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Por Rodrigo Casarin

Meus desacontecimentos“Muito antes de perder minha fé, eu vagava pela casa quando me deparei com ela. Um filhote de barata. (Para mim não havia dúvida de que era uma menina.) Ficamos uma diante da outra, como num duelo de filme de caubói a que eu assistia com meus irmãos. Esmagueia-a com a minha havaiana. Era a minha primeira morte. De imediato, me identifiquei com o cadáver. Chorei. Ali, no corredor da casa, com o chinelo na mão, o corpinho colado na sola em insuportável desvalia”.

A partir do assassinato do animal, a criança Eliane Brum resolveu escrever, com sua letra péssima, A autobiografia de uma barata. Ao longo da narrativa, finalmente entendeu aqueles bichos asquerosos, que voavam em sua cabeça até mesmo enquanto rezava justamente para que nunca mais aparecessem. Percebeu que era legítimo, por exemplo, que entrassem nos potes de bolacha, afinal, precisavam de comida para viver.

Compaixão e empatia são dois traços da personalidade da escritora evidentes em seus textos, sejam eles jornalísticos ou ficcionais. Essas características, como é possível perceber, vêm desde a infância de Eliane. Para ela, sempre foi natural se colocar no lugar dos outros – sejam eles pessoas ou bichos, pelo visto. Acostumada a mergulhar na vida de seus personagens para transformá-las em narrativas, há pouco Eliane fez um movimento diferente. Imergiu em si mesma para escrever Meus desacontecimentos – a história da minha vida com as palavras, que resgata as memórias de sua relação com a arte escrita em uma espécie de autoperfil de formação literária.

O caminho até si mesma

Para realizar as reportagens que a consagraram, Eliane sempre precisou desabitar-se. Despe-se de preconceitos e julgamentos e se abre para o universo dos outros. Apenas dessa forma pode, de alguma maneira, escutar de verdade, buscar compreender qualquer tipo de gente, até os escorraçados pela sociedade, como um pedófilo. “Isso vale para qualquer experiência humana, preciso escutar mesmo, com todos os sentidos”, diz. O caminho de volta desse processo é sempre muito doloroso. Às vezes, após uma apuração, semanas são necessárias para que a escritora se readeque ao seu mundo, que parece ser tão igual ao que era antes, mas com a protagonista dele profundamente modificada por aquilo que vivenciou.

Em seus trabalhos ficcionais – como o romance Uma duas e o conto “Raimundo, o dono da bola”, presente na coletânea Entre quatro linhas – a escritora experimentou algo diferente. Surpreendeu-se ao se deixar possuir pelos personagens que a habitam. “Gosto de livros de terror e descobri que não há nada mais aterrorizante do que ser possuída pelos outros de si mesmo”, conta.

Já para Meus desacontecimentos, diz que foi tudo diferente, que sente dificuldade em definir a experiência. Como repórter, sempre se interessou por descobrir como cada indivíduo cria a sua própria vida, em geral com pouquíssimos elementos. “Nesse sentido, a vida de cada um de nós é nossa primeira ficção, que vai mudando ao longo do tempo”. Então, voltou-se para si e procurou entender como criou a sua vida com as palavras, levando a mulher Eliane para explorar as lembranças e tentar entender a menina que uma dia foi. A escritora encarou a empreitada com lucidez do cenário nebuloso que encontraria. “Lembranças não são fatos, mas as verdades que constituem aquele que lembra”, escreve em determinado momento da obra.

Para exemplificar essa busca pela ficção que cada um cria para sua própria vida, Eliane retoma um dos seus textos mais emblemáticos (ao menos para mim): “O gaúcho do cavalo-de-pau”, do excelente A vida que ninguém vê, livro que traz diversos perfis que escreveu para o jornal Zero Hora, de Porto Alegre. É a história de Vanderlei, homem que todos – até as vacas! – dizem ser louco porque faz de um cabo de vassoura o seu cavalo. Um trecho do diálogo que segue a matéria é essencial:

– Você sabe que isso é uma fantasia, que o cavalo é um cabo de vassoura. E mesmo assim galopa num cavalo-de-pau. Por quê?

– Sem invenção a vida fica sem graça. Fica tudo muito difícil.

Tuchè!

“O Vanderlei me ensinou que temos o cabo de vassoura e queremos o cavalo, ele mostra isso com radicalidade. Há uma beleza muito pungente na capacidade humana de criar sentido e inventar uma vida. Acho que o real não existe, só existe uma criação de sentido, que é importante nunca confundir com a mentira. A maior beleza humana é essa capacidade de inventar uma vida. As memórias são as verdades daquele que lembra, fragmentos de tempo que nos constitui, não fatos. Se os sentidos da vida fossem imutáveis, estávamos mortos, seríamos mortos-vivos. A memória, nesse livro, está em movimento, não está dada. A angustia fundamental da gente que escreve é que as palavras nunca dão conta de contar a vida, são sempre insuficientes”, define Eliane, que precisou reencontrar o sentido de sua vida.

A boliviana de 11 anos

Não que esteja acostumada a lidar com situações pesadas e delicadas, mas Eliane já passou por experiências bastante fortes, como ouvir as vítimas de incestos, abusadores sexuais, assassinos ou acompanhar os últimos 115 dias de vida de uma mulher para escrever justamente sobre o fim daquela existência – dessa, demorou exatamente um ano para sair do luto. Contudo, foi na Bolívia, em 2011, que o momento mais extremo de sua carreira aconteceu e está retratado na abertura da reportagem “Os vampiros da realidade só matam os pobres”, do livro Dignidade, que reúne textos de escritores sobre o trabalho da organização Médicos Sem Fronteiras.

– Por favor, não me deixe morrer.

A menina me agarra pelos dois braços. Tem apenas 11 anos. Seus olhos, porém, são tão velhos quanto os meus. Ou mais. Sonia é o seu nome. Naquele instante em que ela me pede para mudar o mundo, eu afundo na impotência. ‘Eu vou contar a sua história’, respondo. Mas eu e ela conhecemos o mundo o suficiente para saber que dificilmente ela será salva. Sonia e eu sabemos que o mundo não se importa, nem com ela, nem com os seus. Que o mundo nem sequer a vê.

O momento traumático desencadeou em Eliane uma crise com as palavras no papel. Não conseguia mais escrever. Precisava reencontrar o sentido de seu ofício para seguir adiante. Então, fez o automergulho para entender porque a escrita é tão importante para si. Por isso que Meus desacontecimentos não se limita a passagens peculiares – Eliane dormindo até os oito anos num berço, com as pernas encolhidas, porque a família não tinha dinheiro para comprar uma cama; tentando colocar fogo na prefeitura da cidade onde morava; a iniciação da vida sexual pelos livros da biblioteca de casa; as escapadas com a avó para tomarem cachaça escondidas… – e traz momentos de força vital, como “Às vezes me perguntam o que aconteceria comigo se não existisse a palavra escrita. Eu respondo: teria me assassinado, consciente ou não de que estava me matando. É uma resposta dramática, e eu sou dramática” ou “Cada vez mais, só era possível levantar da cama pela manhã porque eu podia estar em outro lugar e ser uma outra. Não havia eu, só alteridade. Se havia um eu, era este, o da menina que fabulava”. E dessa imersão, traz algo que muito explica a repórter e escritora que é: “Eu sempre fui uma criança que olhava e olhava e olhava. A melhor forma de me descrever nessa primeira infância era como dois olhos castanhos observando o mundo de um canto. Não espiando, mas olhando como se pudesse abarcá-lo inteiro. Acho que até hoje só mudei de tamanho”.

Enquanto escrevia, enquanto procurava retomar o significado da literatura para si, Eliane precisou enfrentar até situações inusitadas, como seguir adiante mesmo perdendo peças do teclado de seu computador. Primeiro foram o “E”, o “A” e o “O”, depois, o “S” e o “C”. Sorte que a escritora apenas se atentou para a irônica relação simbólica das letras que se perdiam à sua frente, mas não encarou o fato como uma mensagem subliminar para que deixasse as palavras de lado. Caso contrário, não teríamos frases excelentes como “Quando era criança, eu quase morria muito” e muito menos a obra em si.

A verdade daquela que lembra

Meus desacontecimentos é um livro breve – realmente se atém à relação da escritora com a palavra, a protagonista da obra na visão de Eliane, dispensando outros tipos de memórias –, feito por capítulos que formam um conjunto coeso, mas também se sustentam sozinhos. “Eu não penso muito quando escrevo. A forma vem de um processo interno. Escrevo como uma leitora, mesmo nas reportagens, nunca sei como vou terminar um texto, e essa é a graça”, explica.

Após o olhar para si, Eliane reencontrou aquilo que é seu norte: transformar vidas em narrativas. Ao ser questionada se é isso que a faz feliz, mesmo tendo que sofrer por momentos tão delicados e dolorosos, responde. “Eu não ligo para a felicidade, que hoje é quase um imperativo de consumo. Contar histórias dá sentido para minha vida. Acredito profundamente que as narrativas são um meio de transformação para mim e para o outro. Vejo sentido em ser uma contadora de histórias. A palavra escrita é o que me permite viver, esse corpo de palavras”.

Texto publicado originalmente no suplemento literário Pernambuco.

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