tem, acaba emprestando maior contundência aos seus escritos.
E é aqui que as coisas ficam diferentes: esta normalidade de Juliana lhe dá autoridade, e a tal agudeza que lhe caracteriza se mostra afiada para cutucar temas com uma profundidade que vai bem além do lugar comum.
Estas cutucadas vão desde aqueles “toques” providenciais que gostaríamos de dar a alguns, como “porque é difícil para todo mundo entender que a sua máster cara e planejada e sonhada viagem ou reforma ou casamento ou filho não realmente interessam a quase ninguém e que é extremamente chato ouvir detalhes sobre [estes] assuntos”, até aquelas mais profundas, que nos revelam algo que carregamos sem perceber, como “quando você apresenta esses dados a um paulistano [notas e conceitos da Universidade Federal da Bahia – UFBA] ele refuta dizendo que as Universidades do Nordeste “podem até ser boas, mas não são reconhecidas e seu diploma não vai ter peso”. Reconhecidas por quem, cara pálida? Por eles.” (A minha eu já peguei. Vai uma carapuça aí?).
Temos que convir que em meio ao enorme alarido de vozes em blogs que gritam suas verdades, ou que se especializam ad absurdum em algum assunto bizarro, alguém “normal” que escreva bem sobre assuntos tão variados como moda, cinema, literatura, costumes, mídias eletrônicas e afins, já é algo notável. Mas não se trata somente de se escrever bem – algo alcançável a qualquer um com esforço e boa vontade. Vai além, é sobre como ser uma cronista da própria vida, e uma observadora atenta de todo o resto, que diga algo com utilidade.
Escritos úteis e bons. Algo que a própria Juliana não acha necessário ser, e talvez discorde: “Lazer tem que ser divertido, não bom. Minhas fotos não precisam ser boas. Meu blog também não precisa. Nem meu livro precisa ser bom.” Mas o fato é que são. Seja pelas reflexões que provocam: “Um idiota é essencialmente uma pessoa que não consegue se colocar no lugar dos outros”, seja pela identidade que criam: “imagina se não existisse a profissão de modelo e nós fossemos obrigadas a fazer trabalho de grupo com meninas que espirrando são mais bonitas do que nós somos casando?”. Ou ainda, pelo simples fato de se encontrar algumas frases lapidares: “Observe que o princípio da amizade é que você será amado mesmo sendo uma toupeira enquanto o princípio da admiração é que você será amado por não ser uma toupeira. Tão óbvio que não vai prestar”.
Enfim, uma compilação de postagens bens escritas, repletas de citações, que vão da filosofia ao cinema, passando sempre pela literatura, tudo isso coroado pelo peculiar humor de Juliana – gostoso de ouvir, inesperado, que te faz rir informalmente, como se numa conversa com sua amiga meio desbocada, que te diz coisas assim: “Tipo, sempre tem gorda que acha que o problema dela é falta de peito, essas coisas.” Num mundo onde tudo é divulgado, todos têm opiniões sobre tudo, e a “trollagem eletrônica” (mal traduzindo, ato de achacar alguém pelas mídias e canais eletrônicos) é instantânea e pode até mesmo levar as vítimas ao suicídio, encontrar uma Juliana, com toda esta categoria para cutucar, e todo o resto que ela traz, é algo significativo.
Se ela fosse pretensiosa, poderia querer imortalizar a imagem metafórica do instrumento pelo qual expõe sua filosofia,
da mesma forma que o “Martelo” de Nietszche, o “Garfo” de Hume, a “Lança” de Lucrécio: “O Picador de Gelo” de Juliana. Agudo, que cutuca, fura, esvazia, mas que pode esculpir belas formas em blocos amorfos e ser dado a sutilezas e usos incríveis, como imortalizou Catherine Tramell.
Bem, se você ainda não a conhece, compre o livro, vale cada centavo. E eu acho que Juliana deveria cobrar seus direitos: apesar de comparar sua riqueza psicológica a um personagem de Maurício de Souza, é com a personagem Funérea, que ilustra esta resenha, que ela se parece. É quase uma versão animada dela, semelhante até fisicamente! Talvez só um pouco menos contida.
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