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O fim do Canto

ripAmigos, como vão?

Como vocês podem perceber, o Canto anda um tanto empoeirado. Por conta da vida de cada um de seus colaboradores, as postagens por aqui se tornaram cada vez mais raras. Pois bem, agora venho aqui apenas para oficializar o que já era evidente: o Canto dos Livros chega ao seu fim, este é o último post deste blog.

Acredito que, desde 2009, cumprimos um bom papel, tanto divulgando livros, autores e ideias, quanto refletindo sobre a literatura, em especial a contemporânea. Esse conteúdo continuará por aqui, disponível para todos.

Eu, Rodrigo Casarin, que editei este Canto ao longo desses anos, sigo com um novo blog sobre literatura, o Página Cinco, do Uol. Quem quiser me acompanhar, eis o endereço: paginacinco.blogosfera.uol.com.br e a página do Facebook: http://www.facebook.com/paginacinco.

[Atualização em 28/07/2015] Já o Alberto Nannini tem publicado seus textos no www.livrossa.com.

Se algum dos outros integrantes tiver alguma novidade, volto neste mesmo post para avisar.

E obrigado a todos que prestigiaram nosso trabalho.

Grande abraço.

Rodrigo Casarin

Por Alberto Nannini

vale_tudo_capaHá uma máxima que diz: “O livro é sempre melhor que o filme”. É de se pensar porque ela se confirma tanto. Talvez porque o filme te deixe muito passivo, e te desobrigue a imaginar – está (quase) tudo ali na tela. Talvez porque os livros tragam mais detalhes e ajudem a formar um panorama muito mais profundo da história, já que não são limitados por tempo nem por orçamento.

Quando se trata de biografias, aí vira covardia: um livro pode trazer muitas histórias e “causos” do retratado, e alternar o drama, a comédia e o que mais houver de maneira gradual e imperceptível. O filme precisa condensar tudo isso em cerca de duas horas. Não é uma tarefa fácil.

Sobre a biografia de um dos mais geniais músicos da história nacional – Tim Maia – não assisti ao filme que está em cartaz, mas li o livro que o inspira: Vale Tudo, de Nelson Motta, e venho indicá-lo com toda ênfase.

Nelson Motta conheceu e conviveu com o músico. Ouviu da boca dele muitas histórias que narra. Mostra um carinho por ele que só engrandece a obra. E ainda domina muito bem as técnicas narrativas. Seu livro tem ritmo (como seria de esperar, aliás, ante o retratado).

Muita coisa foi novidade para mim, na história de Tim Maia. Suas raízes, sua passagem fora do Brasil, o período que cantou com o jovem Roberto Carlos e outros ícones da música, como ele próprio se tornaria. E o imenso anedotário de esquisitices que ele tinha, e sua maneira sui generis de viver e lidar com aquelas chatices que tanto nos aborrecem: documentos em geral, certificados de posse de bens, observar as leis… impossível não simpatizar com alguém tão “fora de órbita” como Tim. Até porque, este é um atributo da genialidade – gênios têm dificuldades de viver o cotidiano. E Tim era um gênio, que conseguia musicar qualquer texto.

Lendo este livro, você vai conhecer a gênese de algumas músicas que se tornaram clássicos nacionais. Vai rir com a história do gordinho mais simpático da Tijuca, como o chama o autor. Vai poder opinar sobre o filme, caso o assista. E vai lamentar quando a leitura acabar.

(Dica: ele é de 2007, então, há boas chances de achar exemplares em bom estado em sebos ou no Estante Virtual).

Rodrigo Casarin

O professorApós o lançamento de O filho eterno, em 2007, livro pelo qual recebeu os prêmios mais importantes da literatura de língua portuguesa, Cristovão Tezza continuou produzindo a um ritmo considerável. Vieram Um erro emocional (2010), Beatriz (2011), O espírito da prosa (2012) e Um operário de férias (2013). Agora, está lançando O professor, sua obra mais ambiciosa desde o título que lhe fez um escritor definitivamente conhecido do grande público. “Para esse livro, minha entrega foi maior, era para ele ser de fato mais denso”, garante o autor.

Tezza começou O professor em 2010, quando escreveu a página inicial de algo que se chamaria A homenagem. Pensou que seria apenas uma novela, contudo, após retomar os trabalho práticos, já em 2012, percebeu que a história renderia um romance. Passou, então, um ano construindo sua nova obra. Acordava todos os dias da semana às 9 da manhã e escrevia até o meio dia – não consegue criar ficção durante mais do que três horas por dia, por isso deixa as tardes para textos mais leves, como crônicas. “O único esqueleto que tinha era que o personagem se levantava, tomava banho, café e saia. O resto eu fui compondo, controlando o volume de informações, montando um mosaico da memória dele, equilibrando as partes. Na minha idade, já sei selecionar, ir direto para o que tem importância na construção do protagonista, na escolha do foco. Não era assim quando tinha 30 anos, a perspectiva da vida muda”, conta.

Disso, surgiu a história de Heli seu, um professor universitário que, ao acordar no dia que receberá uma homenagem pela sua carreira acadêmica, precisa preparar um discurso para a cerimônia, mas, ao tentar escrever algo, perde-se em suas memórias. Recorda da rigidez de seu pai, da misteriosa morte da mãe, do decadente casamento e a conturbada relação com o filho. Todas essas lembranças se intermeiam com o passado do Brasil – e questões problemáticas principalmente das décadas de 1960 e 1970 – até o dia em que a história se passa, exatamente quando o Papa renúncia a seu cargo, algo que, para o autor, beira o inacreditável. “A última vez que isso aconteceu tinha sido no século 15, pô, com isso parece que tudo pode acontecer”, lembra referindo-se às renúncias de Gregório XII e Bento XVI.

As memórias de Heliseu também alcançam o relacionamento que teve com Therèze, aluna francesa residente no Brasil e que o escolhe para ser o orientador numa tese que investiga como a ambiguidade usada pelos brasileiros na língua oral pode ser transferida para a gramática. “A tese foi pensada, queria que ela ficasse no centro do livro, pois é o eixo dele. Essa ideia nasceu há dois, três anos, num papo com um ex-professor sobre o tipo de humor do brasileiro, de perceber subtendidos em tudo”, diz o escritor. “O brasileiro está sempre com o pé atrás, ouvindo a segunda parte, isso cria eventuais ruídos de comunicação com estrangeiros, que tendem a ser mais literais. Igual esse pessoal da Copa que acreditou que as coisas iriam ficar prontas, o brasileiro já sabia que não ficaria pronto mas teria o campeonato do mesmo jeito”, argumenta Tezza, que também justifica a escolha da personagem. “Para perceber algo assim, teria que ser um estrangeiro, por isso que surge a Therèze, uma francesa judia. O Heliseu não é o professor adequado para quela tese, mas ele, com o casamento desandando, apaixona-se pela jovem e pela sua proposta. Minha preocupação foi não transformar isso numa coisa chata, especializada demais”.

O professor vem sendo apontado pela crítica como um romance proustiano, principalmente por se passar majoritariamente no imaginário de seu protagonista e se concentrar em um espaço de tempo físico bastante breve. Nele, Tezza volta a utilizar algo que já pode ser considerado uma de suas marcas: o narrador duplo, um com onisciência limitada, relativa apenas ao protagonista, e outro sendo o próprio personagem. “As passagens do ponto de vista são muito comuns em nosso dia a dia. Fazemos isso quando falamos e eu tenho muita influência da oralidade. Às vezes a língua escrita tem dificuldade em lidar com essas rupturas, mas o romance é alguém que fala, mais do que alguém que escreve”. O recurso, utilizado pelo escritor desde Breve espaço entre cor e sombra, de 1998, também foi usado em O filho eterno, no qual o artifício se fez essencial para que a história pudesse ser contada.

Como Heliseu, Cristovão Tezza também teve uma carreira de professor universitário, que durou mais de duas décadas. Foi exatamente o sucesso de “O filho eterno”, um romance com toques autobiográficos sobre a aceitação de um pai a seu filho com síndrome de Down, que possibilitou que deixasse a sala de aula para se dedicar exclusivamente à criação ficcional.

Matéria publicada originalmente no Uol.

Por Rodrigo Casarin

Foto: Victor Daguano

Foto: Victor Daguano

A história já é conhecida: uma garota de programa faz sucesso com um blog e resolve transformar as suas experiências na cama em um livro. Se outrora quem assumia esse papel de prostituta-escritora era Bruna Surfistinha, agora é a vez de Lola Benvenutti, que acaba de lançar O prazer é todo nosso, destinado “a todos que desejam gozar a vida longe de tabus e preconceitos e querem ser livres para descobrir seu corpo e suas inúmeras possibilidades de prazer” – é o que diz a contracapa.

Entretanto, a trajetória de Lola difere de sua antecessora. Aos 22 anos, é formada em Letras pela Universidade Federal de São Carlos. Foi fazer o curso pela paixão que tem por literatura, por autores como Dostoiévski e Nelson Rodrigues. Na faculdade, descobriu também gostar de africanos como Ondjaki e Mia Couto. “Gosto muito da poesia que há na prosa deles, me toca muito, são bastante viscerais. Acho que o Mia Couto tem muitas similaridades com o Guimarães Rosa”, compara. São dois escritores que fizeram livros que lhe marcaram, aliás: Terra sonâmbula, de Mia, e Grande sertão: veredas, de Rosa, que remete-lhe à mudança do interior de São Paulo para a capital paulista.

Uma frase de Rosa, inclusive, virou uma das diversas tatuagens que colorem o seu corpo: “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. Tatuou ainda outras duas frases cunhadas por escritores: “Dizer insistentemente que fazia sol lá fora”, de Manuel bandeira, e “Quem não sente no corpo a alma expandir-se até desbrochar em puro grito de orgasmo, num instante infinito?”, de Carlos Drummond de Andrade.

No dia a dia faz o possível para ter algum tempo para leitura. Atualmente, divide-se entre A vida como ela é, de Nelson Rodrigues, Fanny Hill ou memórias de uma mulher de prazer, de John Cleland, e Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, outro de Mia Couto. Mas não é sempre que consegue arrumar uma hora livre em sua agenda. Seu cotidiano é corrido. Além de atender os clientes, gosta de responder pessoalmente todos os mais de cem e-mails que recebe diariamente. “Tenho que dar atenção para as pessoas que me procuram, não é só passar um preço, então é o tipo de coisa que não dá para delegar”.

Esse envolvimento com a literatura lhe trouxe algumas perturbações na hora de escrever O prazer é todo nosso. De cara, revela estar preocupada com a crítica, com a maneira que os leitores receberão a obra, diz há um peso maior quando algo é escrito por uma pessoa formada em Letras.

O resultado do trabalho é uma série de histórias que se passam na cama – ou em lugares mais improváveis, como um carro em movimento, com o parceiro ao volante –, pontuadas por um tom que mistura o professoral e uma espécie de autoajuda sexual. “Quis levar um olhar intenso para as relações, que vai além do sexo. Passei um ano escrevendo, procurei problematizar questões da sexualidade, refletir sobre o ato em si, sobre o prazer. É importante fazer com que as pessoas se permitam viver novas experiências”, explica.

O prazer é todo nosso

Lola diz que não há uma linha de ficção em seu livro, que realmente viveu todas as histórias da maneira que estão contadas. São passagens como um swing com 15 casais em uma festa fechada em Ribeirão Preto, situação que compara ao filme De olhos bem fechados, de Stanley Kubrick, com uma clássica cena de orgia. “Quando estavam me levando para aquele lugar, completamente isolado, misterioso, eu realmente achei que ia morrer”. Há outros momentos inusitados, como usar um dos brinquedos sexuais que leva na bolsa para se masturbar em meio a um congestionamento em São Paulo ou ser contratada para satisfazer cinco amigas, cujos maridos viajavam a trabalho, em uma “noite das mulheres”. Também situações mais leves, como quando ajuda um casal a retomar o tesão mútuo, auxilia uma mulher a gozar pela primeira vez na vida ou orienta um rapaz com clara inclinação homossexual a se permitir experiências com pessoas do mesmo sexo.

Entretanto, algumas passagens ficaram de fora por serem “pesadas demais”: a vez que atendeu um cego com fístula no braço e mal hálito, por exemplo, ou as diversas vezes em que clientes não apenas consumiram drogas em sua presença, mas insistiram para que ela também o fizesse – o que sempre recusou, garante.

O prazer é todo nosso apresenta referências a outras obras literárias, como um capítulo chamado História do olho, do francês Georges Bataille, um dos grandes clássicos da literatura erótica, gênero que muito agrada Lola. Da vertente, destaca Hilda Hilst, Anais Nin, Henry Miller e um quadrinista contemporâneo, Chester Brown, canadense autor de Pagando por sexo. “É uma HQ que traz uma problematização, apresenta o ponto de vista masculino sobre a relação com prostitutas e é uma história situada nos dias de hoje”.

Sobre os soft porns, diz ver certa importância neles por, eventualmente, fazerem com que pessoas descubram o prazer da leitura e se permitam algumas inovações na vida sexual, contudo, as qualidades acabam por aí. “Tecnicamente, leio e penso no Milton Hatoum, por exemplo, que constrói um labirinto que não é possível ser desvendado sem que se preste muita atenção no que está lendo. Nesse aspecto, esses pornôs que estão na moda não são tão bons”.

No campo profissional, Lola relata que títulos como Cinquenta tons de cinza pouco lhe impactaram; mesmo antes do sucesso da publicação, já tinha um perfil de dominadora e costumava praticar sadomasoquismo com homens. “Além disso, vejo nos livros mais algo onírico, da mulher ser tratada como uma princesa na vida cotidiana e ser dominada na cama”.

Lola e suas colegas

A influência da literatura também está no nome de trabalho da garota, que na verdade se chama Gabriela Natalia Silva. Enquanto o Benvenutti remete à “bem-vindo” em italiano, o Lola é uma homenagem a Lolita, a clássica ninfeta de Vladimir Nabokov. Ela se vê, de certa forma, nesse papel, como uma menina sensual que mexe com a cabeça de homens mais velhos.

Prostitui-se desde os 17 anos e, apesar das pretensões com a carreira literária e da vontade de fazer um mestrado (quer estudar o sexo dentro da antropologia ou das ciências sociais para ir mais a fundo na parte teórica do assunto que domina na prática), não tem planos para deixar a profissão tão cedo. Orgulha-se do que faz. Diz que, mais do que prazer, tem o importante papel de dar atenção, ouvir, valorizar a compreender muitas pessoas que não encontram isso em outras relações.

Apesar de passar por momentos às vezes desagradáveis – certa vez precisou se segurar para não mandar o cliente “tomar no cu” depois de ouvir que poderia “ter mais peitinho” -, diz-se sortuda de trabalhar com tantas pessoas legais. Quando perguntada como prefere ser tratada, opta por “puta mesmo, acho mais original, causa um choque nas pessoas, é mais divertido, mais bem resolvido”. É aí que invoca Gabriela Leite – outra puta-escritora, autora de Filha, mãe, avó e puta, e ferrenha ativista na busca pelos direitos das profissionais do sexo, que faleceu em 2013 -, a quem prefere ser comparada, tanto que dedica o livro à ex-colega.

Contudo, o paralelo com Bruna Surfistinha e seu O doce veneno do escorpião é inevitável. É possível afirmar que Bruna é mais detalhista em seus relatos, vai mais a fundo nos pormenores carnais, enquanto Lola se preocupa em refletir sobre cada cena presente em seu livro. É como se a primeira não ligasse em assumir o lado pornográfico da obra, enquanto a segunda procurasse ficar no campo erótico, menos vulgar. Outra diferença: O doce veneno do escorpião traz uma narrativa única, enquanto O prazer é todo nosso pode ser encarado como uma sequência de contos, com alguma lógica e continuidade entre si, mas que também se sustentam se lidos de maneira independente. Em comum, ambas assumem que, além do sexo, precisam fazer as vezes de analista de diversos clientes.

Escrevendo O prazer é todo nosso – que sai com uma aposta alta, em tiragem de 10 mil exemplares – Lola conseguiu juntar as duas coisas que mais gosta na vida: o sexo e a literatura. Espera que o livro seja um divisor de águas em sua carreira, apesar de não fazer ideia de como ele irá repercutir e para onde vai lhe levar – só assegura que não será para longe dos programas.

Matéria originalmente publicada no Uol.

Por Rodrigo Casarin

Meus desacontecimentos“Muito antes de perder minha fé, eu vagava pela casa quando me deparei com ela. Um filhote de barata. (Para mim não havia dúvida de que era uma menina.) Ficamos uma diante da outra, como num duelo de filme de caubói a que eu assistia com meus irmãos. Esmagueia-a com a minha havaiana. Era a minha primeira morte. De imediato, me identifiquei com o cadáver. Chorei. Ali, no corredor da casa, com o chinelo na mão, o corpinho colado na sola em insuportável desvalia”.

A partir do assassinato do animal, a criança Eliane Brum resolveu escrever, com sua letra péssima, A autobiografia de uma barata. Ao longo da narrativa, finalmente entendeu aqueles bichos asquerosos, que voavam em sua cabeça até mesmo enquanto rezava justamente para que nunca mais aparecessem. Percebeu que era legítimo, por exemplo, que entrassem nos potes de bolacha, afinal, precisavam de comida para viver.

Compaixão e empatia são dois traços da personalidade da escritora evidentes em seus textos, sejam eles jornalísticos ou ficcionais. Essas características, como é possível perceber, vêm desde a infância de Eliane. Para ela, sempre foi natural se colocar no lugar dos outros – sejam eles pessoas ou bichos, pelo visto. Acostumada a mergulhar na vida de seus personagens para transformá-las em narrativas, há pouco Eliane fez um movimento diferente. Imergiu em si mesma para escrever Meus desacontecimentos – a história da minha vida com as palavras, que resgata as memórias de sua relação com a arte escrita em uma espécie de autoperfil de formação literária.

O caminho até si mesma

Para realizar as reportagens que a consagraram, Eliane sempre precisou desabitar-se. Despe-se de preconceitos e julgamentos e se abre para o universo dos outros. Apenas dessa forma pode, de alguma maneira, escutar de verdade, buscar compreender qualquer tipo de gente, até os escorraçados pela sociedade, como um pedófilo. “Isso vale para qualquer experiência humana, preciso escutar mesmo, com todos os sentidos”, diz. O caminho de volta desse processo é sempre muito doloroso. Às vezes, após uma apuração, semanas são necessárias para que a escritora se readeque ao seu mundo, que parece ser tão igual ao que era antes, mas com a protagonista dele profundamente modificada por aquilo que vivenciou.

Em seus trabalhos ficcionais – como o romance Uma duas e o conto “Raimundo, o dono da bola”, presente na coletânea Entre quatro linhas – a escritora experimentou algo diferente. Surpreendeu-se ao se deixar possuir pelos personagens que a habitam. “Gosto de livros de terror e descobri que não há nada mais aterrorizante do que ser possuída pelos outros de si mesmo”, conta.

Já para Meus desacontecimentos, diz que foi tudo diferente, que sente dificuldade em definir a experiência. Como repórter, sempre se interessou por descobrir como cada indivíduo cria a sua própria vida, em geral com pouquíssimos elementos. “Nesse sentido, a vida de cada um de nós é nossa primeira ficção, que vai mudando ao longo do tempo”. Então, voltou-se para si e procurou entender como criou a sua vida com as palavras, levando a mulher Eliane para explorar as lembranças e tentar entender a menina que uma dia foi. A escritora encarou a empreitada com lucidez do cenário nebuloso que encontraria. “Lembranças não são fatos, mas as verdades que constituem aquele que lembra”, escreve em determinado momento da obra.

Para exemplificar essa busca pela ficção que cada um cria para sua própria vida, Eliane retoma um dos seus textos mais emblemáticos (ao menos para mim): “O gaúcho do cavalo-de-pau”, do excelente A vida que ninguém vê, livro que traz diversos perfis que escreveu para o jornal Zero Hora, de Porto Alegre. É a história de Vanderlei, homem que todos – até as vacas! – dizem ser louco porque faz de um cabo de vassoura o seu cavalo. Um trecho do diálogo que segue a matéria é essencial:

– Você sabe que isso é uma fantasia, que o cavalo é um cabo de vassoura. E mesmo assim galopa num cavalo-de-pau. Por quê?

– Sem invenção a vida fica sem graça. Fica tudo muito difícil.

Tuchè!

“O Vanderlei me ensinou que temos o cabo de vassoura e queremos o cavalo, ele mostra isso com radicalidade. Há uma beleza muito pungente na capacidade humana de criar sentido e inventar uma vida. Acho que o real não existe, só existe uma criação de sentido, que é importante nunca confundir com a mentira. A maior beleza humana é essa capacidade de inventar uma vida. As memórias são as verdades daquele que lembra, fragmentos de tempo que nos constitui, não fatos. Se os sentidos da vida fossem imutáveis, estávamos mortos, seríamos mortos-vivos. A memória, nesse livro, está em movimento, não está dada. A angustia fundamental da gente que escreve é que as palavras nunca dão conta de contar a vida, são sempre insuficientes”, define Eliane, que precisou reencontrar o sentido de sua vida.

A boliviana de 11 anos

Não que esteja acostumada a lidar com situações pesadas e delicadas, mas Eliane já passou por experiências bastante fortes, como ouvir as vítimas de incestos, abusadores sexuais, assassinos ou acompanhar os últimos 115 dias de vida de uma mulher para escrever justamente sobre o fim daquela existência – dessa, demorou exatamente um ano para sair do luto. Contudo, foi na Bolívia, em 2011, que o momento mais extremo de sua carreira aconteceu e está retratado na abertura da reportagem “Os vampiros da realidade só matam os pobres”, do livro Dignidade, que reúne textos de escritores sobre o trabalho da organização Médicos Sem Fronteiras.

– Por favor, não me deixe morrer.

A menina me agarra pelos dois braços. Tem apenas 11 anos. Seus olhos, porém, são tão velhos quanto os meus. Ou mais. Sonia é o seu nome. Naquele instante em que ela me pede para mudar o mundo, eu afundo na impotência. ‘Eu vou contar a sua história’, respondo. Mas eu e ela conhecemos o mundo o suficiente para saber que dificilmente ela será salva. Sonia e eu sabemos que o mundo não se importa, nem com ela, nem com os seus. Que o mundo nem sequer a vê.

O momento traumático desencadeou em Eliane uma crise com as palavras no papel. Não conseguia mais escrever. Precisava reencontrar o sentido de seu ofício para seguir adiante. Então, fez o automergulho para entender porque a escrita é tão importante para si. Por isso que Meus desacontecimentos não se limita a passagens peculiares – Eliane dormindo até os oito anos num berço, com as pernas encolhidas, porque a família não tinha dinheiro para comprar uma cama; tentando colocar fogo na prefeitura da cidade onde morava; a iniciação da vida sexual pelos livros da biblioteca de casa; as escapadas com a avó para tomarem cachaça escondidas… – e traz momentos de força vital, como “Às vezes me perguntam o que aconteceria comigo se não existisse a palavra escrita. Eu respondo: teria me assassinado, consciente ou não de que estava me matando. É uma resposta dramática, e eu sou dramática” ou “Cada vez mais, só era possível levantar da cama pela manhã porque eu podia estar em outro lugar e ser uma outra. Não havia eu, só alteridade. Se havia um eu, era este, o da menina que fabulava”. E dessa imersão, traz algo que muito explica a repórter e escritora que é: “Eu sempre fui uma criança que olhava e olhava e olhava. A melhor forma de me descrever nessa primeira infância era como dois olhos castanhos observando o mundo de um canto. Não espiando, mas olhando como se pudesse abarcá-lo inteiro. Acho que até hoje só mudei de tamanho”.

Enquanto escrevia, enquanto procurava retomar o significado da literatura para si, Eliane precisou enfrentar até situações inusitadas, como seguir adiante mesmo perdendo peças do teclado de seu computador. Primeiro foram o “E”, o “A” e o “O”, depois, o “S” e o “C”. Sorte que a escritora apenas se atentou para a irônica relação simbólica das letras que se perdiam à sua frente, mas não encarou o fato como uma mensagem subliminar para que deixasse as palavras de lado. Caso contrário, não teríamos frases excelentes como “Quando era criança, eu quase morria muito” e muito menos a obra em si.

A verdade daquela que lembra

Meus desacontecimentos é um livro breve – realmente se atém à relação da escritora com a palavra, a protagonista da obra na visão de Eliane, dispensando outros tipos de memórias –, feito por capítulos que formam um conjunto coeso, mas também se sustentam sozinhos. “Eu não penso muito quando escrevo. A forma vem de um processo interno. Escrevo como uma leitora, mesmo nas reportagens, nunca sei como vou terminar um texto, e essa é a graça”, explica.

Após o olhar para si, Eliane reencontrou aquilo que é seu norte: transformar vidas em narrativas. Ao ser questionada se é isso que a faz feliz, mesmo tendo que sofrer por momentos tão delicados e dolorosos, responde. “Eu não ligo para a felicidade, que hoje é quase um imperativo de consumo. Contar histórias dá sentido para minha vida. Acredito profundamente que as narrativas são um meio de transformação para mim e para o outro. Vejo sentido em ser uma contadora de histórias. A palavra escrita é o que me permite viver, esse corpo de palavras”.

Texto publicado originalmente no suplemento literário Pernambuco.

Por Rodrigo Casarin

Gado Novo_Guille ThomaziNeste ano, em virtude da Copa do Mundo, uma turba de livros sobre futebol dominou as prateleiras. Tive contato, li parte deles e raros foram os que julguei realmente oportunos – o melhor de todos, O drible, de Sergio Rodrigues, é do ano passado. Das novidades, uma boa obra é Entre quatro linhas, coletânea de contos sobre o esporte organizada por Luiz Ruffato, que traz nomes como Ronaldo Correia de Brito, Tatiana Salem Levy, Carola Saavedra, André Sant’anna, Rogério Pereira e Cristovão Tezza, que alternam textos razoáveis com outros bons. Entretanto, no volume, um trabalho realmente se destaca: “Raimundo, o dono da bola”, de Eliane Brum.

Em seu conto, Eliane usa o futebol para ir além, mostrando a famigerada bravura e a coragem do sertanejo, mas também toda a sua fragilidade e inocência. Raimundo é um homem bruto e matuto, que nasceu e cresceu no meio da floresta e conhece o futebol somente pelo que ouve no rádio – nunca assistiu a partida alguma, portanto, o esporte acontece somente em seu imaginário, na ficção que cria com as informações que os locutores tentam transmitir, emular aquilo que o interiorano jamais viu.

As coisas mudam quando Valdir aparece em sua vida e, ao mesmo tempo que abre um ponto de contato entre Raimundo e a vida urbana ou moderna, também traz consigo os males da civilização. Utilizando o futebol – que passa efetivamente para o plano real, com traves e bola -, Valdir ganha a amizade do outrora desconfiado e fechado Raimundo e consegue arquitetar a sua ruína. O conto é de uma violência – não apenas física, mas moral, emocional e contra a natureza, inclusive – extrema, é daqueles que marcam e perturbam o leitor. O jogo acaba sem gol, sem apito final, mas com uma selvagem e destrutiva invasão de campo, digamos.

Numa conversa, Eliane me disse que algumas pessoas se queixaram que o texto era muito grande para um conto. Quanta mediocridade! Primeiro porque “Raimundo, o dono da bola”, com suas 31 páginas, se não é exatamente pequeno, também não é nenhum Guerra e paz do gênero. Segundo, porque isso pouco importa. A qualidade do trabalho não está condicionada a seu tamanho. Essa lógica, na ordem reversa, poderia colocar em cheque, por exemplo, o bom Gado novo, de Guille Thomazi, uma novela de 50 páginas – o livro tem 68, mas descontei as que não trazem exatamente o trabalho literário do autor. Será que alguém se queixou com Thomazi que seu livro é muito pequeno? Espero que não.

Violência do campo

Gado novo traz outra história de extrema violência que se passa no campo. Eu nasci em Campinas e cresci em São Paulo – digo que minha mãe foi me parir lá apenas para que os outros pudessem fazer piadas relacionadas à cidade -, costumava passar alguns dias de férias em Lins, no interior paulista, mas jamais estive efetivamente no campo, em uma daqueles longos vazios de fazendas gigantescas, cujos vizinhos, às vezes, estão separados por quilômetros de distância e cada endereço, de alguma forma, acaba sendo uma cidade em si mesmo. Durante muito tempo, a imagem que tive desses lugares é aquela do censo comum para um homem médio da cidade grande (ou seja, formado seguindo uma longa lista de clichês): são terras onde se vive em contato direto com a natureza, o que traz paz e tranquilidade. Lá, as pessoas plantam e criam o que comem, precisam apoiar-se e proteger-se mutuamente, o que gera uma boa relação social, que, graças às distâncias, acaba não sendo banalizada pela convivência diária. São pessoas corteses, sempre preparadas para abrir as portas de casa e receber visitantes, mesmo que sejam desconhecidos. (O clichê também tem uma variação para as cidades interioranas, segue a linha do “quero mudar pra lá porque a vida é mais tranquila, menos violência, trabalhar perto de casa, num lugar onde as pessoas se respeitam e blá blá blá”).

Entretanto, ao conversar com pessoas desses lugares e ao ler ou assistir aos relatos de como é realmente a vida nessas enormes e pouco habitadas fazendas, percebo que muitas vezes esse ideal só existe mesmo na imaginação. Se no conto de Eliane é o homem da cidade que leva a desgraça para o isolado homem do campo, na novela de Thomazi o homem do campo, já influenciado pela vida da cidade, é o próprio responsável pelas suas mazelas.

A história começa com o narrador, sempre em primeira pessoa, procurando por um norte. “O dia nasceu torto. A menina nasceu sem futuro. Descobri como se faz mal ao mundo”. As frases são bastante breves, como se o personagem, cansado e confuso, buscasse fôlego para continuar. A tragédia está feita e ele gostaria de remediá-la, entretanto, há atitudes que são impossíveis de se contornar.

Com o passar dos capítulos, o foco da narrativa vai mudando e o ponto de vista alternando de personagem – passa pela avó da menina, o padrasto, o peão, um forasteiro – e Thomazi constrói uma intricada teia, às vezes confusa, como é mesmo a vida. Cabe ao leitor situar-se dentro da obra e procurar, por meio dos relatos, dar corpo à sua própria versão da macro-história proposta – impossível ler de fato Gado novo sendo um leitor passivo. Conforme o foco muda, o texto, o ritmo, o vocabulário, também mudam, e de maneira precisa, mostrando que o jovem escritor – que nasceu em 1986 – já em seu livro de estreia apresenta bom domínio das técnicas narrativas.

Animais, humanos, humanos animais

Uma outra característica da novela de Thomazi que me chamou a atenção é a batalha entre diferentes animais pela sobrevivência. Quando o homem se depara com o bicho, a forma como se matam bois, por exemplo, pode impressionar algum urbanóide como eu, acostumado apenas com a carne já fria, pronta para ir à churrasqueira. “Paraguay não tem dó nem mão mole. Empurra a faca no peito do bicho, no espaço entre os ossos para que dê no coração” – escreve e me lembra que cresci ouvindo o quanto é cruel quando se erra essa facada no porco, que solta um berro que causa condolência até mesmo nos mais acostumados em sacrificar os futuros alimentos. Em seguida, “cortar a carne viva é uma das funções com a qual ocasionalmente nos deparamos, e o fazemos com naturalidade”, registra uma das mulheres da obra.

Entretanto, é a violência entre dois bichos da mesma espécie que merece maior destaque: a do homem contra o homem, essa tão bem conhecida por qualquer um, seja a pessoa da cidade, do campo, da praia, da floresta… “O homem meio fora de si podia decidir passar fogo em mim era ali mesmo”, pensa um dos personagens. E poderia mesmo, sempre pode. Passar fogo, espancar, vilipendiar… Sempre é preciso que um animal humano sobreviva a outro animal humano. A menina não conseguiu resistir e sua morte foi terrível: marcas de arma branca, semidespida, roupa íntima arrancada, saia rasgada, mordidas no pescoço e nos seios miúdos, falta de parte do lábio inferior, perfurações no abdômen, olhos abertos…

Quando o homem perde para o homem. Raimundo perdeu o seu lugar e Isabel jamais chegará.

Texto publicado originalmente no jornal literário Rascunho.

Por Alberto Nannini

cuba_minha_revolucao_capaNa resenha anterior, comentei que havia lido duas obras sobre Cuba: “A casa dos náufragos”, de Guillermo Rosales, e “Cuba – Minha revolução”, de Inverna Lockpez e Dean Haspiel. Pretendia naquela ocasião utilizá-las para falar sobre o controverso regime cubano, mas, ante a riqueza do livro de Rosales, a resenha foi toda baseada nele, e falou sobre a loucura.

Agora, retomo a proposta original, resenhando a segunda obra e utilizando ambas para tocar no assunto bem espinhoso: o regime imposto por Fidel Castro.

Cuba – Minha revolução

A sinopse da obra, uma graphic novel, diz:

Quando Fidel Castro toma a cidade de Havana no despertar do ano de 1959, Sonya – então com 17 anos – acredita nas promessas da Revolução Cubana. Estudante de medicina que sonha em virar pintora, ela junta-se à milícia e acaba presa entre o idealismo e a ideologia. Como voluntária na Baía dos Porcos, ela se choca ao encontrar um antigo amor do outro lado do campo de batalha, e mais ainda quando é presa e torturada pelos seus próprios camaradas. Com cicatrizes físicas e emocionais, Sonya tenta encontrar satisfação na arte. Mas, quando se dá conta de que nenhuma de suas iniciativas – seja com uma arma ou um pincel na mão – se enquadra no novo regime, ela precisa fazer escolhas entre sua família, seu amor e seu amado país. Ilustrada pelo artista indicado ao prêmio Eisner, Dean Haspiel (The Alcoholic), esta história é baseada em fatos reais.”

Publicada pela Panini Books, é caprichada: capa dura, papel couchê, e colorida em quatro cores: branco, preto, e tons de vermelho e cinza. Os desenhos são excelentes, e comunicam muito além do texto, como toda boa obra de quadrinhos: enquanto a narradora divaga ou recorda, as ações desenhadas podem mostrar outras ações.

Aliás, um parênteses: imagino que leitores deste blog não tenham preconceito com quadrinhos – literatura da melhor qualidade vem nesta forma, como provam os livros Fun Home, Maus, Escalpo e diversos outros. Mas, caso haja em você alguma resistência, este livro é um ótimo remédio para quebrá-la: uma história fechada (em volume único), interessante, perfeitamente equilibrada e muito incrementada pelo meio escolhido para contá-la.

Voltando, leia e embarque na vida de Sonya: testemunhe o que é viver a gênese de uma revolução, passar por mudanças radicais e veja o quanto isso vai afeta-la e a todos que a cercam.

Engajada e prisioneira

Idealista, a personagem rememora seus 17 anos, quando Cuba ainda estava sob o jugo de Fulgêncio. A mãe dela, muito bonita, é fútil; o padrasto, um sujeito prático; e o pai, russo e mais distante, médico.

KONICA MINOLTA DIGITAL CAMERASonya não se conforma em apenas assistir a revolução iminente. Quando o carismático Fidel Castro sobe ao poder e profere seu 1º discurso em rede nacional, em 8 de janeiro de 1959, ela se decide: vai se alistar na revolução. Suas ambições em ser uma artista ficarão em segundo plano – se tornará médica, para melhor servir à causa.

Como voz de fundo, vão aparecendo as consequências do novo regime: o comércio do padrasto vai à falência, e depois, todos os outros comércios são fechados; os revolucionários passam por treinamento de guerrilha, e médicos, como ela, não podem atender prisioneiros; muitos fogem do país, e o estado de guerra prossegue.

Há também uma história de amor, perdida e reencontrada, como conta a sinopse. O inferno de Sonya está só começando. Acusada de ter amigos na agência americana CIA, é levada prisioneira, e torturada sistematicamente para confessar. Mas isso ainda não quebra sua confiança na revolução.

Quando é solta, sua irmã por parte de mãe nasceu, mas não há muita esperança. O novo governo vem se mostrando tão ruim ou pior que o anterior. Apesar de uma tintura de normalidade, que envolve um casamento, ela se divide entre continuar fiel à causa ou tentar se safar – este é o dilema que vai dar o tom da história.

Quase biografia

Embora a autora tenha utilizado uma personagem, ela conta que o roteiro foi baseado na sua vida – veja o agradecimento: “Queria agradecer ao Dean Haspiel por ter me encorajado a contar minha história”. Ainda que caiba interpretar a qual história ela se refere, esta frase, uma vez entendida dentro do contexto do livro e após algumas pesquisas, embasa essa premissa.

O mérito literário é significativo: trata-se de uma leitura fluida, apesar de contar um drama com passagens pesadas. A construção da narrativa com tintas autobiográficas tem o ritmo daqueles filmes em que o personagem mais velho conta sua história, e as passagens da sua juventude o retratam exatamente como era – no caso de Sonya, a voluntária que podia estapear alguém que contestasse o regime, ou que brigaria com quem mais ama pela revolução – e, conforme passa o tempo, retrata suas mudanças e amadurecimento.

Aliás, da mesma maneira que o livro de Guillermo Rosales, não vejo como contar uma história como esta sem muito conhecimento de causa. Ainda que não se possa determinar o quanto dela foi inventado, uma vez que a autora e a personagem são nativas de Cuba, exiladas, ex-revolucionárias, ex-médicas e artistas, parece suficiente para admitir como algo que vai além do “baseado em fatos reais”.

Talvez coubesse alguma precaução contra a amargura dos desiludidos, que, eventualmente, podem retratar seus algozes com piores tintas e características; contudo, a autora, por meio de sua personagem e alter ego, não perde tempo demonizando-os – ela foca mais sua vida e experiências, dentre as quais a revolução e seus agentes são ingredientes. De qualquer maneira, o retrato que ela dá daquele país é condizente com outras narrativas, inclusive a do já citado Guillermo Rosales, em “A casa dos Náufragos”.

Até aqui, já é possível recomendar a leitura como um drama digno de ser lido, e que ainda vai ensinar coisas sobre a ilha que só quem lá viveu saberia. Partindo disto, então, é possível aprofundar a discussão: o que há em Cuba?

Marcando posição pela liberdade

Humildemente, preciso ressaltar a falta de alcance desta resenha para retratar algo tão complexo como um dos regimes mais controversos da história recente. Mas, como todos, eu tinha alguma opinião pré-estabelecida sobre isso, e li livros (selecionados?) que a reforçou em alguns sentidos.

A virulência dos atacantes e dos defensores de Cuba sempre me impressionou. Os defensores apoiam o exemplo do regime, suas taxas de escolaridade, a resistência ao imperialismo americano, a excelência em ciência, esportes e medicina. Os detratores apontam os massacres de inocentes, a pobreza e falta de opções, o cerceamento de liberdade, o controle absoluto do Estado em tudo – dos bens de consumo aos itens básicos de sobrevivência.

Aqui, já posso marcar posição: acho a liberdade mais importante do que quaisquer eventuais benesses que o governo possa me oferecer. No regime onde fui criado, o Estado tem obrigação (nem sempre bem cumprida) de fornecer um mínimo operacional em estrutura, e de não cercear minha liberdade.

Ainda que caibam muitos senões – de diversos tamanhos – a estes reducionismos, e haja ataques mais ou menos ruidosos à liberdade mesmo nas melhores democracias, estas sempre vão me parecer melhores que as alternativas.

Uma vez que faltam opções melhores, cumpre tentar melhorar e aperfeiçoar o que se tem (que não é pouco), e aprender com os erros que os piores regimes ensinaram.

censura_das_tiraniasReis e mares de sangue

Uma lição aprendida é: tirania de qualquer espécie é ruim, não importa como ela tenha surgido. Relativizar não cabe: trocar um tirano péssimo por um “mais bonzinho” equivale a preferir ser sequestrado por bandidos corteses aos sanguinários – óbvio, mas duas péssimas alternativas de qualquer jeito. Ao se confiar em um só homem ou em um colegiado deles com poderes extremos, necessariamente se abre mão de muitas premissas: a individualidade, a liberdade, a própria vontade de se expressar e de inovar.

O tirano é um mal em si. Já disseram que os bem-intencionados são ainda mais perigosos, porque suas ações são difusas e confundem – eles oferecem algo, e tomam outro tanto, muitas vezes sem as pessoas se darem conta.

A tirania sempre assolou e continua assolando a humanidade, com várias roupagens: monarcas, caudilhos, militares e até dinastias. Pessoas que mandam nas vidas dos outros, e que, invariavelmente, acumulam o máximo de benesses para si. A lista é vasta, e inclui algumas das piores e mais danosas personalidades de todos os tempos: Pol Pot, Hitler, Mobuto, Kadafi, os Kim norte-coreanos, Mao Tse Tung, Stalin – a contagem de seus cadáveres passa da centena de milhões. E inclui Fidel, que mandou fuzilar inimigos, e que teria vastas posses, como uma ilha particular, num país onde a propriedade privada era proibida para todos os efeitos.

Mesmo assumindo um viés utilitarista, e aceitando que os governantes em geral precisam tomar decisões difíceis, que eventualmente traga sofrimento e até mortes, os erros e pecados dos tiranos não podem ser atenuados, porque eles pensam primeiramente em si mesmos e em seus apadrinhados, e porque não medem o custo de seus caprichos.

Esta é uma diferença significativa entre os regimes despóticos e as democracias, mesmo as mal estabelecidas. É verdade que há políticos tão ruins e gananciosos quanto qualquer tirano, mas a democracia não lhes dá plenos poderes, nem permite que eles os usurpem impunemente.

Esta argumentação é feita tendo em vista o defensor ferrenho do castrismo: aquele que acha que a democracia é ruim, o capitalismo é péssimo, Fidel é um grande herói e que é pena não haver algo assim por aqui. Aliás, este opositor é um tanto bizarro: ele acredita que conhece mais deste regime do que quem o viveu na pele, e até lutou por ele, como no caso de Inverna Lockpez.

Este tal defensor ferrenho acha ter maior autoridade que nativos como Yoani Sanchez, blogueira cubana que já foi presa e vivia sobre constantes ameaças, e a chama de “vendida” (segundo eles, ela teria um conluio com a CIA, agência americana). Ou seja, ele maximiza os (muitos) erros e falhas da democracia e do capitalismo, e costuma minimizar ou desconsiderar o custo da ditadura castrista e às vezes também de outras ditaduras, conforme sua orientação ideológica.

E é aí que ele erra.

males_do_socialismoMales do socialismo…

A construção do tipo “tal coisa é péssima, veja seu (pior) exemplo/ em compensação, tal coisa é ótima, veja meu (melhor) exemplo” é tão comum que se impregna em discursos bastante variados. Ufanismo vs. “complexo-de-vira-latas”, feminismo vs. misoginia, progressos vs. tradições, nacional vs. estrangeiro. O que há em comum entre estas cismas é que as posições extremas que qualquer um dos lados adotam não resistem a um exame mais apurado.

O radicalismo sempre tende a errar pelo excesso. A crítica absoluta do regime de Fidel é mais ideológica do que pensada; mas o inverso também é válido. A defesa exagerada deste chega a ser desrespeitosa, com o tanto de medo, de mortes, torturas e exílio que ele gerou.

No final das contas, tudo vai pender para simpatias pré-definidas, cismas e valores particulares. O fiel da balança vai ser aquilo que mais vale para o argumentador.

Críticos do capitalismo pregam um mundo imaginário onde todos recebam o mesmo, e tenham as mesmas oportunidades. É um dos melhores cenários – pena que a História demonstre cabalmente que ele não consegue ser posto em prática por nenhum método ou sistema inventado até hoje.

Contra o socialismo, de maneira bastante simplista, eu me questiono: ao se recompensar a todos de maneira igual pelo o que quer que façam, não parece óbvio que logo vai se perceber que não vale a pena trabalhar muito? Já que o que se obtém não está ligado ao trabalho duro, à vontade de inovar e de criar, nem há mérito em nada que se faça, tanto faz o empenho com que se trabalha.

Se a contestação é que quem pensar nisso é trapaceiro, então precisaria haver uma “solução final” para eliminá-los, porque todas as sociedades humanas (e até algumas de animais) têm os trapaceiros – aqueles que percebem que podem ficar à custa dos outros. O que me parece é que, numa sociedade comunista, a trapaça pode se tornar contagiosa.

Talvez se argumente que o socialismo ideal constrói uma sociedade onde o papel de cada um seja respeitado, e onde todos têm a mentalidade de que, dando seu melhor, todos ganham (o que, segundo alguns especialistas, resultaria no comunismo propriamente dito). Mas esta sociedade utópica não precisa ser necessariamente socialista. O capitalismo seria muito melhor assim, embora o que realmente aconteça esteja bem distante disso, como vamos ver mais adiante.

A principal falha do socialismo cubano, o que fez virtualmente ruir o regime castrista e todas as tentativas similares, não é apenas a superioridade da economia de livre mercado, mas algo que pode fazer ruir a sociedade moderna: os gananciosos homens.

Nenhum sistema dispensa homens para dirigi-los. Até a anarquia acabaria elegendo seus “cabeças”. E é aqui que a coisa realmente fede: são muitos os carniceiros que assumem o título de soberanos. Ditadores, como o próprio Fidel, nem são o pior que existe: há déspotas mais sanguinários ainda, que não se preocupam em dar qualquer contrapartida à população, a não ser aquele mínimo que os perpetue no poder, e apenas porque reis precisam de súditos e servidores. Houve e há muitos destes na África, que apenas enriquecem roubando. E há ainda a bizarra dinastia de ditadores com poderes semi-divinos na Coreia do Norte (alvo de uma das minhas próximas resenhas).

Enfim, a ganancia dos socialistas que exercem o poder não fica nada a dever aos piores capitalistas, com o agravante que seus desvios e desmandos vitimam diretamente a população que governam. Está muito bem testemunhado no livro de Inverna Lockpes este proceder.

males_do_capitalismo…e males do capitalismo

Eu tinha uma opinião rasa de que o capitalismo e a democracia eram os dois melhores sistemas possíveis, apenas sendo necessários ajustes do tamanho ideal do Estado e de sua intervenção. Pesquisei mais, e ainda acho que, combinados, formam o melhor disponível; mas as mudanças precisam ser feitas imediatamente, ou tudo que conhecemos poderá desabar.

Indícios do caos vieram com a crise econômica mundial, que levou bancos e até países ao colapso, há seis anos. Isto demonstrou o quanto o mercado é vulnerável às suas próprias liberdades e excessos. Um cenário com a economia se liquefazendo e bancos quebrando geraria pânico, aonde populações inteiras veriam suas economias sumirem, e o resultado seria um Deus-nos-acuda. Os exemplos – como a Finlândia e a Argentina – são preocupantes. Em escala mundial, isso poderia gerar uma catástrofe sem precedentes.

Porém, este não é a única falha possível: há um “bug” no sistema capitalista, só recentemente detectado, até onde eu sei. Analistas respeitavam um cenário chamado “a curva de Kuznets”, de um economista bielorrusso, Simon Kuznets. Ela dizia, grosso modo, que num país em desenvolvimento, o gráfico da desigualdade imita a forma da letra “u” invertida (ou Curva de Gauss): de pouca desigualdade, já que todos começariam pobres, ela subiria bastante com os investimentos (cujas melhores recompensas vão para poucos); mas depois cairia de novo e se estabilizaria, conforme o progresso se instalasse.

Porém, o economista francês Thomas Piketty compilou seus estudos num livro de mais de 700 páginas, chamado “O capital no século XXI”, bastante polêmico, onde contesta a curva de Kuznets, com uma grande análise de dados estatísticos referentes às rendas de habitantes de alguns países ditos “de 1º mundo”.

Piketty percebeu que a desigualdade não se estabiliza depois da instalação do progresso, pelo simples fato que, no capitalismo como é hoje, tudo favorece que os mais ricos enriqueçam mais e num ritmo maior do que a camada mais pobre e muito mais numerosa progrida e ascenda nas classes sociais. Na verdade, a desigualdade aumenta, ainda que, na teoria, haja menos pobres – enquanto eles ascendem um pouquinho nas suas posses e independência, os ricos ficam milionários, e os multimilionários, bilionários.

Isso se dá porque o sistema econômico, como o concebemos hoje – globalizado, interligado e quase onipresente – está recompensando mais aqueles que invistam seu dinheiro fora da cadeia de produção. Especulação imobiliária, carteira de ações, heranças e ganhos de capital em cima de capital dão retorno maior que produzir e empreender, e traz menores custos.

Sem produção, o intricado modelo de mercado desanda – é como tirar uma engrenagem de uma máquina. Vão quebrando todos os sistemas interligados: empregos, capacitação, crédito. Aí, a ascensão das classes desfavorecidas fica cada vez mais difícil, e tudo recai nas costas do Estado. Se este for bem administrado, até pode suprir, por um tempo; mas, se for inchado e obsoleto – como o nosso – aí, complica.

O modelo atual não é sustentável independente da eficiência do Estado. O sistema capitalista está rumando ao colapso. A desigualdade é sentida na pele, e provoca um clima belicoso, gera exclusão e violência, que podem resultar em tragédia. Fora isso, as regras mudam para cada indivíduo, na medida em que haja mais dígitos em sua conta bancária. Ricos são imunes às leis, mandam suas fortunas para paraísos fiscais, não declaram ganhos, e enriquecem cada vez mais. Mas os cidadãos pobres e os médios – como eu e provavelmente você – pagam seu imposto até o último centavo, não tem a quem recorrer, e são esfolados de todos os lados.

Para piorar o cenário, as oportunidades não são nem nunca foram iguais. Por exemplo, o ingresso em universidades públicas. Se fosse uma corrida de 400 metros com barreiras, poderia se alegar que todos que ingressam na faculdade começarão do mesmo ponto. Mas se esquece que há os nascidos em berço de ouro que nada fizeram a não ser se preparar para esta corrida de cartas marcadas, e foram carregados até a linha de partida. Já outros, tiveram que “correr” a vida inteira, por quilômetros, entre empregos mal remunerados, educação de baixa qualidade e pouco acesso à cultura.

Se você fosse apostar nesta corrida imaginária, e visse um corredor que já vai começar a prova cansado, suado e arfando, com as mãos nos joelhos, enquanto outro está descansado, super equipado e bem preparado, apostaria em quem?

Pela falta de oportunidades, a maioria nem mesmo chega à linha de partida, para disputar a tal corrida. E o ingresso em faculdade pública é uma de muitas corridas, todas claramente desequilibradas.

O fato é que a desigualdade é um fato incontestável nas sociedades capitalistas. As sociedades socialistas parecem ter mais igualdade, mas apenas porque, fora os governantes privilegiadíssimos, todos os outros sofrem terrivelmente, de maneira parecida.

Justiça à meritocracia

Há uma particularidade nas sociedades democráticas capitalistas que sofre também com defesas e ataques extremos: a meritocracia.

Em minha opinião, é uma grande invenção. Graças a ela, existe alguma justiça no sistema. Antes dela, e mesmo hoje, onde ela não vigora, imperam sistemas de castas. As pessoas ficam condenadas a ser aquilo para o que nascem/herdam. É o caso dos intocáveis da Índia.

Contudo, ela não pode ser colocada como a “solução mágica”, nem distorcida para controle e acusação dos desfavorecidos. Isso porque, ao apontá-la como solução, utilizando como exemplo pessoas que, fora da curva, conseguiram vencer na corrida por empregos e uma vida digna, mesmo saídos da base da pirâmide social, se endossa o discurso errado de que a culpa dos milhões e milhões que não ascendem é exclusivamente deles mesmos, que não teriam estudado e batalhado o suficiente. Absurdo. Nem todos partem nas corridas da mesma linha de largada.

Também que se apontar que os critérios de medição dos méritos nem sempre são claros ou justos. Mas tenho certeza que você preferirá trabalhar em qualquer lugar onde seu esforço seja reconhecido em algum momento, e não onde você esteja condenado a ficar submisso a outros que não tem suas competências, mas somente influências ou parentesco com os poderosos.

Veja, não estou dizendo que não haja isso por aí – há sim, e bastante. Pode ser que você seja vítima da meritocracia do QI – “Quem Indica”, ou do nepotismo, que pode favorecer incompetentes. Mas o desrespeito a ideia não a enfraquece, da mesma forma que o fato de haver quem queira levar vantagem em tudo não enfraquece a honestidade. Ao contrário, a torna mais necessária. A meritocracia é uma ideia tão poderosa que, nas sociedades competitivas, quando é ignorada, traz mais prejuízo que lucro.

O grande porém é que ela não basta para balancear a situação vigente de oportunidades tão díspares. Pode corrigir um pouco as injustiças, mas são necessárias ações afirmativas parta diminuir a desigualdade – como é o caso das cotas raciais, contra as quais eu mesmo me posicionava, antes de refletir melhor.

Enfim, para atacar mesmo a desigualdade, seriam necessárias ações mais drásticas. Piketty sugeriu taxar fortemente as grandes fortunas. Há muito barulho condenando isso, o que não é de se admirar – há muitos que condenam a provisão de cerca de 0,5% do PIB brasileiro para o programa de distribuição de renda Bolsa Família, exemplo mundial e comprovadamente efetivo.

piramide_insustentavelCríticas a todos

Isto posto, e tendo, como de costume, me alongado, resumo aqui a ópera: Cuba teve o valor de tentar um novo sistema, conseguiu progressos científicos, educacionais e esportivos. “Peitou” o maior império do planeta. Mas pagou preços altos, deixando sua população à míngua (conforme relatos dos próprios habitantes), e se tornando obsoleta em muitos dos avanços que tinha conseguido. O comunismo idealizado por Karl Marx apenas inspirou o regime de Cuba, que acabou distorcido.

O capitalismo, por sua vez, reina no mundo, mas traça uma rota insustentável de enriquecimento sem limites dos que já são ricos, falta de interesse em produção e falta de uma ética que recuse lucros a qualquer custo. Ou seja: qualquer indústria ou comércio que gere bilhões vai pesar se compensam os riscos; se os dividendos forem fartos, não há limites para o que possa virar comércio: tráfico de pessoas, mão de obra análoga à escravidão, entorpecentes, armas etc. Tudo em nome de Mammom – o deus-dinheiro.

Mas enfim, os dois autores dos livros mencionados, Inverna Lockpez e Guillermo Rosalez, mostram a derrocada de Cuba, perdendo seus artistas e intelectuais justamente para seu arqui-inimigo. Claro que eles são amostra pequena, mas, só por eles, arrisco afirmar que o regime castrista é um arcaísmo. Há que se registrar também que o maior libelo do capitalismo, os EUA, começam a experimentar decadência – um bom exemplo é a cidade de Detroit, que já foi uma das maiores e mais avançadas metrópoles do mundo, e hoje, agoniza, tentando sobreviver com medidas que estimulem a reocupação de seus bairros inteiros abandonados.

Em relação ao tópico “tiranos”, afirmo, categórico: eles são sempre desprezíveis. A tirania é causa de prejuízos incomensuráveis – de vidas, de recursos, de avanços. Tiranos como o próprio Fidel tinha o poder de mandar fuzilar quem dele discordasse. Qual pessoa permaneceria sana com um poder destes na mão? Estes seres nem sempre humanos desviam recursos para si e seus apadrinhados, sem se dar conta da culpa de sangue que existe nesta atitude: toda a pessoa que morra por falta de recursos desviados (de hospitais, digamos), recai sobre quem desvia. Isso vale, lógico, para políticos.

Ainda sobre os tiranos, registro que eles não são só governantes de países ou ditadores: há deles em todos os lugares. Há os chefes tiranos, que sentem prazer em humilhar os subalternos; há até os amigos tiranos, que não admitem serem contrariados e não aceitam brincadeiras, embora a todos contestem e tirem sarro; enfim, pode existir tirania onde quer que haja uma relação de poder.

O detalhe é que toda relação humana é uma relação de poder. Em casamentos, em família, até de pais com filhos, sendo que alguns defendem que as crianças e jovens (e nem tão jovens) de hoje tiranizam seus pais e responsáveis, que acabam reféns de seus caprichos e vontades, como um fardo eterno.

O que precisa ser feito

Voltando à política, ditaduras, que pressupõem tirania (de um ou vários), nunca são uma boa escolha. A democracia tem defeitos evidentes, inclusive abriga tiranos muito poderosos, sejam pessoas ou instituições, como políticos, a polícia e outros. Verdade. Mas há liberdades na democracia que simplesmente não existem em outros sistemas. Isso é um fato. Se há desrespeitos a estas liberdades, e por mais reprimidos que sejam alguns direitos, como o de livre manifestação, ainda é possível articular uma resistência e lutar por mudanças – algo bem difícil de fazer quando se está vendado num paredão de fuzilamento, ou escravizado num campo de trabalho forçado ou ainda, silenciado pelo medo ou mesmo “sumido” da face da terra.

Se foram apontados defeitos e criticados os principais macrorregimes econômicos, é porque, mesmo a um leigo, pareceram evidentes suas falhas. Contudo, prefiro tomar a posição e valorizar a democracia – o menos pior dos regimes – a apenas criticar sem nada propor. A desigualdade pode e precisa ser combatida, com ações afirmativas de inclusão, mesmo que pareçam paliativas ou até desproporcionais, como, por exemplo, cotas raciais e assistência do Estado para redistribuição de bens. Elas visam corrigir distorções e, de maneira secundária, mudar a mentalidade segregacionista em vários níveis. Estas medidas só parecem erradas porque há pouco interesse real em mudanças significativas, e porque a correção de erros radicais pode precisar ser radical, ao menos de início.

Assim como os seres vivos, sistemas complexos visam a autopreservação. O capitalismo está em rota de catástrofe, e quando uma sociedade perde o balanço de estabilidade que a mantém, ou há uma correção, ou há a extinção. Os exemplos são inúmeros. Não se pode perder de vista que ele já foi uma correção a outros sistemas mais injustos ainda – e que possibilitou a criação de riqueza e progressos em vários níveis para centenas de milhões. Mas também não se pode perder de vista que hoje, muitos acham que o capitalismo é apenas servir a outro tirano – o lucro. Trocar “seis por meia dúzia” não vai funcionar.

O que deveria ser viável é que todos percebessem que o capitalismo predatório acabará com tudo – com todos os recursos ambientais e humanos, apenas para que poucos enriqueçam além da capacidade de gastar o dinheiro e muito, mas muito além da necessidade para uma vida confortável, produtiva e feliz.

Algumas iniciativas vêm surgindo, tímidas. Empresas preocupadas com os impactos ecológicos (além das obrigações por lei). Comprometidas em dar contrapartes sociais, revertidas á todos, e não apenas aos clientes. Gestão mais humana. Não buscando apenas mais lucro.

Então, um capitalismo mais responsável é possível. Sei que parece conversa de Nova Era. Utopia. Ingenuidade. E é mesmo. Mas é absolutamente necessário também. E urgente.

Claro que sempre haverá sujeitos gananciosos, que querem ser milionários. Ainda poderão sê-los, mas não a qualquer custo – especialmente de se manter miseráveis, ignorantes, dependentes e condenados a subsistência dois terços da população mundial, enquanto cerca de 1% concentra metade ou mais de todas as riquezas. Isso vai gerar revoluções sangrentas, que não ficarão restritas a uma ilha.

praca_tianamenTiranomaquia’

Titanomaquia, da mitologia grega, foi o embate dos titãs contra os deuses do Olimpo, que venceram e governavam tudo. A “tiranomaquia”, minha paráfrase, é o embate dos tiranos contra o resto do mundo. Tudo o que tiraniza o homem deve ser combatido, sob pena de se escravizar, disfarçadamente (ou não), a maioria das pessoas. Todos os sistemas ditatoriais, capitalistas ou não, estão inclusos; o que dirá então dos déspotas clássicos. Nós, o resto do mundo, precisamos ganhar. Não há mais lugar para Fidéis.

Há uma linha evolutiva – antigamente, a tirania era o governo comum, legitimado pelos regimes em voga, como a monarquia; hoje, eles são minoria, mas ainda resistentes em serem varridos para o lixo da história. Onde persistem, prejudicam os países que governam em todos os índices importantes, e são responsáveis por oceanos de sangue, sofrimento e morte. Sem contar que, onde há ditadura, não há liberdade – o pior cenário possível, em minha opinião.

E é por isso que uma má democracia é preferível a uma ótima ditadura.

Destituídos os tiranos de carne e osso, precisamos acabar com o tirano feito de cifrões. É bem mais difícil.

Por João Dutra

WhatsappNos últimos anos, novas tecnologias têm mudado de maneira evidente a forma como nos comunicamos.

Aqui no Canto, já discutimos como o Twitter pauta seus usuários a escreverem usando métricas e regras de etiqueta, comparáveis aos poetas clássicos, que adotavam diretrizes específicas em sua produção literária.

Também não é difícil constatar que o aumento do uso do Facebook parece ter aumentado proporcionalmente o uso de termos como “curtir”, “compartilhar” e “postar” em nosso dia-a-dia no mundo real.

Outro fenômeno, ao qual quero dar destaque hoje, é o das abreviações que foram inventadas, por assim dizer, na comunicação online. Em inglês, essas abreviações recebem o nome de “texting”, por conta da origem nas mensagens de texto, ou “text messages”.

Quem nunca usou o “pq” quando deveria usar “por que” ou “vc” ao invés de “você” ao conversar com um amigo na internet? Trata-se de um novo vocabulário global, criado e dominado pelos adolescentes, os principais adotantes dos meios digitais.

Vítima de muitas críticas, essa linguagem tem se intensificado com a popularização de aplicativos como o WhatsApp. Há quem diga que temos nos tornado preguiçosos economizando vogais ou mesmo perdendo o apreço pela escrita formal.

A despeito das acusações, o professor John McWhorter, Ph.D. em linguística pela Universidade de Stanford, faz uma defesa primorosa dessa nova forma de diálogo, em sua palestra intitulada espirituosamente de “Txtng is killing language. JK!!!”.

No discurso, John aponta que o novo vocabulário surgiu da necessidade de agilidade na comunicação escrita, disseminada inicialmente com as mensagens de texto via SMS. Sua massificação fez emergirem as críticas daqueles que o consideravam uma morte gradual da linguagem.

A partir daí, ele retoma diversos momentos históricos, em que o discurso falado considerado culto era aquele próximo dos discursos políticos feitos para grandes massas, repletos de termos pouco compreensíveis ao grande público, mas que atribuíam poder de persuasão e certo status superior aos que falavam.

Explica-se que, nos últimos anos, houve uma milagrosa inversão: ao invés de buscarmos falar como se escreve, passamos a escrever como se fala. As abreviações do texting têm aí seu valor: a busca pela comunicação eficaz. Num mundo que exige agilidade, os comunicadores se adaptaram e criaram uma nova linguagem.

Nesse sentido, os adolescentes, líderes na elaboração desse novo conteúdo não deveriam ser repreendidos, mas compreendidos. E, na minha opinião, exaltados, como autores de um mecanismo que facilita a comunicação.

Ainda que haja uma série de críticas necessárias a essa forma de escrita – e há realmente muitas, é preciso ressaltar –, isso não deixa de ser uma inovação. Como diz o próprio linguista, uma novidade que impressiona.

Então, da próxima vez que receber uma notificação com uma mensagem via WhatsApp perguntando “Td bem com vc?”, saiba que está vivenciando uma inovação sem precedentes. Um milagre da comunicação humana. Amém!

Por Igor Antunes Penteado

SuassunaPoucas semanas foram tão trágicas para a história da literatura quanto a que passou. Em um espaço de cinco dias, perdemos três de nossos maiores escritores: João Ubaldo Ribeiro, no dia 18, Rubem Alves, no dia 19, e Ariano Suassuna, no dia 23. Mortes que não deixarão apenas um vazio imensurável para a cultura nacional, mas, sobretudo, que projetam lenta e definitivamente o fim de uma estirpe de escritores que praticamente não temos produzido mais.

Entretanto, a discussão que quero propor aqui é outra. Ariano Suassuna, ao longo de sua vida, foi bastante marcado por uma relação estreita com a política e, em muitas oportunidades, esteve envolvido em campanhas e mandatos. Ultimamente, vinha atuando de forma que divergia do meu posicionamento, o que me levou a um questionamento: até que ponto devemos deixar os fatos da vida privada de uma pessoa influenciarem em nosso julgamento sobre a obra produzida por ela?

Embora apresentasse em várias de suas produções críticas mordazes ao coronelismo, Suassuna manteve por anos uma proximidade indigesta –para mim – com várias figuras protagonistas deste papel, infelizmente ainda tão comum e tradicional na política nordestina e nos interiores mais profundos do Brasil. A contribuição do escritor para a nossa cultura – inclusive além dos livros propriamente ditos – é, sem dúvida, inestimável, mas sua postura em diversas ocasiões sempre me foi “estranha”. E é tão difícil colocar em cheque uma figura por quem se tem tanta admiração.

Voltando à pergunta, até que ponto uma discordância pessoal deve influenciar na avaliação sobre a obra de alguém? Parece-me que, quando a questão se refere a uma conduta moral ou a uma divergência de pensamento, o mais sensato é mesmo tentar separar as coisas. Monteiro Lobato era racista – como quase todos em sua época –, mas seria bizarro ignorar toda a sua contribuição positiva em tantas outras frentes. Nelson Rodrigues, autor daquele que elegi como meu livro favorito, era um tremendo machista e reacionário, mas genial escritor e cronista, entre outros campos em que atuou.

Como esses, vários outros exemplos me vêm à cabeça. Meu poeta favorito, Vinicius de Moraes, certa vez disse que “Existem umas feias potáveis. Mas a maioria só serve mesmo para fazer sabão”. Eu deveria ignorar todo o resto do que tanto gosto em nome desta tosquice? As bobagens antissemitas do Mel Gibson desabonam seu maravilhoso Coração Valente? O pensamento retrógrado em relação às mulheres diminui o brilhante desenvolvedor do jiu-jitsu (arte que tanto admiro) que foi Hélio Gracie? Não devo nunca mais prestigiar uma peça com Marília Pêra ou Claudia Raia pelo apoio das duas atrizes à candidatura do Collor em 1989? Acho que não.

Se no campo das ideologias as coisas já são confusas, é de se imaginar que quando a conduta destoante, na verdade, é um crime, o cenário é ainda pior. Messi, quatro vezes consecutivas eleito como o melhor jogador do mundo e investigado por suspeitas de uma faraônica fraude fiscal, deve ter seu futebol menos visto e elogiado por mim? Considerado um dos maiores boxeadores de todos os tempos, Mike Tyson não bateu só nos adversários, mas espancou uma mulher. Não é possível mais admirar sua velocidade e precisão dentro dos ringues? Outros candidatos ao ostracismo por violência doméstica: James Brown, preso repetidas vezes em seus últimos anos de vida e, claro, Netinho de Paula. O ex-negritude deve cumprir para sempre essa pena “moral” mesmo tendo apresentado, após eleito vereador, vários projetos em favor das mulheres?

Mas, nesse quesito, nenhum caso é mais emblemático que o de Sean Penn. Quando ganhou o Oscar por Milk, em 2008, o ator comoveu muita gente com seu discurso pró-direitos gays. O que a maioria não lembrou é o fato de que, duas décadas antes, Sean também bateu em sua mulher, Madonna, e fazia o melhor estilo “bad-boy” canastrão e homofóbico. Qual o tamanho da pena que Sean deveria cumprir para que eu pudesse admirar seu trabalho sem peso na consciência?

E, para piorar, assim como os conflitos e julgamentos internos, os crimes também pioram. Roman Polanski, Oscar de melhor diretor por O pianista (2002), estuprou uma menina de 13 anos há quase quatro décadas, e aí? E Woody Allen, outro diretor envolvido em um escândalo sexual com uma criança, como fica? O diretor de Match point, acusado de ter molestado sexualmente sua enteada, Dylan Farrow, quando ela tinha seis anos, deveria dizer “bye bye” à minha admiração por sua obra até os dias de hoje?

Essas questões ainda me são bastante perturbadoras, mas o fato é que seres humanos cometem, sim, erros. Muitos deles. E esperar que as obras dessas pessoas paguem por isso é mais um destes erros. Descanse em paz, Ariano. Sua obra é valiosamente eterna.

Rodrigo Casarin

Claudio Tavares_ISA

Claudio Tavares_ISA

A convivência com diferentes povos indígenas, o apreço por valores humanos como, o respeito às minorias, e o fortalecimento da diversidade socioambiental são alguns dos motivos que moveram o antropólogo Beto Ricardo nesses últimos 45 anos. Um dos convidados para a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), onde irá compor a mesa “Tristes trópicos” com Eduardo Viveiros de Castro, seu colega de profissão, passou a vida profissional batalhando por causas ligadas principalmente aos índios e ao meio ambiente.

Formou-se em Ciências Sociais pela USP em 1972, idealizou e coordenou o projeto Povos Indígenas do Brasil, com atuação entre 1978 e 1992, e militou pelos direitos indígenas. É sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA), que visa propor soluções para problemas sociais e ambientais; nele, coordena o Programa Rio Negro, que atua na Bacia do Rio Negro, no noroeste da Amazônia. Também fez parte da criação da Comissão Pró-Yanomami, que defende os direitos dos índios yanomamis. Pelo seu trabalho, ainda em 1992, recebeu, nos Estados Unidos, o Prêmio Ambientalista Goldman. Já em 2011, foi eleito a Personalidade do Ano pelo Paladar, caderno gastronômico do jornal O Estado de São Paulo, pela ajuda prestada a chefs na busca por ingredientes amazônicos.

Na entrevista a seguir – concedida inicialmente para uma matéria que fiz ao Uol sobre a presença de Davi Kopenawa, escritor e xamã yanomami, na Flip -, Beto Ricardo fala sobre as questões indígenas em voga no país, os problemas pelos quais as nações marginalizadas passam e a importância dos atos simbólicos. Além disso, também conta que ainda há muito a se explorar na relação entre as florestas e a gastronomia, algo que só será possível caso haja preservação ambiental.

Rodrigo Casarin: Neste momento, como está a questão da demarcação das terras indígenas? Por que é tão importante que isso aconteça?

Beto Ricardo: A demarcação de terras indígenas está praticamente paralisada no governo Dilma, além de outros sinais de retrocesso. Há forte pressão da bancada ruralista no Congresso Nacional para transferir o reconhecimento de terras indígenas do executivo para o legislativo, incluindo a revisão de Terras já em processo de demarcação. Se isso acontecer será a pá de cal no principal direito indígena inscrito na Constituição Federal de 1988, segundo a qual é considerado direito originário e cabe ao Estado reconhecê-lo. Terras reconhecidas são a base para os demais direitos coletivos dos povos indígenas. É verdade que uma boa parte dos direitos territoriais dos povos indígenas no Brasil já está reconhecida, mas ainda há pendências importantes e pressões e ameaças nas terras demarcadas. Além do fato de que esses direitos estão desigualmente distribuídos. Nas regiões centro-oeste e norte a maior parte das terras indígenas são extensas e contínuas, reconhecidas e demarcadas depois da Constituição de 1988, mas pesam sobre essas terras o impacto das hidrelétricas, as invasões garimpeiras, o desmatamento do entorno e o aumento da vulnerabilidade ao fogo. Já nas regiões nordeste, sudeste e sul, os índios estão confinados em terras diminutas ou vivendo literalmente na beira de estradas, como é o caso de muitas comunidades do povo guarani.

RC: E quais são as questões indígenas que precisam ser tratadas com maior urgência?

BR: É preciso resolver o caso Guarani, o mais numeroso dos povos indígenas do país e desprovido de seus direitos territoriais básicos, e também a proteção dos chamados povos “isolados”. É preciso concluir as demarcações nas regiões centro-oeste e norte. Para as demais regiões do país há casos que requerem a desapropriação de terras para alargar os horizontes dos confinamentos a que estão relegados muitos povos e para viabilizar o assentamento de indígenas sem terra.

É também muito importante que o Governo Federal garanta recursos do orçamento da União, a longo prazo, para bancar os planos de gestão desses territórios, conforme prevê a PNGATI (Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas), criada pela presidente Dilma em 2012. Para as Terras Indígenas situadas no arco do desmatamento da Amazônia, serão necessárias cada vez mais ações de adaptação às mudanças climáticas. Além disso é importante a implantação de sistemas diferenciados de educação escolar, com um programa de fortalecimento das línguas indígenas e de atendimento especializado à saúde. Também seria oportuno a criação de espaços institucionais e protocolos que permitam o diálogo intercultural com os conhecimentos indígenas, relevantes para o futuro do Brasil, dos biomas brasileiros e do planeta. Nunca é demais lembrar os serviços socioambientais e climáticos prestados pelas terras indígenas. Na Amazônia, elas representam uma parte muito importante das florestas, que garantem as chuvas, a biodiversidade e as condições do clima na maior parte do continente.

RC: Na luta pelos direitos dos povos indígenas, qual a importância de momentos simbólicos, como o pequeno índio que, na abertura da Copa, levou uma faixa pedindo a demarcação de terra?

BR: Fatos positivos marcantes e registrados em imagens são cruciais, porque alimentam um capital simbólico que funciona como um estoque de compensação à minoridade demográfica (0.4% da população nacional) e política dos povos indígenas, num país imenso, preconceituoso e avassalador, com 200 milhões de habitantes. Nos últimos 40 anos, tivemos vários episódios que renderam imagens marcantes para o imaginário do Brasil e do mundo: Mário Juruna Xavante com seu gravador para registrar as promessas de políticos em Brasília; Raoni Mentuktire Kayapó dividindo o palco com Sting ou puxando a orelha do ministro (do regime militar) Mario Andreazza durante uma coletiva de imprensa; Ailton Krenak pintando o rosto de preto enquanto discursava no plenário da Câmara Federal, em sinal de protesto pela supressão do capítulo dos direitos indígenas durante a Constituinte; a presença dos Kayapó no plenário da Câmara, durante a votação da Constituição Federal; Davi Kopenawa Yanomami protestando contra o massacre do seu povo pelos garimpeiros e recebendo o rei da Noruega em sua aldeia; a advertência de Tuira que usou a lâmina de seu facão para tocar o rosto de um diretor da Eletronorte em protesto contra a construção de barragens no rio Xingu em 1989 e tantos outros. Essas imagens estão reunidas numa exposição Povos Indígenas no Brasil 1980/2013, uma iniciativa da Embaixada da Noruega e do ISA, da qual fui curador. Essa exposição estreou em Brasília no final do ano passado, já esteve em São Paulo, em Belém e desde 15 de julho está instalada ao ar livre na Ponta Negra, em Manaus, por um mês.

RC: Qual a importância, a representatividade, da questão indígena ser abordada na Flip, um dos principais eventos culturais do país, tendo inclusive a mesa “Marcados” dedicada ao tema e com participação do Davi Kopenawa, um xamã Yanomami?

BR: Eu fiquei surpreso com o espaço aberto pela Flip para este tema. Originalmente havia a expectativa de se organizar apenas uma mesa ao redor do lançamento do livro “A queda do Céu”, de coautoria do xamã Davi Kopenawa e do antropólogo Bruce Albert, uma obra de fôlego, com 800 páginas, já publicada em francês e inglês, cuja versão em português está a caminho.

Acho importante que o tema seja abordados na Flip, se possível de uma forma não apenas episódica, mas incorporando narradores e autores indígenas, como um nicho de mercado. Mas é preciso politicas públicas governamentais para fortalecer processos e produtos bem acabados, com traduções competentes das narrativas em cerca de 150 línguas.

RC: Como a cultura indígena se relaciona com a literatura?

BR: É um caso de amor sem solução. É a luta dos igarapés contra as rochas. O vigor e originalidade das culturas indígenas estão nas narrativas orais, reiterativas, performáticas, fluidas. A literatura é baseada na palavra, escrita e impressa, que o vento não leva. Dito isso, como é de conhecimento, estão disponíveis no mercado editorial muitos livros infantis e juvenis, com autores individuais – sejam indígenas ou não indígenas – baseados, ou inspirados, em mitos indígenas. Para criar Macunaíma, Mário de Andrade bebeu nos registros da mitologia dos Taurepang, Ingarikó e Macuxi, feitos pelo pesquisador Koch-Grunberg no início do século XX.

Mas há que se reconhecer que a antropologia e a linguística no Brasil nunca estiveram tão capacitadas para transitar entre as línguas indígenas específicas e algumas línguas dominantes, como o português e o espanhol. E até o francês e o inglês, como é o caso de “A queda do céu”, um trabalho de excelência, que custou a ser publicado e se transformou rapidamente num marco desse novo ambiente. Tradicionalmente os esforços da linguística para grafar e normatizar as línguas indígenas era ofício de missionários que tinham por objetivo a tradução da bíblia para a catequese e a conversão, desde os jesuítas no século XVI até as organizações missionárias evangélicas atuais.

Hoje em dia há muitos antropólogos e linguistas – inclusive indígenas – que tem bons conhecimentos das línguas indígenas contemporâneas, o que viabiliza o registro e a difusão de contribuições dos povos indígenas com outras culturas. Uma iniciativa exemplar é o Programa de Documentação de Línguas Indígenas, que inclui o Museu Nacional e o Museu do Índio, com apoio da Unesco e coordenado por Bruna Franchetto, desde 2009.

Há que se destacar alguns outros exemplos, como a série “Narradores Indígenas do Rio Negro”, da FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), com oito volumes já publicados e vários a caminho. Trata-se de um esforço editorial de mobilizar jovens adultos bilíngues, que gravam narrativas com os velhos sabedores e as transcrevem nas suas línguas de origem, posteriormente traduzidas ao português com apoio e notas de antropólogos especializados, resultando em versões atribuídas autoralmente aos narradores/clãs dos quais fazem parte. São bons exemplos os trabalhos do antropólogo Pedro Cesarino publicados em livros: “Oniska: poética do xamanismo na Amazônia” e “Quando a Terra deixou de falar: cantos da mitologia Marubo.

RC: E qual a importância, não só pela participação na Festa, de Davi Kopenawa?

BR: Davi é uma pessoa inspirada, cuja trajetória de vida o fez um homem-ponte entre mundos, na era da crise planetária, que começa a ser designada como antropoceno, uma nova época geológica, devido a transformação da espécie humana de mero agente biológico em força geofísica capaz de alterar as condições fundamentais da vida no planeta. No Brasil essa perspectiva tem pautado trabalhos recentes da filósofa Deborah Danowski e do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro.

RC: De que forma você acha que o seu trabalho contribuiu para que a presença de um xamã num evento literário fosse possível?

BR: Eu conheço Davi Kopenawa há mais de 30 anos. Fui membro da Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), depois da demarcação e homologação da Terra Yanomami em 1992, renomeada como Comissão Pró-Yanomami, e desde 2008 incorporada ao ISA (Instituto Socioambiental). Pelo ISA eu coordeno um programa na bacia do Rio Negro que inclui um termo de cooperação com a Hutukara Associação Yanomami, do qual Davi é o presidente. Apoiamos várias iniciativas do povo yanomami, entre as quais a realização de encontros de xamãs, a expansão de uma rede de comunicação por radiofonia, o intercâmbio com os yanomami da Venezuela e algumas pesquisas sobre os conhecimentos tradicionais e diálogos interculturais. Resultam desses processos algumas publicações e vídeos. Nesse contexto estamos apoiando a tradução do livro “A queda do céu”.

RC: Como você vê a relação entre os índios e o restante da sociedade brasileira?

RC: Em geral eu acho que o paradigma mudou nos últimos 40 anos. Quando começamos dar atenção a este assunto, no início dos anos 1970, os povos indígenas estavam condenados ao desaparecimento ou invisíveis, sob a retórica da ditadura militar de que a Amazônia era um vazio demográfico a ser ocupado aceleradamente em nome da soberania nacional. Na contra mão e a partir de uma rede da sociedade civil, conseguimos botar os índios no mapa, os direitos na Constituição de 1988 e avançamos com as demarcações de terras e outras iniciativas que inscreveram os povos indígenas no imaginário social e nas agendas nacionais futuras. Mas há pelo menos duas derivações desse novo paradigma, uma favorável aos povos indígenas , suas terras e direitos coletivos – com audiência especialmente entre a maioria dos brasileiros, que vivem na cidades; e outra que quer retroagir nos direitos constitucionais e frear ou reduzir os direitos indígenas, especialmente os territoriais, para liberar mais terras para o agronegócio ou obras de infraestrutura associadas. Nessa segunda vertente estão os segmentos da população brasileira que estão mais próximos geograficamente dos índios, muitas vezes atiçados por grandes interesses econômicos.

RC: Já ouvi muita gente, ao ver um índio aparecer na televisão com um celular, por exemplo, dizer: “olha lá, desde quando índio usa celular? Índio usa arco e flecha” ou algo semelhante. O que você pensa disso?

BR: É uma das formas mais perversas de preconceito, porque quer congelar as culturas indígenas, negando-lhes o direito que todas as culturas do mundo trocam processos, ideias, símbolos, comportamentos, sem que isso signifique perda de identidade. Além do mais, tal visão preconceituosa pretende deslegitimar o manejo que os povos indígenas fazem de suas identidades para obter vantagens práticas. Refiro-me, por exemplo, ao fato de indígenas que vivem em regiões fronteiriças e que possuem dupla documentação de identidade, o que lhes permite participar de processos eleitorais e de programas sociais em dois países. Por que não? Afinal, um belo dia, dona Marisa, então primeira dama, resolveu tirar passaporte italiano, incluindo os filhos, na expectativa de, eventualmente, obter vantagens derivadas da dupla nacionalidade e nem por isso deixou de ser brasileira. Tá cheio de paulistas que querem ser italianos. Se índio que usa celular deixasse de ser índio, o que dizer dos brancos que comem farinha e dormem em redes?

RC: Até aqui, utilizei “povos indígenas” e “índios” para simplificar as perguntas, mas essa simplificação é possível? Podemos, de alguma forma, tratar os indígenas como se fossem todos iguais ou cada tribo deve ser vista de maneira única?

BR: Depende das circunstâncias e do espaço disponível. Às vezes só cabe usar índios para diferenciar os nativos dos adventícios. O melhor é usar o genérico povos indígenas, terminologia amplamente reconhecida na legislação internacional e que faz jus às identidades culturais e organizações sociais específicas. Na prática cada tribo deve ser vista como singular. Claro que há semelhanças entre os povos de língua tupi e entre os de língua gê, por exemplo, mas há também muitas diferenças. No caso do Brasil estamos falando de 240 povos e 150 línguas, aproximadamente. Ou seja, não se confirmou a hipótese de alguns pessimistas, de que os indígenas no Brasil caminhariam inexoravelmente para uma identidade genérica. Aliás, no censo do IBGE de 2010, quase 900 mil pessoas se auto-identificaram como indígenas, como pertencentes a 305 povos, falando 274 línguas, resultados que necessitam de uma refinada revisão metodológicas para serem corretamente interpretados.

RC: O que te motiva a realizar o seu trabalho?

BR: As oportunidades de convivência com diferentes povos indígenas pelo Brasil afora, nos últimos 45 anos, além do apreço por valores estratégicos para a humanidade, como o respeito às minorias e o fortalecimento da diversidade socioambiental.

RC: Entrando rapidamente na questão gastronômica, como você ajudou chefs a obterem acesso a ingredientes da Amazônia? Quais ingredientes foram esses?

BR: O ISA tem programas e subsedes regionais nas bacias hidrográficas onde atua (Ribeira, Xingu e Rio Negro). Operamos com parcerias locais, regionais, nacionais e internacionais. Uma das linhas básicas da nossa atuação é criar ou apoiar alternativas econômicas com valor socioambiental agregado para comunidades que vivem na floresta. Nesse contexto é que abrimos uma conversa com vários chefs de cozinha, começando pelo Alex Atala no Rio Negro, em 2005. Desde então vários chefs do Brasil e do exterior vieram andar conosco nessas fronteiras de conhecimentos, convivendo com as comunidades indígenas e ribeirinhas, experimentando novos ingredientes, mas sobretudo aprendendo sobre as origens e modos de fazer, convertendo-se em aliados importantes para equacionar as dificuldades da comercialização: distâncias, dificuldades de logística, sazonalidades e controle de qualidade, entre outras. Essa nova atitude tomou corpo no Instituto Atá, fundado em São Paulo em 2012, uma organização da sociedade civil dedicada a promover e fortalecer a diversidade socioambiental e a agrobiodiversidade brasileira em particular. Começamos pela pimenta baniwa tipo jiquitaia, mas estamos identificando e pesquisando com as comunidades uma cesta de produtos, que inclui óleos, castanhas, derivados da mandioca brava, cogumelos, méis de abelhas sem ferrão e muitos outros.

RC: Há ainda muito a ser explorado na relação entre a floresta e a gastronomia? Faz ideia de algo que esteja por vir?

BR: Sim, as regiões de floresta são as maiores fronteiras da diversidade socioambiental do planeta, mas estão fortemente pressionadas pela agropecuária extensiva, com suas associadas, as indústrias de defensivos, de infraestrutura e de alimentos. Sem falar nas empresas de gás, petróleo e mineração. Esse bloco está altamente capitalizado, seja na vertente transnacionalizada, seja no cacife voraz de países como a China.

As paisagens florestais e a diversidade cultural associada estão sendo erradicadas e substituídas por paisagens reducionistas e “monótonas” numa velocidade espantosa.

Uma economia socioambiental baseada na diversidade cultural e nas paisagens florestais ainda é possível, mas requer visão estratégica e volumes de investimentos e modelos de governança capazes de deter o rolo compressor do capitalismo predatório.