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Posts Tagged ‘Amazônia’

Rodrigo Casarin

Claudio Tavares_ISA

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A convivência com diferentes povos indígenas, o apreço por valores humanos como, o respeito às minorias, e o fortalecimento da diversidade socioambiental são alguns dos motivos que moveram o antropólogo Beto Ricardo nesses últimos 45 anos. Um dos convidados para a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), onde irá compor a mesa “Tristes trópicos” com Eduardo Viveiros de Castro, seu colega de profissão, passou a vida profissional batalhando por causas ligadas principalmente aos índios e ao meio ambiente.

Formou-se em Ciências Sociais pela USP em 1972, idealizou e coordenou o projeto Povos Indígenas do Brasil, com atuação entre 1978 e 1992, e militou pelos direitos indígenas. É sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA), que visa propor soluções para problemas sociais e ambientais; nele, coordena o Programa Rio Negro, que atua na Bacia do Rio Negro, no noroeste da Amazônia. Também fez parte da criação da Comissão Pró-Yanomami, que defende os direitos dos índios yanomamis. Pelo seu trabalho, ainda em 1992, recebeu, nos Estados Unidos, o Prêmio Ambientalista Goldman. Já em 2011, foi eleito a Personalidade do Ano pelo Paladar, caderno gastronômico do jornal O Estado de São Paulo, pela ajuda prestada a chefs na busca por ingredientes amazônicos.

Na entrevista a seguir – concedida inicialmente para uma matéria que fiz ao Uol sobre a presença de Davi Kopenawa, escritor e xamã yanomami, na Flip -, Beto Ricardo fala sobre as questões indígenas em voga no país, os problemas pelos quais as nações marginalizadas passam e a importância dos atos simbólicos. Além disso, também conta que ainda há muito a se explorar na relação entre as florestas e a gastronomia, algo que só será possível caso haja preservação ambiental.

Rodrigo Casarin: Neste momento, como está a questão da demarcação das terras indígenas? Por que é tão importante que isso aconteça?

Beto Ricardo: A demarcação de terras indígenas está praticamente paralisada no governo Dilma, além de outros sinais de retrocesso. Há forte pressão da bancada ruralista no Congresso Nacional para transferir o reconhecimento de terras indígenas do executivo para o legislativo, incluindo a revisão de Terras já em processo de demarcação. Se isso acontecer será a pá de cal no principal direito indígena inscrito na Constituição Federal de 1988, segundo a qual é considerado direito originário e cabe ao Estado reconhecê-lo. Terras reconhecidas são a base para os demais direitos coletivos dos povos indígenas. É verdade que uma boa parte dos direitos territoriais dos povos indígenas no Brasil já está reconhecida, mas ainda há pendências importantes e pressões e ameaças nas terras demarcadas. Além do fato de que esses direitos estão desigualmente distribuídos. Nas regiões centro-oeste e norte a maior parte das terras indígenas são extensas e contínuas, reconhecidas e demarcadas depois da Constituição de 1988, mas pesam sobre essas terras o impacto das hidrelétricas, as invasões garimpeiras, o desmatamento do entorno e o aumento da vulnerabilidade ao fogo. Já nas regiões nordeste, sudeste e sul, os índios estão confinados em terras diminutas ou vivendo literalmente na beira de estradas, como é o caso de muitas comunidades do povo guarani.

RC: E quais são as questões indígenas que precisam ser tratadas com maior urgência?

BR: É preciso resolver o caso Guarani, o mais numeroso dos povos indígenas do país e desprovido de seus direitos territoriais básicos, e também a proteção dos chamados povos “isolados”. É preciso concluir as demarcações nas regiões centro-oeste e norte. Para as demais regiões do país há casos que requerem a desapropriação de terras para alargar os horizontes dos confinamentos a que estão relegados muitos povos e para viabilizar o assentamento de indígenas sem terra.

É também muito importante que o Governo Federal garanta recursos do orçamento da União, a longo prazo, para bancar os planos de gestão desses territórios, conforme prevê a PNGATI (Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas), criada pela presidente Dilma em 2012. Para as Terras Indígenas situadas no arco do desmatamento da Amazônia, serão necessárias cada vez mais ações de adaptação às mudanças climáticas. Além disso é importante a implantação de sistemas diferenciados de educação escolar, com um programa de fortalecimento das línguas indígenas e de atendimento especializado à saúde. Também seria oportuno a criação de espaços institucionais e protocolos que permitam o diálogo intercultural com os conhecimentos indígenas, relevantes para o futuro do Brasil, dos biomas brasileiros e do planeta. Nunca é demais lembrar os serviços socioambientais e climáticos prestados pelas terras indígenas. Na Amazônia, elas representam uma parte muito importante das florestas, que garantem as chuvas, a biodiversidade e as condições do clima na maior parte do continente.

RC: Na luta pelos direitos dos povos indígenas, qual a importância de momentos simbólicos, como o pequeno índio que, na abertura da Copa, levou uma faixa pedindo a demarcação de terra?

BR: Fatos positivos marcantes e registrados em imagens são cruciais, porque alimentam um capital simbólico que funciona como um estoque de compensação à minoridade demográfica (0.4% da população nacional) e política dos povos indígenas, num país imenso, preconceituoso e avassalador, com 200 milhões de habitantes. Nos últimos 40 anos, tivemos vários episódios que renderam imagens marcantes para o imaginário do Brasil e do mundo: Mário Juruna Xavante com seu gravador para registrar as promessas de políticos em Brasília; Raoni Mentuktire Kayapó dividindo o palco com Sting ou puxando a orelha do ministro (do regime militar) Mario Andreazza durante uma coletiva de imprensa; Ailton Krenak pintando o rosto de preto enquanto discursava no plenário da Câmara Federal, em sinal de protesto pela supressão do capítulo dos direitos indígenas durante a Constituinte; a presença dos Kayapó no plenário da Câmara, durante a votação da Constituição Federal; Davi Kopenawa Yanomami protestando contra o massacre do seu povo pelos garimpeiros e recebendo o rei da Noruega em sua aldeia; a advertência de Tuira que usou a lâmina de seu facão para tocar o rosto de um diretor da Eletronorte em protesto contra a construção de barragens no rio Xingu em 1989 e tantos outros. Essas imagens estão reunidas numa exposição Povos Indígenas no Brasil 1980/2013, uma iniciativa da Embaixada da Noruega e do ISA, da qual fui curador. Essa exposição estreou em Brasília no final do ano passado, já esteve em São Paulo, em Belém e desde 15 de julho está instalada ao ar livre na Ponta Negra, em Manaus, por um mês.

RC: Qual a importância, a representatividade, da questão indígena ser abordada na Flip, um dos principais eventos culturais do país, tendo inclusive a mesa “Marcados” dedicada ao tema e com participação do Davi Kopenawa, um xamã Yanomami?

BR: Eu fiquei surpreso com o espaço aberto pela Flip para este tema. Originalmente havia a expectativa de se organizar apenas uma mesa ao redor do lançamento do livro “A queda do Céu”, de coautoria do xamã Davi Kopenawa e do antropólogo Bruce Albert, uma obra de fôlego, com 800 páginas, já publicada em francês e inglês, cuja versão em português está a caminho.

Acho importante que o tema seja abordados na Flip, se possível de uma forma não apenas episódica, mas incorporando narradores e autores indígenas, como um nicho de mercado. Mas é preciso politicas públicas governamentais para fortalecer processos e produtos bem acabados, com traduções competentes das narrativas em cerca de 150 línguas.

RC: Como a cultura indígena se relaciona com a literatura?

BR: É um caso de amor sem solução. É a luta dos igarapés contra as rochas. O vigor e originalidade das culturas indígenas estão nas narrativas orais, reiterativas, performáticas, fluidas. A literatura é baseada na palavra, escrita e impressa, que o vento não leva. Dito isso, como é de conhecimento, estão disponíveis no mercado editorial muitos livros infantis e juvenis, com autores individuais – sejam indígenas ou não indígenas – baseados, ou inspirados, em mitos indígenas. Para criar Macunaíma, Mário de Andrade bebeu nos registros da mitologia dos Taurepang, Ingarikó e Macuxi, feitos pelo pesquisador Koch-Grunberg no início do século XX.

Mas há que se reconhecer que a antropologia e a linguística no Brasil nunca estiveram tão capacitadas para transitar entre as línguas indígenas específicas e algumas línguas dominantes, como o português e o espanhol. E até o francês e o inglês, como é o caso de “A queda do céu”, um trabalho de excelência, que custou a ser publicado e se transformou rapidamente num marco desse novo ambiente. Tradicionalmente os esforços da linguística para grafar e normatizar as línguas indígenas era ofício de missionários que tinham por objetivo a tradução da bíblia para a catequese e a conversão, desde os jesuítas no século XVI até as organizações missionárias evangélicas atuais.

Hoje em dia há muitos antropólogos e linguistas – inclusive indígenas – que tem bons conhecimentos das línguas indígenas contemporâneas, o que viabiliza o registro e a difusão de contribuições dos povos indígenas com outras culturas. Uma iniciativa exemplar é o Programa de Documentação de Línguas Indígenas, que inclui o Museu Nacional e o Museu do Índio, com apoio da Unesco e coordenado por Bruna Franchetto, desde 2009.

Há que se destacar alguns outros exemplos, como a série “Narradores Indígenas do Rio Negro”, da FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), com oito volumes já publicados e vários a caminho. Trata-se de um esforço editorial de mobilizar jovens adultos bilíngues, que gravam narrativas com os velhos sabedores e as transcrevem nas suas línguas de origem, posteriormente traduzidas ao português com apoio e notas de antropólogos especializados, resultando em versões atribuídas autoralmente aos narradores/clãs dos quais fazem parte. São bons exemplos os trabalhos do antropólogo Pedro Cesarino publicados em livros: “Oniska: poética do xamanismo na Amazônia” e “Quando a Terra deixou de falar: cantos da mitologia Marubo.

RC: E qual a importância, não só pela participação na Festa, de Davi Kopenawa?

BR: Davi é uma pessoa inspirada, cuja trajetória de vida o fez um homem-ponte entre mundos, na era da crise planetária, que começa a ser designada como antropoceno, uma nova época geológica, devido a transformação da espécie humana de mero agente biológico em força geofísica capaz de alterar as condições fundamentais da vida no planeta. No Brasil essa perspectiva tem pautado trabalhos recentes da filósofa Deborah Danowski e do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro.

RC: De que forma você acha que o seu trabalho contribuiu para que a presença de um xamã num evento literário fosse possível?

BR: Eu conheço Davi Kopenawa há mais de 30 anos. Fui membro da Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), depois da demarcação e homologação da Terra Yanomami em 1992, renomeada como Comissão Pró-Yanomami, e desde 2008 incorporada ao ISA (Instituto Socioambiental). Pelo ISA eu coordeno um programa na bacia do Rio Negro que inclui um termo de cooperação com a Hutukara Associação Yanomami, do qual Davi é o presidente. Apoiamos várias iniciativas do povo yanomami, entre as quais a realização de encontros de xamãs, a expansão de uma rede de comunicação por radiofonia, o intercâmbio com os yanomami da Venezuela e algumas pesquisas sobre os conhecimentos tradicionais e diálogos interculturais. Resultam desses processos algumas publicações e vídeos. Nesse contexto estamos apoiando a tradução do livro “A queda do céu”.

RC: Como você vê a relação entre os índios e o restante da sociedade brasileira?

RC: Em geral eu acho que o paradigma mudou nos últimos 40 anos. Quando começamos dar atenção a este assunto, no início dos anos 1970, os povos indígenas estavam condenados ao desaparecimento ou invisíveis, sob a retórica da ditadura militar de que a Amazônia era um vazio demográfico a ser ocupado aceleradamente em nome da soberania nacional. Na contra mão e a partir de uma rede da sociedade civil, conseguimos botar os índios no mapa, os direitos na Constituição de 1988 e avançamos com as demarcações de terras e outras iniciativas que inscreveram os povos indígenas no imaginário social e nas agendas nacionais futuras. Mas há pelo menos duas derivações desse novo paradigma, uma favorável aos povos indígenas , suas terras e direitos coletivos – com audiência especialmente entre a maioria dos brasileiros, que vivem na cidades; e outra que quer retroagir nos direitos constitucionais e frear ou reduzir os direitos indígenas, especialmente os territoriais, para liberar mais terras para o agronegócio ou obras de infraestrutura associadas. Nessa segunda vertente estão os segmentos da população brasileira que estão mais próximos geograficamente dos índios, muitas vezes atiçados por grandes interesses econômicos.

RC: Já ouvi muita gente, ao ver um índio aparecer na televisão com um celular, por exemplo, dizer: “olha lá, desde quando índio usa celular? Índio usa arco e flecha” ou algo semelhante. O que você pensa disso?

BR: É uma das formas mais perversas de preconceito, porque quer congelar as culturas indígenas, negando-lhes o direito que todas as culturas do mundo trocam processos, ideias, símbolos, comportamentos, sem que isso signifique perda de identidade. Além do mais, tal visão preconceituosa pretende deslegitimar o manejo que os povos indígenas fazem de suas identidades para obter vantagens práticas. Refiro-me, por exemplo, ao fato de indígenas que vivem em regiões fronteiriças e que possuem dupla documentação de identidade, o que lhes permite participar de processos eleitorais e de programas sociais em dois países. Por que não? Afinal, um belo dia, dona Marisa, então primeira dama, resolveu tirar passaporte italiano, incluindo os filhos, na expectativa de, eventualmente, obter vantagens derivadas da dupla nacionalidade e nem por isso deixou de ser brasileira. Tá cheio de paulistas que querem ser italianos. Se índio que usa celular deixasse de ser índio, o que dizer dos brancos que comem farinha e dormem em redes?

RC: Até aqui, utilizei “povos indígenas” e “índios” para simplificar as perguntas, mas essa simplificação é possível? Podemos, de alguma forma, tratar os indígenas como se fossem todos iguais ou cada tribo deve ser vista de maneira única?

BR: Depende das circunstâncias e do espaço disponível. Às vezes só cabe usar índios para diferenciar os nativos dos adventícios. O melhor é usar o genérico povos indígenas, terminologia amplamente reconhecida na legislação internacional e que faz jus às identidades culturais e organizações sociais específicas. Na prática cada tribo deve ser vista como singular. Claro que há semelhanças entre os povos de língua tupi e entre os de língua gê, por exemplo, mas há também muitas diferenças. No caso do Brasil estamos falando de 240 povos e 150 línguas, aproximadamente. Ou seja, não se confirmou a hipótese de alguns pessimistas, de que os indígenas no Brasil caminhariam inexoravelmente para uma identidade genérica. Aliás, no censo do IBGE de 2010, quase 900 mil pessoas se auto-identificaram como indígenas, como pertencentes a 305 povos, falando 274 línguas, resultados que necessitam de uma refinada revisão metodológicas para serem corretamente interpretados.

RC: O que te motiva a realizar o seu trabalho?

BR: As oportunidades de convivência com diferentes povos indígenas pelo Brasil afora, nos últimos 45 anos, além do apreço por valores estratégicos para a humanidade, como o respeito às minorias e o fortalecimento da diversidade socioambiental.

RC: Entrando rapidamente na questão gastronômica, como você ajudou chefs a obterem acesso a ingredientes da Amazônia? Quais ingredientes foram esses?

BR: O ISA tem programas e subsedes regionais nas bacias hidrográficas onde atua (Ribeira, Xingu e Rio Negro). Operamos com parcerias locais, regionais, nacionais e internacionais. Uma das linhas básicas da nossa atuação é criar ou apoiar alternativas econômicas com valor socioambiental agregado para comunidades que vivem na floresta. Nesse contexto é que abrimos uma conversa com vários chefs de cozinha, começando pelo Alex Atala no Rio Negro, em 2005. Desde então vários chefs do Brasil e do exterior vieram andar conosco nessas fronteiras de conhecimentos, convivendo com as comunidades indígenas e ribeirinhas, experimentando novos ingredientes, mas sobretudo aprendendo sobre as origens e modos de fazer, convertendo-se em aliados importantes para equacionar as dificuldades da comercialização: distâncias, dificuldades de logística, sazonalidades e controle de qualidade, entre outras. Essa nova atitude tomou corpo no Instituto Atá, fundado em São Paulo em 2012, uma organização da sociedade civil dedicada a promover e fortalecer a diversidade socioambiental e a agrobiodiversidade brasileira em particular. Começamos pela pimenta baniwa tipo jiquitaia, mas estamos identificando e pesquisando com as comunidades uma cesta de produtos, que inclui óleos, castanhas, derivados da mandioca brava, cogumelos, méis de abelhas sem ferrão e muitos outros.

RC: Há ainda muito a ser explorado na relação entre a floresta e a gastronomia? Faz ideia de algo que esteja por vir?

BR: Sim, as regiões de floresta são as maiores fronteiras da diversidade socioambiental do planeta, mas estão fortemente pressionadas pela agropecuária extensiva, com suas associadas, as indústrias de defensivos, de infraestrutura e de alimentos. Sem falar nas empresas de gás, petróleo e mineração. Esse bloco está altamente capitalizado, seja na vertente transnacionalizada, seja no cacife voraz de países como a China.

As paisagens florestais e a diversidade cultural associada estão sendo erradicadas e substituídas por paisagens reducionistas e “monótonas” numa velocidade espantosa.

Uma economia socioambiental baseada na diversidade cultural e nas paisagens florestais ainda é possível, mas requer visão estratégica e volumes de investimentos e modelos de governança capazes de deter o rolo compressor do capitalismo predatório.

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