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Posts Tagged ‘História do olho’

Por Rodrigo Casarin

Foto: Victor Daguano

Foto: Victor Daguano

A história já é conhecida: uma garota de programa faz sucesso com um blog e resolve transformar as suas experiências na cama em um livro. Se outrora quem assumia esse papel de prostituta-escritora era Bruna Surfistinha, agora é a vez de Lola Benvenutti, que acaba de lançar O prazer é todo nosso, destinado “a todos que desejam gozar a vida longe de tabus e preconceitos e querem ser livres para descobrir seu corpo e suas inúmeras possibilidades de prazer” – é o que diz a contracapa.

Entretanto, a trajetória de Lola difere de sua antecessora. Aos 22 anos, é formada em Letras pela Universidade Federal de São Carlos. Foi fazer o curso pela paixão que tem por literatura, por autores como Dostoiévski e Nelson Rodrigues. Na faculdade, descobriu também gostar de africanos como Ondjaki e Mia Couto. “Gosto muito da poesia que há na prosa deles, me toca muito, são bastante viscerais. Acho que o Mia Couto tem muitas similaridades com o Guimarães Rosa”, compara. São dois escritores que fizeram livros que lhe marcaram, aliás: Terra sonâmbula, de Mia, e Grande sertão: veredas, de Rosa, que remete-lhe à mudança do interior de São Paulo para a capital paulista.

Uma frase de Rosa, inclusive, virou uma das diversas tatuagens que colorem o seu corpo: “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. Tatuou ainda outras duas frases cunhadas por escritores: “Dizer insistentemente que fazia sol lá fora”, de Manuel bandeira, e “Quem não sente no corpo a alma expandir-se até desbrochar em puro grito de orgasmo, num instante infinito?”, de Carlos Drummond de Andrade.

No dia a dia faz o possível para ter algum tempo para leitura. Atualmente, divide-se entre A vida como ela é, de Nelson Rodrigues, Fanny Hill ou memórias de uma mulher de prazer, de John Cleland, e Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, outro de Mia Couto. Mas não é sempre que consegue arrumar uma hora livre em sua agenda. Seu cotidiano é corrido. Além de atender os clientes, gosta de responder pessoalmente todos os mais de cem e-mails que recebe diariamente. “Tenho que dar atenção para as pessoas que me procuram, não é só passar um preço, então é o tipo de coisa que não dá para delegar”.

Esse envolvimento com a literatura lhe trouxe algumas perturbações na hora de escrever O prazer é todo nosso. De cara, revela estar preocupada com a crítica, com a maneira que os leitores receberão a obra, diz há um peso maior quando algo é escrito por uma pessoa formada em Letras.

O resultado do trabalho é uma série de histórias que se passam na cama – ou em lugares mais improváveis, como um carro em movimento, com o parceiro ao volante –, pontuadas por um tom que mistura o professoral e uma espécie de autoajuda sexual. “Quis levar um olhar intenso para as relações, que vai além do sexo. Passei um ano escrevendo, procurei problematizar questões da sexualidade, refletir sobre o ato em si, sobre o prazer. É importante fazer com que as pessoas se permitam viver novas experiências”, explica.

O prazer é todo nosso

Lola diz que não há uma linha de ficção em seu livro, que realmente viveu todas as histórias da maneira que estão contadas. São passagens como um swing com 15 casais em uma festa fechada em Ribeirão Preto, situação que compara ao filme De olhos bem fechados, de Stanley Kubrick, com uma clássica cena de orgia. “Quando estavam me levando para aquele lugar, completamente isolado, misterioso, eu realmente achei que ia morrer”. Há outros momentos inusitados, como usar um dos brinquedos sexuais que leva na bolsa para se masturbar em meio a um congestionamento em São Paulo ou ser contratada para satisfazer cinco amigas, cujos maridos viajavam a trabalho, em uma “noite das mulheres”. Também situações mais leves, como quando ajuda um casal a retomar o tesão mútuo, auxilia uma mulher a gozar pela primeira vez na vida ou orienta um rapaz com clara inclinação homossexual a se permitir experiências com pessoas do mesmo sexo.

Entretanto, algumas passagens ficaram de fora por serem “pesadas demais”: a vez que atendeu um cego com fístula no braço e mal hálito, por exemplo, ou as diversas vezes em que clientes não apenas consumiram drogas em sua presença, mas insistiram para que ela também o fizesse – o que sempre recusou, garante.

O prazer é todo nosso apresenta referências a outras obras literárias, como um capítulo chamado História do olho, do francês Georges Bataille, um dos grandes clássicos da literatura erótica, gênero que muito agrada Lola. Da vertente, destaca Hilda Hilst, Anais Nin, Henry Miller e um quadrinista contemporâneo, Chester Brown, canadense autor de Pagando por sexo. “É uma HQ que traz uma problematização, apresenta o ponto de vista masculino sobre a relação com prostitutas e é uma história situada nos dias de hoje”.

Sobre os soft porns, diz ver certa importância neles por, eventualmente, fazerem com que pessoas descubram o prazer da leitura e se permitam algumas inovações na vida sexual, contudo, as qualidades acabam por aí. “Tecnicamente, leio e penso no Milton Hatoum, por exemplo, que constrói um labirinto que não é possível ser desvendado sem que se preste muita atenção no que está lendo. Nesse aspecto, esses pornôs que estão na moda não são tão bons”.

No campo profissional, Lola relata que títulos como Cinquenta tons de cinza pouco lhe impactaram; mesmo antes do sucesso da publicação, já tinha um perfil de dominadora e costumava praticar sadomasoquismo com homens. “Além disso, vejo nos livros mais algo onírico, da mulher ser tratada como uma princesa na vida cotidiana e ser dominada na cama”.

Lola e suas colegas

A influência da literatura também está no nome de trabalho da garota, que na verdade se chama Gabriela Natalia Silva. Enquanto o Benvenutti remete à “bem-vindo” em italiano, o Lola é uma homenagem a Lolita, a clássica ninfeta de Vladimir Nabokov. Ela se vê, de certa forma, nesse papel, como uma menina sensual que mexe com a cabeça de homens mais velhos.

Prostitui-se desde os 17 anos e, apesar das pretensões com a carreira literária e da vontade de fazer um mestrado (quer estudar o sexo dentro da antropologia ou das ciências sociais para ir mais a fundo na parte teórica do assunto que domina na prática), não tem planos para deixar a profissão tão cedo. Orgulha-se do que faz. Diz que, mais do que prazer, tem o importante papel de dar atenção, ouvir, valorizar a compreender muitas pessoas que não encontram isso em outras relações.

Apesar de passar por momentos às vezes desagradáveis – certa vez precisou se segurar para não mandar o cliente “tomar no cu” depois de ouvir que poderia “ter mais peitinho” -, diz-se sortuda de trabalhar com tantas pessoas legais. Quando perguntada como prefere ser tratada, opta por “puta mesmo, acho mais original, causa um choque nas pessoas, é mais divertido, mais bem resolvido”. É aí que invoca Gabriela Leite – outra puta-escritora, autora de Filha, mãe, avó e puta, e ferrenha ativista na busca pelos direitos das profissionais do sexo, que faleceu em 2013 -, a quem prefere ser comparada, tanto que dedica o livro à ex-colega.

Contudo, o paralelo com Bruna Surfistinha e seu O doce veneno do escorpião é inevitável. É possível afirmar que Bruna é mais detalhista em seus relatos, vai mais a fundo nos pormenores carnais, enquanto Lola se preocupa em refletir sobre cada cena presente em seu livro. É como se a primeira não ligasse em assumir o lado pornográfico da obra, enquanto a segunda procurasse ficar no campo erótico, menos vulgar. Outra diferença: O doce veneno do escorpião traz uma narrativa única, enquanto O prazer é todo nosso pode ser encarado como uma sequência de contos, com alguma lógica e continuidade entre si, mas que também se sustentam se lidos de maneira independente. Em comum, ambas assumem que, além do sexo, precisam fazer as vezes de analista de diversos clientes.

Escrevendo O prazer é todo nosso – que sai com uma aposta alta, em tiragem de 10 mil exemplares – Lola conseguiu juntar as duas coisas que mais gosta na vida: o sexo e a literatura. Espera que o livro seja um divisor de águas em sua carreira, apesar de não fazer ideia de como ele irá repercutir e para onde vai lhe levar – só assegura que não será para longe dos programas.

Matéria originalmente publicada no Uol.

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