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Rodrigo Casarin

nos rastros da utopia“Dude atuava na ala esquerda do Partido Comunista e se propôs a tirar quatro mil cópias do poema e usar alguns militantes do Partido para distribuí-las, discretamente, nas universidades, centros acadêmicos, sindicatos, organizações de classe, etc. […] O que eu jamais poderia ter imaginado é que aquela ideia luminosa do Dude e da panfletagem do meu poema ao Che, em Curitiba, em plena ditadura militar, mudariam todo o futuro da minha vida, obrigando-me a deixar o Brasil, e durante quatro anos peregrinar como um poeta errante ao longo de dezesseis países da América Latina”.

Visto em retrospectiva, era muita inocência Manoel de Andrade acreditar que um poema de grande repercussão em homenagem a Che Guevara passaria incólume pelos braços da ditadura, que procuravam sufocar com terror qualquer manifestação artística de alguma forma crítica ao regime. Contudo, vivendo na época, provavelmente essa percepção não era tão aguçada. Restou a Andrade deixar o país e perambular pelo parque de diversões dos Estados Unidos, que tomava providências para evitar que o comunismo ou o socialismo vingasse nos países latino-americanos.

Por onde passou, o poeta encontrou a solidariedade – palavra-chave da empreitada – de pessoas comuns e, principalmente, de outros ativistas de esquerda. Mais de 40 anos depois, transformou a sua forçada aventura no livro Nos rastros da utopia. Apoiou-se principalmente em cartas enviadas aos familiares durante o período, nos recortes dos jornais que guardou, num pequeno caderno de endereços, nas datas de seu antigo passaporte e em sua “extraordinária memória” para construir uma narrativa de viagem permeada por historicismo, ensaísmo político e muitas recordações afetivas.

A viagem de Andrade começa pelo próprio Brasil, quando parte rumo ao nordeste para conhecer aquela parte do país que jamais pisara e de onde traz passagens valiosas, como os encontros com vaqueiros e jangadeiros. Dá vida e complexidade a esses personagens típicos e constata realidades interessantes, como “Os nordestinos do sertão emigram para as grandes cidades da região e para o sul do país, mas os pescadores jamais deixam o litoral”. Também se mostra em campo, convivendo com essas pessoas. Animei-me, achei que esse seria o tom do livro, contudo, não é exatamente o que acontece. Ao longo da obra, a maior parte das pessoas é mais citada e rascunhada do que propriamente descrita e mostrada em movimento, com alguma representatividade mais abrangente do que a primeira impressão. Uma pena.

Pena que se estende para um outro ponto. Nos rastros da utopia é repleto de passagens e histórias excelentes, algumas até que justificariam um livro apenas para si. Para ficarmos apenas em dois exemplos, uma noite Andrade dorme dentro do parque histórico de Machu Pichu; em outra, numa cama exposta no Museu Histórico de Cusco, a mesma que Simón Bolivar teria dormido quando passou pela cidade. São momentos mágicos, sensacionais, únicos, que poderiam ter sido melhor explorados – mais detalhados, com mais sensações, emoções, divagações…

Mais derrapadas

Andrade derrapa também no cuidado com as palavras – algo ainda mais grave para um poeta -, como no seguinte trecho, : “Acostumado às grandes distâncias e a dispor de um longo tempo para tudo, seu sentido de espaço e duração é sempre relativo. Dir-se-ia que ele, tal como o jangadeiro em alto-mar, vive num tempo mágico, naquele sentido de duração do tempo que permanece, fora do tempo linear e contínuo do relógio” – as marcações são minhas. Será que era mesmo preciso repetir a palavre “tempo” quatro vezes, aparentemente sem objetivar nenhum efeito estilístico?

Outra passagem problemática: “Boa tarde, os senhores poderiam me conseguir um pouco de água? – cumprimentei-os, perguntando.” Precisava mesmo do “cumprimente-os, perguntando”, o “Boa tarde” já não evidencia o cumprimento enquanto a interrogação transforma a oração numa pergunta? – pergunto (tô brincando!). Há também excessos com detalhes que pouco agregam à história, exageros como o resumo e a resenha de uma obra literária – Huasipungo, clássico indigenista do equatoriano Jorge Icaza – e uma necessidade de se homenagear muitas pessoas – é bonita a gratidão do autor, mas não acho uma obra literária o melhor lugar para se acertar dívidas fraternas que pouco agregam à narrativa.

A mim, soa como uma falta de cuidado, mas não culpo exclusivamente Andrade. Pode até ser que isso tenha sido feito e o autor preferiu não dar ouvidos, mas o editor deveria alertá-lo dos excessos, mostrar que passagens excelentes podem passar desapercebidas numa história contada em mais de 900 páginas (muitas delas desnecessárias) e orientá-lo a transformar suas memórias e sua aventura numa narrativa sólida e coesa. Ainda caberia à editora evitar os problemas com o português, como palavras com grafia errada – em alguns casos, com erros que até mesmo o word acusaria -, pontuações equivocadas e repetição de linhas.

Em defesa dos oprimidos

Entretanto, há méritos de Andrade para se destacar.

É precioso o registro de como poetas de diversas nações se posicionavam e incomodavam os poderosos, tanto que diversos acabaram exilados (como o próprio autor), torturados ou até mesmo assassinados pelos fardados. E para mostrar como foi perseguido politicamente dentro do Brasil, Andrade não tem pudores em expor os documentos relacionados a sua pessoa. Descobre e mostra os registros que os militares faziam de seus passos – aterrorizante se deparar com um relato de todas as suas atividades –, os comunicados que os milicos trocavam entre si e que, em algum momento, citavam-no, e apresenta todo o seu processo de anistia, mostrando inclusive o quanto recebe de pensão.

Andrade também faz de Nos rastros da utopia um relato dos povos que resistiram, porém tombaram ao longo da história latino-americana após a chegada de Cristóvão Colombo, essenciais em sua caminhada. “Meus passos pela América não teriam sido tão fecundos se não tivesse encontrado os rastros libertários de Lautaro e Caupolicán, Túpac Amaru e Túpac Katari, Bartolina Sisa e Micaela Bastidas, Juana Azurduy e Manuela Sáenz, bem como, em episódios mais recentes, os exemplos memoráveis dos poetas Javier Heraud, Otto René Castillo e a luta atual e incondicional do ex-guerrilheiro Hugo Blanco em favor do indígena”, escreve.

Ao apresentar as histórias não oficiais, a história dos derrotados, não há como deixar de comparar a obra com As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano. Contudo, Andrade se perde nessas incursões ao passado. Em muitas oportunidades vai bastante longe, imerge no que aconteceu e esquece de si mesmo. Em nítidos rompimentos, praticamente abandona a sua história para contar uma outra. Ainda que alguns relatos sejam extremamento oportunos, como o massacre sofrido pelos mapuches no Chile (“o maior holocausto, na trágica história dos povos indígenas da América”), são construídos de modo didático demais, exaustivo.

Enfim, Nos rastros da utopia é mais uma obra que surge enquanto relembramos dos 50 anos da tomada do poder pelos militares no Brasil (do que li até aqui, destaco principalmente as de Bernardo Kuscinski, K., relançada, e Você vai voltar pra mim). É sim um relato oportuno, com um viés bastante interessante, mas repleto de poréns. Acredito que uma edição futura, melhor trabalhada, enxugada, possa fazer bem à obra.

Texto publicado originalmente no jornal literário Rascunho.

 

As mulheres de Mirisola

Por Rodrigo Casarin

Karina Freitas

Karina Freitas

Paulinha Denise não é puta, apesar de suas roupas. Se veste para provocar e capricha no rebolado. Usa um chapéu que mais parece um poodle, que cobre seu cabelo alisado e oxigenado. Tem um cabeção, um rabo perfeito, uma borboleta gigante tatuada na coxa e um umbigão mal tesourado extremamente feio, com uma tripa um pouco pra fora. É a mulher mais brega de Suzano. Frequenta os bares do centro de São Paulo e gosta de frango a passarinho e baconzitos. Tem dois cachorros, Titi e Camila, e uma irmã trambiqueira. Foge para Mongaguá quando precisa fazer algo realmente sério. Nunca leu Dostoiévski, adora Zíbia Gasparetto, compra livros do Shinyashiki e jamais encherá o saco com Clarice Lispector e Amélie Poulain. Curte Zeca Pagodinho. Não conhece “Samba do avião” e não sabe nada de Tom Jobim e bossa nova.

Ariela é o contrário de Paulinha. Não depila os pentelhos à maquina zero. Veste apenas uma camisa xadrez e fuma no terraço, mostrando-se nua e cabeludinha para as meninas da rua. Larga calcinhas e bijuterias para marcar território. É uma mentira, uma falsidade ambulante, uma Lolita avançada tecnologicamente. Em seu beijo não há cerveja ou amendoim. Ariela faz sonhar, é mulher para apresentar como namorada. É Maria Rodapé, gosta de beatnik. Tem sorriso de coelho e curte enganar os homens. Enxerga poesia onde somente existe egoísmo, solidão e desespero.

Ivete coleciona revistas femininas, não perde um programa da Sílvia Poppovic e é especialista em sexo oral. Mora na rua 3122, nº411, B.C, atende no número de telefone do seu tio Fernando e não trepou ontem de tarde, apenas levou umas porradas reparadoras e transcendentais depois que seu parceiro achou uma camisinha jogada atrás da cama – e ele nunca usa camisinha.

Eva é uma debiloide que dá desconto após o programa e fala de amigas em meio ao seu trabalho, mesmo quando está usando a boca para tal – aliás, gosta de conversar enquanto realiza seu ofício com a língua, os lábios, a garganta… Não fuma e tem belos pés, com unhas redondas e cobertas por base. Deveria se sentir honrada pela sutil relação que tem com Charles Bukowski.

Claudinha! Ele queria currá-la tal qual lera em Nelson Rodrigues. Uma garota de talentos, queria ser escritora. Abriu as pernas, mas preferia não ver seu nome numa história. Ao final de uma tarde em Paquetá, reclamou que os pés dele não tinham vida.

Nelci, aquela de cabelo esquisito e calcanhares sujos, é uma típica representante das garotas da fila de cinema gratuito do Centro Cultural São Paulo. Adora dizer um monte de bobagens e falar sobre uma tal de filosofia de vida superior.

Cristina B. era uma paixão de infância, da sétima série B. Claro que ela provocou apenas ilusão e desilusão. Agora, com 34 anos e ainda bela, deve estar casada com um alemão escroto que lhe deu um casal de filhos mongoloides e a leva para passar as férias de julho em Campos do Jordão. Cristina B foi sucedida pela inesquecível Luciana H.

Cris tem dentes grandes, que projetam seus lábios como se engolissem a própria língua. Ela às vezes causa tédio. Já Thaís é arquiteta, lésbica e namora Bebel. Moderninha, gosta de acrílicos. Tem ainda a Regiane, do disk-putas, que beija na boca, não bebe e o chama de “Príncipe de verdade”.

Mulher, mulher

Sem mulher não existe Marcelo Mirisola. Não só o escritor, mas o autor, narrador e personagem também seriam impossíveis sem as presenças femininas. Sem elas, não conseguiriam dar um passo – ou escrever uma linha – sequer. “É impossível fazer qualquer coisa na vida sem a presença feminina, literatura é só uma entre as milhares de outras coisas”, diz ele no brevíssimo papo que tivemos por e-mail.

Elas são a grande força das obras de Mirisola e, nas colagens acima, estão exemplos dessas personagens que dão vida a alguns livros do escritor. Paulinha Denise e Ariela são as responsáveis pela existência de Hosana poluída, o mais recente, que será publicado agora em maio pela Editora 34. A história começa num arquipélago na ilha de Sumatra – um dos quatro territórios da Oceania no War, célebre jogo de tabuleiro – e passa por São Paulo, Guarulhos, Rio de Janeiro, Suzano e interior de Minas Gerais. Nas suas primeiras páginas, Marcelo Mirisola, o protagonista, ouve de uma marmiteira que também lê tarô que irá correr o mundo e desfrutar do sexo de muitas mulheres – clarividência que reverbera por toda a obra do escritor.

Mas antes de continuar falando sobre as beldades mirisolianas, vale passar por alguns outros pontos de Hosana poluída. A prosa de Mirisola continua precisa até mesmo nas notas de rodapé – ou principalmente nas impagáveis notas de rodapé –, que costumam concentrar toda a verve cafona e sacana do autor, numa ótima mistura de Xico Sá com Chales Bukowski. Uma amostra: “Dedo no cu, no caso dos bitiniques de padaria, dois dedos cruzados – como se materializassem uma estrutura de DNA – que por sua vez denunciaria a falta incorrigível de talento e ânsia de se foder acompanhada de mais uma dose de Domecq” – o ódio é de Buk, a dose é de Xico.

A pontaria de Mirisola também continua ótima e mira desde aqueles que analisam seus livros – na visão do personagem, Paula Denise faz comentários mais pertinentes sobre Charque do que pesquisadores, mestres e doutores da Unicamp – e os “intelectuais ticket-refeição da Flip”, passando por velhos torturadores que hoje fazem hidroginástica no SESC “da melhor idade” até atingir o ápice com um “nazista ecológico dissidente do PV e recém-filiado ao PC do B” – e não se preocupem, também há referências críticas em tom parecido a outros partidos de diferentes vertentes ideológicas.

Nessa linha de contemporaneidade, vale ainda registar passagens em que o personagem envia mensagens de telefone de Tim para Tim “a custo quase zero”, a possibilidade do Facebook como ferramenta para manter ou resgatar o relacionamento e o sonho de comprar um apartamento em Suzano financiado pela Caixa. São detalhes, às vezes pequenos, que aproximam muito o texto do homem médio brasileiro, aquele que está sempre em busca de seu ouro de tolo. Ainda merecem destaque as referências, como a possibilidade de falar com um tal de Reinaldo Moraes doutor em relacionamentos, e citações a autores consagrados, como neste ótimo trecho: “O diamante é um dos poucos objetos lapidados pela vontade humana capaz de encerrar-se em si mesmo. Os livros de Camus também”.

Por fim, em um momento que tanto se discute a autoficção, impossível não registar o quanto escritor, autor, narrador e personagem Marcelo Mirisola são parecidos. Em dado momento, o personagem-narrador chega a pensar se referindo à Paula Denise: “Se ela quisesse mesmo ser minha mulher, teria de aceitar o pacote completo, eu & meus 12 livros publicados”. De um ano pra cá, Ricardo Lísias, por conta de seu Divórcio, que esteve no cerne dessa discussão. Considero isso um equívoco. A figura contemporânea ideal para ancorar o debate sobre metaficção e os limites entre escritor, autor, narrador e personagem é Marcelo Mirisola – boa parte de sua obra comprova e nos permite isso. Ele mesmo – o escritor – vai além. “Não só é possível, como é necessário [que haja a confusão]. Já disse numa entrevista, e repito: sou o Pedro Álvares Cabral da autoficção aqui no Brasil, e ninguém tasca”.

Voltemos às belas.

Ivete, Eva, Claudinha, Nelci, Cristina B, Luciana H, Cris, Thaís, Bebel e Regiane estão espalhadas por O herói devolvido (2000), O azul do filho morto (2002), Bangalô (2003) e Memórias da sauna finlandesa (2009) e entram neste texto porque seria um desperdício não aproveitarmos uma gama tão boa de personagens femininas. Afinal, Marcelo, personagem preferido de Mirisola, é um grande conquistador, praticamente um Renato Gaúcho das páginas literárias. E as moças que conquista possuem personalidade própria, muitas vezes flertam ou mergulham na breguice e cafonice, frequentam bares que fedem a urina e ficam com homens que se banham de loção barata. Não se importam de comer frango a passarinho e às vezes podem ter uma pele de amendoim nos dentes talvez sujos de batom. Não ligam para o bafo de cerveja ou cachaça – podem até sentir tesão nisso. São também moças que caem na lábia de intelectuais e se apaixonam depois de ouvirem algumas frases de efeito ou serem presenteadas com uma bijuteria bem acabada. E podem ser o contrário ou mistura de tudo isso, pois não seguem fórmulas. “Na mesma proporção em que elas me destroem, eu as construo”, conta o escritor. São mulheres de personalidade marcante, jamais idealizadas – a não ser pelos próprios personagens masculinos. E aí, méritos para o Mirisola autor e escritor, que, contudo, garante não sentir atração por nenhuma delas.

Você sente tesão pelas suas personagens, Mirisola? Com quais você gostaria de ter uma noite (ou uma vida)?

Só se eu fosse necrófilo. Tesão nenhum.

Mas eu disse que elas apaixonam e costumam se apaixonar de verdade. Aliás, o amor e a paixão são os grandes temas de Marcelo Mirisola. Muitas vezes são representados em relacionamentos breves, conturbados, acompanhados de traições corriqueiras, porém nunca simples, sempre sofridas. Alguns personagens podem até fingir que não ligam para os chifres ou para as desilusões, mas as frustrações e as dores em algum momento se manifestam, afinal, as relações são sempre intensas, mesmo que dure apenas uma noite – e isso graças às sedutoras Denises, Claudinhas, Regianes e afins.

Um conto que representa muito bem isso é “Festinha na masmorra”, de Memórias da sauna finlandesa, no qual o protagonista vai a um clube de sadomasoquismo para conseguir realizar sua grande perversão sexual: fazer papai-mamãe no escuro. É isso! Por mais que se cerquem de grandes extravagâncias, os personagens de Mirisola querem fazer papai-mamãe no escuro, sussurrar um “eu te amo” no ouvido da parceira e levar o café da manhã na cama, ainda que parceira e cama mudem a cada semana. Todos são desesperados por carinho e atenção. Entretanto, o próprio escritor discorda desse ponto de vista: “Eu penso que é tudo idealizado, apesar dos estragos causados pela realidade. Se o amor fosse possível, como você infere, não faria nenhum sentido escrever ficção”.

Há um trecho de Hosana poluída que é lapidar quanto a importância das mulheres na obra do escritor: “Inércia é a propriedade segundo a qual um corpo não pode modificar seu estado de movimento ou repouso, ao menos que sobre ele passe a atuar algo ou alguma força. Sem mulher, não há movimento”. Ou seja, a chave para entender Mirisola está em sua própria obra – é assim que os grandes artistas fazem, bastam-se naquilo que criam.

Texto publicado originalmente no suplemento literário Pernambuco.

 

Por Alberto Nannini

medHomensAlmasA inglesa Taylor Caldwell tem um estilo facilmente reconhecível: extremamente detalhista nas ambientações e descrições de personagens e localidades, muito precisa nas reconstruções históricas, e sempre baseando seus muitos livros no ideário cristão.

No caso do livro Médico de homens e de almas, a autora fez uma grande pesquisa para romancear a história de Lucas, a quem se atribui um dos evangelhos canônicos. Médico no seu tempo, contam algumas lendas que se atribuíam milagres e prodígios a ele antes mesmo de sua conversão ao cristianismo.

Com este mote, ela costura um romance envolvente, que conta a história do futuro santo, que sente grande compaixão pelos homens e que “não gosta” muito de Deus, ou melhor dizendo, não O sente próximo. Sua aproximação à ideologia do carpinteiro de Nazaré vai se mostrando como um arranjo perfeito, suprindo-o daquela convicção que lhe falta. Enquanto isso, Taylor Caldwell descreve costumes (chamou-me a atenção as refeições da época), localidades, vestimentas e elucida arranjos políticos no intricado panorama social vigente naqueles tempos, com os romanos buscando conter a insurgência crescente dos rebeldes judeus.

A autora, muito prolífica, escreveu também O grande amigo de Deus, romanceando a história de Paulo, o apóstolo que, bem dizer, fundamentou o cristianismo e lhe deu as bases que possibilitaram que ele reinasse soberano por milênios e que continue uma das mais influentes filosofias do mundo.

Tenho uma relação de afinidade com os livros de Taylor Caldwell – tanto que pretendia dar dica de leitura outro livro dela, mas pensei que havia tanto a falar a respeito deles que valeria uma resenha.

De qualquer forma, caso aprecie romances com fundo histórico e queira saber mais sobre os primórdios do cristianismo, a dica é ler um destes livros mencionados. Possivelmente, se ler um e gostar, vai desejar ler o outro. Foi o que aconteceu comigo.

 

Por Fred Linardi

Montaigne-Os-ensaiosExistem clássicos da literatura de ficção, assim como há clássicos da filosofia e das várias vertentes da ciência. Quando se trata de ensaio, no entanto, o crivo parece se estreitar – apesar deste gênero ser um tanto subjetivo em sua classificação. E então, uma das obras que ocupam o topo da categoria são a coletânea Os Ensaios, de Michel de Montaigne. Ele é considerado o criador deste tipo de texto que fica entre o livre pensamento e a objetividade acadêmica ou científica. Sua obra ganhou corpo depois que ele se decidiu se retirar e dedicar seu tempo à leitura e à produção da encorpada obra que acabou por gerar. Sim, ele era um nobre de família abastada. Além de herdeiro e pai de família, chegou a ser prefeito de Bordeaux, soldado, administrador e viajante. Quando decidiu se afastar, e preocupado com sua saúde, propôs-se a escrever sobre quase tudo – e aqui está o preceito do gênero que, na verdade, já havia sido praticado por mentes bem mais antigas que haviam se arriscado em livres pensamentos, como Sêneca, Plutarco e Sei Shõnagon.

Essa seleção dos ensaios do pensador francês reúne grande parte dos três antigos volumes que têm sido lidos ao longo desses cinco séculos no mundo todo. Temas universais como o medo, a ociosidade, a idade, as orações, o verdadeiro e o falso, a consciência, a embriaguez, a crueldade, Sêneca e Plutarco (!), arrependimento, a crueldade, e assim vai… Apesar dos assuntos serem para sempre atuais, é claro que a abordagem remonta ao seu conhecimento da época, com exemplos contemporâneos a sua realidade. Da mesma forma, para o leitor de hoje pode soar um tanto rebuscado. Mas olhando mais de perto vemos a ousadia de escrever sobre esses assuntos e permitir-se vagar por algo semelhante ao fluxo de consciência que passaríamos a ver em ensaios mais modernos, de cunho pessoal. Acontece que Montaigne já se coloca em seus próprios textos, mostrando mais verdade e nos aproximando mais de seu discurso.

Se o ensaio é um texto em que o autor se arrisca por campos ainda não visitados por ele, o texto “Sobre os canibais” pode ser um exemplo disso. Ele foi construído a partir de relatos lidos dos europeus que estiveram no Brasil. O contexto ainda era em torno da selvageria indígena versus a cultura civilizatória. Mas Montaigne, que se preocupava em evitar radicalismos, acaba por questionar – afinal, quem são os selvagens?

Apesar de reflexões que continuam atuais, a leitura não deixa de ser de fôlego. Os ensaios são raramente curtos e, refletindo a base de sua educação – ele foi alfabetizado em latim –, são entremeados de citações nesta língua, seguindo pensamentos de Horácio, Virgílio e Cícero, entre outros. Este livro é tanto um convite para uma longa leitura quanto para breves consultas acerca de seus temas. 

Por Alberto Nannini

capa_a_casa_dos_naufragosCuba. A pequena ilha, emblemática resistência de um regime alternativo, está sempre nos noticiários, bem como seu governante, o ditador Fidel Castro, ultimamente afastado.

Li duas obras ligadas ao país: A casa dos náufragos, de Guillermo Rosales, e Cuba – minha revolução, de Inverna Lockpez e Dean Haspiel. Ambas são relatos de cubanos exilados, e são bastante politizadas, no sentido de passar impressões sobre o regime por gente que o viveu na pele.

Meu plano original era abordar algumas particularidades do regime castrista por um olhar leigo e desapaixonado, interpretando o discurso dos autores destas obras. Porém, tive que mudar a abordagem. A primeira obra era tão rica e suscitava tantos questionamentos e reflexões que seria um desperdício utilizá-la apenas para falar sobre Cuba.

Mergulhar na loucura

Comprei A casa dos náufragos sem qualquer indicação, e me surpreendi. Magnífico.

A orelha do livro diz:

Exilado em Miami, o escritor cubano William Figueras é internado pela família em um asilo destinado a inválidos e doentes mentais. Sofrendo de alucinações auditivas episódicas e comportamento paranoico não violento, o personagem está em posição privilegiada em relação aos outros pacientes. ‘Já te observei bastante’, diz o abjeto zelador da instituição, ‘e você não está louco’. O que a princípio poderia ser uma vantagem termina por aprofundar sua dor.

Capacitado a compreender o estado de miséria humana que o rodeia, desnutrido, perturbado e sem perspectivas, o escritor pressente a morte. Egresso de uma Cuba mergulhada na ideologia e na censura, ele se situa no presente como um náufrago que nem pertence ao território que habita nem sente falta do que abandonou.

A exemplo de sua ficção, Guillermo Rosales também deixou Havana e se mudou para Miami em 1979, onde permaneceu até a morte, em 1993. Membro do círculo intelectual cubano que se transferiu para os Estados Unidos, foi lido pela comunidade hispanófona de Miami, mas permaneceu desconhecido do grande público, já que A casa dos náufragos só foi traduzido para o inglês nos anos 2000.

Curto (apenas 122 páginas), mas poderoso. Uma história humana e pungente. Fica na memória, por seus muitos méritos. E faz pensar em muitas coisas.

Tons autobiográficos

Não é fácil separar personagens literários de autores, para não dizer impossível: a dimensão da literatura abarca, extrapola e reinventa os fatos, refletindo-os com uma lente difusa, mesmo quando a intenção é ter um tom autobiográfico. De qualquer forma, a polêmica sobre isto vai muito longe (a discussão sobre os livros de Ricardo Lísias abordam o tema com maestria; leia as resenhas aqui já publicadas, sobre o último romance, Divórcio, e sobre O céu dos Suicidas, aqui e aqui).

Mas algumas características do livro de Guillermo Rosales empurram para uma leitura de notas autobiográficas: segundo consta, o escritor tinha esquizofrenia, e frequentou diversas instituições psiquiátricas ao longo da vida.

Além disso, o protagonista do livro, William, conta de sua relação com o regime cubano e das leituras que fez ao longo da vida, também muito semelhantes à história do próprio autor: “’Este é meu fim’, declara ‘eu, que li Proust completo quando tinha quinze anos, Joyce, Miller, Sartre, Hemingway, Scott Fitzgerald, Albee, Ionesco, Beckett. Que vivi vinte anos numa revolução, sendo carrasco, testemunha, vítima’”.

De qualquer maneira, a força do livro prescinde completamente de que se determine o quanto há de autobiografia nele. A história comove e arrasta, no abismo de desalento que sempre acompanha a loucura, mesmo quando alguma esperança vã teima em acender.

Por isso, o título A casa dos náufragos é muito apropriado, e até a edição do livro e a capa dele – uma pequena casa amarela flutuando num fundo preto e azul escuro, que evoca a imensidão do mar – remete ao tipo de leitura que vai se mergulhar, sem nunca deixar de ser uma metáfora mais abrangente do exílio, da solidão e da crueldade.

imagem_loucoNaufragando…

A trama começa com Willian sendo levado pela tia à “boarding home”, espécie de abrigo para desvalidos, ou um hospício disfarçado. Lá, ele vai perceber como serão as coisas, e verá que a lei do mais forte é a regra única, e entenderá mais sobre a miséria – sua e a dos outros – do que jamais imaginou.

Com o tempo, o protagonista vai se acomodando à situação, e passa a entender o posto que ocupa. Ele percebe que a desesperança ali é a regra, inclusive para os opressores, como o zelador ladrão e abusador, ou o dono, que acolhe “hóspedes” de olho nos cheques de pagamento que recebe do governo para cuidá-los. Um mero negócio, vil como qualquer outro.

Um dia, o já razoavelmente adaptado Willian vê a chegada de uma nova “hóspede”, que concorda com tudo o que dizem. Ele e todos os outros “testam” a novata, de maneiras terríveis. Mas ele começa a dedicar maior atenção a ela, e se permite ter alguma esperança. E a convida para um plano – fugir do asilo e recomeçar a vida, os dois se lançando ao mundo. E de novo a fuga de Cuba se repete aqui, metaforicamente: se lançam, de forma precária, contra outra imensidão de mar escuro – o mundo desconhecido da “normalidade”, longe de surtos e medicações, sendo um a boia do outro. Uma fuga em múltiplos níveis: exilados fugindo duas vezes da exploração, da loucura e da desesperança.

Pode dar certo, eles não são mais loucos que a média que se via do lado de fora. Qual será o desfecho desta tentativa desesperada? Da derradeira chance, do último suspiro de sanidade e de normalidade para dois excluídos? Vale a pena ler e conferir.

Historicamente crível

A história é relativamente simples, mas não sei se seria possível escrevê-la sem algum conhecimento de causa. Cabe relembrar que o autor esteve internado diversas vezes. Tudo isso vai se insinuando, após a leitura, quando se considera o quanto há de Guillermo em Willian.

Voltando à ficção, outro componente interessante na trajetória do protagonista é o quanto ele se mimetiza aos loucos, tornando-se tão brutal quanto for necessário. Presumo que este fato, num caso real, seja uma imposição, e não uma escolha.

Então, supondo que haja um determinado tanto de autobiografia: poucos discordariam que estas partes – as desabonadoras – são as historicamente mais críveis, porque todos “editam” suas facetas mais obscuras a seu bel prazer, quando relatam algo de si mesmos (Facebook, alguém?). Ou seja, haja o que houver de tons autobiográficos no livro, é brilhante que ele demonstre conhecer tão bem a loucura, e conte os deslizes que cometeu, ao invés de apenas retratar o sentimento de inadequação de estar ali. Ao contrário, em algum momento, ele passa a pertencer ao lugar, e sempre há uma luta (literalmente) insana, que acontece em diversas frentes.

O pequeno romance de Guillermo é notável pela amplitude de leituras que permite, e não se presta a uma só interpretação.

Análise prometida para breve…

Das várias maneiras que se poderia aprofundar esta obra, duas se insinuam: sobre a loucura em si e sobre a fuga.

Como já disse, o plano inicial era abordar, como leigo que sou, um pouco do rico material de discussão sobre o regime comunista de Cuba e sobre algumas polêmicas que sempre o cercaram. Com a manifestação dos autores das duas obras citadas, ambos exilados da ilha, eu pretendia analisar alguns pontos da ditadura castrista, o que ela trouxe e o que custou.

Porém, deixarei esta abordagem para uma próxima resenha. Nesta, terei que priorizar a abordagem sobre a loucura, por causa de uma obra lida anteriormente.

holocausto_brasileiro_capa… e pequeno parênteses sobre a loucura

A obra referida é o livro reportagem de Daniela Arbex: Holocausto brasileiro, já brilhantemente resenhado pelo Rodrigo Casarin aqui.

Ler Holocausto brasileiro é uma viagem a um mundo de terror pior que o pesadelo mais insistente. Saber que ele é uma reportagem, que foi escrito mediante a aferição de fatos, é estarrecedor. Se no livro de Guillermo sobra lirismo e beleza literária, no de Daniela a crueza dos fatos te atinge como um soco no estômago com luva de ferro. Se a verdade se obnubila no primeiro, e nos perguntamos o quanto daquela história magnífica e daqueles personagens foram reais, no de Daniela, ficamos sabendo do desfecho de alguns, e da tristeza que prevaleceu em suas vidas.

É impressionante como as obras se acrescentam. Ler A casa dos náufragos é como conseguir acessar a narrativa autoral, feita por um interno que fosse um romancista excelente, de uma das milhares de histórias que aconteceram em Colônia, o hospício retratado em Holocausto brasileiro. E ler Holocausto é entender profundamente a que tipo de situação Guillermo se referiu, em seus rudimentos – porque a vida dos desgraçados em Colônia era ainda bem pior que a ficção.

Pensar nisso dá vertigem.

O que é loucura, afinal?

A loucura não é um ponto pacífico. Eminentes psiquiatras e estudiosos buscam um consenso. Há bem pouco tempo, as perturbações mentais, por mais diversas que fossem, costumavam ser categorizadas do mesmo jeito. Conforme diz Charles Pépin, autor francês, sobre o louco, “Ontem percebido como mensageiro divino, hoje como doente mental, não há uma verdade acerca dele; a maneira como o consideramos varia segundo os sistemas de pensamento e poder”. Daniela Arbex endossa estes dizeres em seu livro, relatando que entre os internados, havia esquizofrênicos, dementes, mas também pessoas apenas tímidas ou caladas, e muitos sem qualquer anomalia digna de nota – apenas pessoas indesejadas (ou inconvenientes para alguns poderosos). Este estigma de loucura para aqueles que se quer excluir é muito importante.

Possivelmente, foi o questionamento deste estigma que levou o psiquiatra húngaro Thomas Szasz a abalar os alicerces da psicologia com sua obra “O mito da doença mental”. Na obra, grosso modo, ele defende que “doença mental” é uma metáfora. As mentes podem estar “doentes” apenas no sentido em que as brincadeiras estão doentes ou as economias estão doentes. Ou seja, o estigma de doente mental se baseia em uma teoria e não em um fato, semelhante a acusar alguém de estar possuído pelo demônio, por exemplo.

A razão da perpetuação deste rótulo que remanesce até hoje seriam interesses – excluir pessoas indesejadas, diferentes e fora dos padrões. Conforme o verbete sobre Szasz no Wikipédia diz, “os diagnósticos psiquiátricos estigmatizam rótulos, construídos à semelhança dos diagnósticos médicos e aplicados a pessoas cujo comportamento incomoda e ofende a outros”.

Para Szasz, a doença mental é um instrumento de controle e exclusão, e não tem sequer uma pequena parte da precisão que reivindica.

Mesmo porque, a normalidade também é um conceito difuso, e talvez nem mesmo muito desejável. Quase sempre, são os “fora-do-normal” que criam e questionam. Mas a normalidade se torna “desejável”, no sentido em que, uma vez estabelecido um comportamento normal, e contanto que as pessoas e suas reações estejam dentro dele, o status quo permanece: poder concentrado nas mãos de pouquíssimos, conformismo e impotência para a imensa maioria. Este ordenamento, tão antigo quanto as sociedades, se impõe em qualquer cultura. Os “fora da curva” serão categorizados: a doença mental, quando acomete a uma pessoa rica, a torna apenas “excêntrica”; se for pobre, a torna, além de maluca, perigosa, o que impõe que ela precisa ser contida, seja do jeito que for.

Como lidar com os loucos

O hospício de Colônia, de história tão recente, é mais apavorante que qualquer ficção. O “””consolo”””, bem entre aspas e bem ironicamente, é que o tratamento de doentes mentais e excluídos pior do que a animais não é exclusividade do Brasil (lugar onde sabemos bem o quanto o dinheiro, o poder e a influência fazem diferença); barbarizar os loucos era uma espécie de regra. O hospital Willowbrook State School, em Nova Iorque, nos anos 60, tinha mais de 6.000 internos que andavam nus, eram espancados e abusados pelos cuidadores.

Ou seja, assume-se que uma desordem mental tira a humanidade da pessoa. Mesmo que não haja uma maneira 100% segura de diagnosticar esta desordem, e, principalmente, que tanto o diagnóstico como o remédio proposto sejam radicalmente influenciados pela posição social que o doente ocupa. Se for um bilionário, talvez, no máximo, sofra processos de interdição dos herdeiros (será que, talvez, quem sabe, mais preocupados com a saúde do que com a dilapidação do patrimônio?); mas, se for um pobre, antigamente, seria deportado, para depósitos de pessoas. Hoje em dia, seria largado à própria sorte.

Loucas inconsistências

De qualquer forma, o assunto é muito amplo até para especialistas, mas algumas considerações podem ser feitas.

O psiquiatra escocês Ronald David Laing (1927 – 1989) pesquisou a esquizofrenia e, segundo ele, a doença é uma reação compreensível a situações impossíveis de serem vividas. Ele procurava padrões na fala dos esquizofrênicos, e questionava a validade do diagnóstico psiquiátrico para desordens mentais, já que estes são baseados no comportamento do “doente”.

Laing apontou o problema de se diagnosticar uma conduta mental a base de um comportamento, mas tratá-la de forma biológica, com remédios. A medicação interfere na capacidade de pensar, e por conseguinte, na cura.

É verdade que a precisão dos diagnósticos e o conhecimento sobre as desordens mentais cresceu, mas outro fator acompanhou também este crescimento: o comércio em cima das doenças, puxado pela indústria de medicamentos. E isto se liga a um outro problema bem complexo: a indústria do diagnóstico.

Interesses comerciais

Lou Marinoff, em seu livro Pergunte a Platão, falou sobre a indústria do diagnóstico: segundo ele, para que profissionais como psiquiatras e psicólogos sejam ressarcidos pelos planos de saúde, eles tem que diagnosticar algo. Assim, se construiu uma nação inteira de doentes – qualquer pessoa, qualquer uma mesmo, pode ter alguma disfunção mental diagnosticada. Basta que seja humana, e que se sinta triste ou angustiada de vez em quando, para ter sua CID (código internacional de doença) no seu atestado, e possivelmente, com uma receita prescrevendo alguma medicação acompanhando.

Daí que , embora os avanços médicos sejam evidentes, outros interesses continuam a tornar a loucura algo nebuloso.

Então, depois de todas estas considerações, há que se perguntar: apesar das inconsistências no diagnóstico da loucura, apesar do uso dela como desculpa para exclusão de indesejáveis, apesar do histórico pavoroso de massacre dos doentes mentais pobres, e apesar do comércio e dos interesses financeiros que existem em cima disso, será que, pelo menos, os médicos sabem diferenciar os realmente perturbados dos sãos?

cartun_loucoComo distinguir a loucura da sanidade?

Se qualquer um pode ser diagnosticado como vítima de alguma transtorno mental, como distinguir os loucos dos normais?

Bom, o psicólogo americano David Rosenhan fez um experimento clássico a respeito. Se os psiquiatras dizem que transtornos mentais podem ser diagnosticados de modo preciso com base em sintomas, e assim serem categorizados como doenças, eles deveriam saber diferenciar, por estes mesmos critérios, os loucos dos sãos.

Só que não. Não se consegue diferenciar os loucos dos sãos nos hospitais psiquiátricos. O estudo de Rosenhan reuniu oito pessoas sãs (ele próprio no meio), para tentar internação em instituições psiquiátricas. Orientados a dizer sobre vozes que ouviam, todos os pacientes foram internados, com diagnóstico de esquizofrenia, embora não apresentassem sintomas da doença.

Uma vez internados, eles se comportaram de maneira absolutamente normal. O que quer que fizessem era interpretado como sintoma da doença. Para um dia inteiro de internação, o contato com os médicos era de cerca de sete minutos diários. Os únicos a perceberem o embuste foram alguns dos outros internos – supostamente loucos.

O pesquisador divulgou o estudo e informou que enviaria, nos próximos meses, um ou mais pseudopacientes, como eles foram, para tentar novamente a internação. Após conhecerem o estudo e avisados, nos hospitais da época, de 193 novos internos autênticos, 41 foram identificados como suspeitos por pelo menos um membro da equipe da instituição, e 23 como possíveis pseudopacientes por pelo menos um psiquiatra.

O chato é que Rosenhan não enviou ninguém.

Distinções falhas

Ou seja, a loucura, em grande medida, é uma cisma – por uma normalidade e por uma padronização que muda ao sabor dos costumes e interesses. Houve, sim, progressos: há desordens mentais mais ou menos compreendidas. Desgraçadamente para alguns loucos antigos, ficava ao sabor da história e da cultura local se aquele atributo deles, por exemplo, de ouvir vozes, era um dom – o que poderia torná-lo um profeta – ou uma maldição – o que o tornaria um endemoniado. O matemático americano John Nash, autor da Teoria dos Jogos, era esquizofrênico, e poderia ter sido morto, há apenas… ia dizer algumas décadas, mas me lembrei que Colônia e Willowbrook são seus contemporâneos.

Ou seja, é bastante razoável supor que pessoas que poderiam contribuir para o progresso da humanidade foram empilhadas e sacrificadas, apenas porque não as entendiam, porque elas eram muito pobres, ou ainda, porque eram muito tímidas ou pouco articuladas. Ou qualquer combinação destes fatores.

Evidentemente, isto não significa que pessoas que não pudessem contribuir de qualquer forma tivessem que ser sacrificadas. Limitadas ou não, eram pessoas. E a vida delas, tão sagrada quanto a de qualquer “normal”.

Em grande medida, aliás, eles, que eram simples de coração e reduzidos em suas capacidades, precisavam ainda mais da ajuda dos outros. É o mesmo raciocínio que leva a absoluta maioria de pessoas a ter ojeriza a maus tratos com animais – seres meio dependentes, com limitações, puros, sem maldades ou interesses. Não sei precisar em porcentagens, mas deduzo que a maioria dos deficientes mentais sejam assim. Às vezes, pode nos enojar o quanto eles se reduzem aos instintos básicos/fisiológicos, e o quanto lhes falta pudores. Como comem, copulam e se sujam como animais; mas esquecemos que pudores são construções sociais mutáveis, e andar nu, por exemplo, é aceito em algumas comunidades. E pior, esquecemos que, ao amontoá-los como bichos, lhes tiramos qualquer dignidade que poderiam preservar, e só lhes restará mesmo o instinto de sobrevivência.

Ainda em defesa da inofensividade da maioria dos loucos, me parece que os perigosos e violentos da nossa sociedade gozam perfeitamente de suas capacidades mentais – lhes falta empatia e um tanto de humanidade, e lhes sobra egoísmo e ganância. Criminosos, de maneira geral, não são loucos. Claro, há aqueles que têm surtos psicóticos, que causam massacres. Mas o que há de loucura num sequestrador, que arquiteta um plano cuidadoso para levar sua vítima, ter seu resgate e não ser pego?

Loucura moderna

Recentemente, mais um garoto recalcado (Elliot Rodgers), perturbado num nível profundo, massacrou seis pessoas, nos EUA, por não ser reconhecido, e se sentir inferiorizado. Qual o nível de loucura disso? Internos são mais loucos e mais perigosos que alguém assim?

E sobre o norueguês Anders Behring Breivik, que planejou um atentado por anos, e rumou para uma ilha e massacrou perto de 70 inocentes? E sobre Columbine, e mesmo do brasileiro Wellington Menezes, que imitou a “moda” americana de massacres em escola e assassinou 12 (o massacre de Realengo)?

Como diagnosticar estes loucos modernos? O que fazer?

holocausto_Não sei, mas sei o que não fazer: não se pode colocá-los em nada que se assemelhe a um hospício antigo. Argumentos em contrário, por mais persuasivos que sejam, especialmente para quem perdeu alguém em qualquer um dos massacres, reabrem a exceção que criaram distorções como Colônia e Willowbrook (que aliás, à sua época, não eram exceções, mas a regra); ou legitimam asilos e abrigos como comércios vis que nada tem de humanos, e que visam apenas lucro, como o relatado por Guillermo Rosales em seu livro.

Retroceder e permitir a volta de colônias ou a legitimação de “boarding homes” (hospícios particulares) são caminhos terríveis, que já deveriam ter sido totalmente abolidos.

A sombra da loucura continuará a afetar as sociedades, mas precisamos progredir no tratamento dos doentes. Este é um problema de dimensões tão profundas e tão controverso que parece pacífico que não haja uma solução unânime e sem riscos. Desenvolver medicações para tratar doentes, além do problema do comércio de fármacos e da indústria de diagnósticos, tende a robotizar as pessoas. Interná-las, quase sempre, é apenas excluí-las do convívio – mesma alternativa que se pensa para outros indesejáveis, como viciados, mendigos e criminosos de menor potencial ofensivo.

Assumo que não consigo pensar, nem ingenuamente, em algo que pudesse funcionar, neste caso. Talvez uma série de ações conjuntas e ordenadas e também uma mudança social. Mas repito: hospícios devem ser peças de museu (de horrores, no caso).

A balada do louco

Concluindo para ligar todo o exposto à obra de Guillermo Rosales, muitos loucos tem visão mais sã e verdadeira da sociedade que muitos ditos normais. Muitos normais são apenas bovinamente conformados, e nunca utilizaram a capacidade oculta que carregam de questionar a ordem das coisas – ordem esta que prioriza outros deu$e$ em detrimento da compaixão pelos semelhantes.

A loucura pode ser uma face da genialidade, e nem todos que as cometem são necessariamente loucos – aliás, segundo o psicólogo americano Elliot Aronson, qualquer pessoa, em determinadas situações, pode fazer algo que seja considerado insensato.

O autor de A casa dos náufragos era considerado insano, por alguns parâmetros, mas entregou uma obra de rara sensibilidade. Seja para refletir sobre a loucura, seja para pensar sobre as fugas, ou para apreciar uma peça de literatura magnífica, a indico.

Acho que Rosales endossaria a clássica música “Balada do louco”, do grupo brasileiros Os Mutantes, que intitula esta resenha. Especialmente o verso:

Eu juro que é melhor

Não ser o normal

Se eu posso pensar que Deus sou eu.

 

 

Por Rodrigo Casarin

Adulterio_Capa WEBVigésimo sétimo livro de Paulo Coelho, Adultério, como o título já entrega, trata-se de uma história de traição, com pitadas de erotismo soft à 50 Tons de Cinza e dose de apelo sob medida para garantir o sucesso – de vendas, veja bem – do escritor brasileiro mais lido e traduzido em todo o mundo (a obra de Coelho foi publicada em 168 países e transposta para 80 idiomas).

Adultério acompanha Linda, uma bela jornalista de 31 anos que trabalha no jornal mais importante da Suíça francesa e se veste com as melhores roupas que o dinheiro pode comprar. Mora em Genebra junto de seus dois filhos, que são razão de seu viver, e de seu marido, dono de um fundo de investimentos e que todo ano aparece na lista da revista “Bilan” dentre as 300 pessoas mais ricas do país.

Linda leva uma vida tranquila, daquelas que parecem possíveis somente na ficção mesmo. Contudo, apesar de amar os filhos e seu marido, sente-se incompleta e deprimida. Tem o desejo de fazer algo diferente, experimentar o novo, sair da rotina. A oportunidade surge quando vai entrevistar Jacob König, um ex-namorado da escola, casado com Marianne – uma mulher que aparentemente não liga para as puladas de cerca do seu companheiro –, e que agora é candidato a um cargo do governo suíço e uma das peças proeminentes do jogo político do país.

Ao final da entrevista, ambos terminam o que haviam começado na adolescência. Nesse momento, temos o primeiro flerte de Adultério com a onda de livros eróticos populares que dominou o mercado editorial após o lançamento da trilogia 50 Tons de Cinza. No novo trabalho de Coelho, o sexo está presente e bastante explicitado, com detalhes talvez até excessivos e deslocados. De volta ao pós-entrevista, a traição que move o livro está consumada.

Como já deu para perceber nesta breve introdução, os personagens de Adultério são superlativos. Estamos falando de um dos 300 homens mais ricos da Suíça, de uma das jornalistas mais respeitadas do país e de um dos homens mais importantes da política local. Parece não haver espaço para meio-termo na obra do escritor. Esse conceito se arrasta para diversos outros pontos. Linda, por exemplo, ou nunca tem orgasmo ou passa a ter orgasmos múltiplos. Também só consegue pensar que é infeliz – e repete isso exaustivamente ao longo de boa parte da história – e que gostaria de ser feliz, como se qualquer uma das possibilidades pudesse ser completa e inesgotável, não estados que mudam, muitas vezes repentinamente, e que apenas temperam a rotineira normalidade da vida.

Mas os problemas de Adultério não se encerram aí. A questão da traição é tratada de maneira quase infantil. Linda se arrasta pelas páginas como uma adolescente de 16 anos que trai seu primeiro namorado, não como uma mulher de cultura refinada – é o que supomos por tudo que a cerca, ao menos. Seus pensamentos são pouco complexos e recheados de um moralismo pragmático, como se a única maneira de se encarar o adultério fosse se sentir suja e culpada. Perde-se a chance de tratar de temas como a diferença entre amor e sexo, a necessidade de atender os próprios desejos enquanto precisamos manter o que a sociedade espera de nós e até mesmo a possibilidade de um relacionamento que fuja do padrão. Enfim, acomoda-se no tranquilo senso comum.

Há ainda personagens que são apresentados com alguma contundência, mas depois simplesmente desaparecem do livro (é o caso do vizinho de Linda que gosta de passar os finais de semana encerando seu Audi), frases que soam como se fossem mal traduzidas – apesar de eu deduzir que a obra tenha sido escrita em português, afinal, trata-se de um escritor brasileiro e não há nenhuma referência a tradutores na ficha técnica do livro – e ideias que até parecem sofisticadas pela verborragia que as orna, mas não resistem a uma reflexão um pouco mais atenta e crítica do leitor.

Para compôr Adultério, Paulo Coelho realizou pesquisas na internet, trocou e-mails com pessoas que entraram em depressão por conta de problemas amorosos e, em entrevista recente ao jornal “O Estado de São Paulo”, disse que procurou transformar o que leu em um relato sobre a traição que vem do coração, não do corpo. Então, talvez o que tenha faltado para a história seja a complexidade da mente. Mas nada que impedirá que as pilhas de livros das livrarias se desfaçam em pouco tempo.

Texto publicado originalmente no Uol.

 

O esboço de um livro

Por Rodrigo Casarin

bibliotecário do imperadorO objeto livro é a principal plataforma (ao menos ainda) para a publicação da literatura. Contudo, qual seria a máxima relação entre um livro e uma obra literária? Não digo um entrar com o entorno e as páginas e o outro com o conteúdo, isso já é o que acontece. E se dados vitais do texto estivessem no ISBN ou na ficha catalográfica? E se a ilustração da capa ou as inscrições da lombada contivesse informações essenciais para que a história seja entendida? E se um detalhe fundamental sobre o cenário, algo que explica muitas das ações dos personagens, estivesse naquela última página, no meio do “este livro foi composto em papel x para a editora y e impresso na gráfica h no outono do ano tal”? Mais, e se o tipo de papel estivesse diretamente relacionado com o enredo? Estaríamos indo além da literatura, conciliando a arte com o objeto livro em uma simbiose total.

Faço essas perguntas provocado pela leitura de O bibliotecário do imperador, de Marco Lucchesi. Não que a obra apresente alguma dessas “contravenções”, mas um ponto me levou à divagação. A história começa com um prefácio do revisor. Prefácios são comuns, mas, de revisores, bastante raros (para falar a verdade, nunca tinha visto nenhum). Mais, ao final, não há assinatura do prefácio. Ainda mais, o prefácio é precedido por um “1” bem grande, iniciando a contagem dos capítulos. Ou seja, o espaço destinado ao comentário que antecede a obra foi incorporado à narrativa. Pode não ser a coisa mais original do mundo, mas é algo bastante raro — o que é bom, convenhamos.

Nele, o revisor, que assume pouco entender de literatura moderna, faz algumas ponderações ao livro que está por vir. Compara a obra com outras que cansou de revisar, afirma que ela não tem foco e está alicerçada sobre terreno incerto e movediço, diz que o autor “não entende quase nada sobre muita coisa”. Como se quisesse desencorajar o leitor — a quem faz elogios protocolares —, dispara: “Descobre-se que o livro, que antes parecia um rio caudaloso, não passa de um logro, de um simples riacho, quase sem água. Tentei preveni-lo [o autor], mas sua vaidade não permitiu sequer uma troca de palavras”. E termina com uma frase típica dos saudosistas: “Sinto saudades dos escritores antigos, dos que sabiam tecer uma narrativa densa e ao mesmo tempo ágil”.

Essa intromissão do suposto revisor tem desdobramentos ao longo da obra. Em diversos momentos, o narrador procura se justificar para o revisor. Um exemplo: “E se me perco em devaneios, meu bom Revisor, se não vou direto ao ponto é porque não achei infelizmente o esqueleto de Inácio [o alvo da investigação que deveria mover a obra]”. Se não bastasse, em algumas oportunidades o revisor se torna um intruso e volta para discutir, por meio de notas de rodapé.

A ideia até que é boa, mas a execução não funciona bem. Primeiro porque, no prefácio, o que o revisor-personagem escreve soa como uma justificativa, um mea-culpa do autor pelo o que está por vir. Segundo, porque as discussões ao longo do texto são forçadas e inverossímeis. Não faz sentido autor e revisor discutirem durante a narrativa, da mesma forma que não faz sentido um revisor atacar o autor no livro deste, com aval até mesmo do editor. Soa inverossímil. Ao final, o intrometido acaba sendo um fantoche para que o autor consiga chamar a atenção para alguns momentos da história, como se utilizasse esse personagem para poder comentar e dar alguma complexidade ao seu próprio texto a partir de pontos de vista conflitantes.

Alguma razão para o revisor
Mas a obra de Lucchesi não se resume a essa questão, é claro. O bibliotecário do imperador é uma espécie de busca pela história de Inácio Augusto César Raposo, responsável por cuidar dos livros de dom Pedro II. Para tentar reconstruir a vida de Inácio, o narrador vai em busca de vestígios que mostram a relação do personagem com o objeto livro. Contudo, o sucesso é parco e o texto resulta numa espécie de biografia ficcional frustrada, apenas com um tatear da história, como um esboço da pessoa que teria sido Inácio. O próprio narrador/pesquisador define bem o rastro daquele que norteia o seu trabalho: é um “personagem à procura de um autor, porque precisa contar sua própria vida, como no drama de Pirandello, vestido de preto, náufrago de sua geração. E, no entanto, desapareceu de repente, como um fantasma, obrigando-me a persegui-lo nas raras pistas que encontrei”. Pistas que foram insuficientes.

Essa busca frustrada, ancorada principalmente em documentos e cartas que aparecem aos montes (empobrecendo a narrativa), acaba por fazer com que o narrador pegue raiva de Inácio, o que rende alguns bons momentos, como o próprio narrador supondo que o “biografado” deixou parcos rastros apenas para que sua história não pudesse ser contada no futuro. “Vejo-me aborrecido com sua decisão de deixar a cena, pouco antes do fim do ato, longamente planejado e consumado, sem aviso prévio, fora de enredo, a produzir graves resultados ficcionais, trajando terno escuro, chapéu e casemira. Como se de mim suspeitasse, digamos, cem anos antes, e mais obstinado se mostrasse, e foragido, nas dobras do tempo, despistando sempre, apagando as provas, assaltando afrontosamente os bolsos do futuro”.

Ao final, em um dos momentos mais interessantes do livro, Inácio aparece para discutir com o narrador, chamando-o diretamente de Marco Lucchesi. Não fica claro como o fenômeno metafísico se dá, mas ele resulta em um excelente diálogo no qual o biografado reclama do biógrafo por ter transformado parte de sua vida em um livro, o que nos remete à discussão de quem possui os direitos de uma história, da legitimidade de se narrar uma vida alheia sem que o objeto de inspiração e pesquisa autorize o escritor para tal.

Não bastasse o revisor, o protagonista da história também não gosta da obra composta por Lucchesi, que é um livro razoável, com alguns bons momentos, algumas máximas interessantes (como “A biografia de um homem de livros encerra uma contradição. A vida e o livro são inimigos ferozes. Viver no seio da biblioteca reflete o isolamento de um bibliopata”), mas nada muito além disso, nada marcante. Vendo como o autor se utilizou de elementos em sua narrativa para, a todo momento, defender a obra, fico na dúvida se até mesmo Lucchesi não teria ressalvas a fazer sobre O bibliotecário do imperador.

Contudo, para não ser injusto, ao final fiquei com outro pensamento: o que acontece com a história das pessoas comuns depois que elas, os amigos e parentes próximos se vão? Nós morreremos de verdade, definitivamente, quando mais nenhuma história sobre nós é contada ou lembrada. Então, se nossa vida está num livro, há uma chance a mais de continuarmos a viver. É algo para se pensar mais a fundo, discutir comigo mesmo — às vezes o Rodrigo e o Rodrigo se pegam feio aqui na mente — e, quem sabe, abordar em um texto futuro.

Texto publicado originalmente no jornal literário Rascunho.

Expurgando a ditadura

 

Por Rodrigo Casarin

Ilustração de Janio Santos

Janio Santos

1.

Quando escrevemos, quando criamos, expurgamos o que está em nós, damos forma a sentimentos, organizamos ideias, refletimos sobre o que parecia estar escondido em algum compartimento na periferia do cérebro, dividimos com o papel – real ou virtual – o peso de nossas experiências, um pouco de nossas sombras. Às vezes, algo que começa como um íntimo desabafo se transforma num revigorante e produtivo processo.

2.

Você vai voltar pra mim é um apanhado de histórias transformadas em contos. Praticamente todos eles são de alguma forma inventadas, buscam fazer um retrato da realidade que talvez só seja possível com as nuances permitidas pela ficção. Mais do que relatos pontuais da época da ditadura no Brasil, os textos trazem o clima de medo, perseguição e até mesmo indiferença – a maioria das pessoas não estava nem aí para o que acontecia – que se instaurou no país ao longo de duas décadas que estão num passado apenas cronológico. O período está ali, bem representado, seja de maneira trágica, como em “Sobre a natureza do homem” e “Tio André” – talvez o melhor texto de todo o livro –, seja de maneira originalmente saudosista, como em “Recordações do casarão”.

Olhados na totalidade, os contos nos dão um grande panorama da vida íntima de muitos brasileiros ao longo da ditadura, de famílias que entravam em conflito porque o filho com verve revolucionária batia de frente com o pai reacionário (“Pais e filhos” e “Os gaúchos”), de “subversivos” que, por viverem em estado de permanente tensão, de medo de serem pegos pela polícia, acabavam encontrando alguma tranquilidade somente quando presos (“A mãe rezadeira”), dos podres da esquerda, tanto em forma de membros delatores (“Dodora”) quanto das artimanhas ilícitas para se levantar dinheiro (“O filósofo e o comissário”). Você vai voltar pra mim trata o assunto com a complexidade e profundidade que ele merece ser tratado, enfim.

3.

Bernardo Kuscinski entrou na USP no começo da década de 1960 para estudar Física. Quando um grupo de alunos subversivos foi expulso da FEI, estava dentre aqueles que os receberam na Universidade de São Paulo. De maneira quase que natural para um jovem estudante, pendia para a esquerda na mesma proporção que a direita se extremava. Tentou entrar para um grupo trotskista – estava de olho principalmente nas meninas que dele participavam –, mas foi recusado sob a alegação de que era muito fraco. Isso talvez tenha lhe poupado a vida.

Então, colaborava como podia. Levava bilhetes de um grupo para outro, ajudava em ações e até mesmo assaltou alguns mimeógrafos – apesar de não saber para quê foram usados. Percebeu que tinha mais jeito para comunicação e trocou a física pelo jornalismo. Trabalhando na revista Veja, participou da publicação de duas matérias de capa que denunciavam a tortura no Brasil. Fez também um dossiê sobre o assunto, com o irônico objetivo de ajudar o ditador Médici, que bradava ser contra aquela forma de violência, a extinguir a prática cada vez mais disseminada no Brasil. Se não houve censura antes da publicação, a perseguição após a veiculação das matérias foi enorme. Acreditava que colegas da imprensa ficariam ao seu lado, mas estava errado. Com medo de que algo pudesse acontecer, aproveitou que a esposa estava em Londres e se auto-exílou na Inglaterra.

Kuscinski viveu a ditadura de perto. Mais que isso, conheceu gente que mergulhou e foi engolido pelas entranhas dos órgãos de repressão. É com base nas histórias dessas pessoas que escreveu Você vai voltar pra mim.

2.

A semelhança entre K. e a obra de Kafka é evidente, a começar pelo nome do protagonista, K, que remete a Joseph K., personagem principal de O processo. K está em busca de sua filha, Ana Rosa, e de seu genro, Wilson, desaparecidos durante a ditadura. Já não tem esperanças de encontrá-los vivos, mas quer os corpos, reivindica seu direito de cumprir os ritos e o luto necessários para que a morte possa ser, se não superada, ao menos aceitada. Nessa busca, entra num espiral de mandos, desmandos, informações, contrainformações e absurdos semelhantes aos vividos por Joseph K. Além disso, em todo momento a ditadura soa como a grande força superior que inspira medo e transforma vítimas em culpados – para Kafka, esse elemento estava em casa, como podemos comprovar em sua Carta ao pai.

Mas claro que não é só isso. K também luta contra a crueldade do desaparecimento súbito e sem registros – até mesmo durante o holocausto, os soldados de Hitler ao menos anotavam os nomes das vítimas. Os capítulos alternam o foco entre K e outros personagens, como uma delatora construída com extrema complexidade, cuja participação é um dos pontos mais altos da obra. Também mostra os problemas da esquerda radical, seu totalitarismo, seus hábitos semelhantes aos praticados por aqueles que combatiam. No âmbito familiar, é uma narrativa sobre um pai que se aproxima e passa a conhecer muito mais sobre a sua filha – não só politicamente, mas também pessoalmente – apenas depois que ela desaparece.

3.

Ana Rosa Kuscinski e Wilson Silva desapareceram em 22 de abril de 1974. Militavam pela ALN (Ação Libertadora Nacional) e sumiram quando os repressores eliminavam pessoas que pudessem comprometê-los de alguma forma. A bandidagem batia continência.

Bernardo Kuscisnki estava em Londres e só soube do desaparecimento da irmã e do cunhado quando seu pai foi encontrá-lo. A princípio, acreditavam que o sumiço poderia ser temporário. Porém, com o passar dos dias, das semanas, dos meses, primeiro a angustia e depois o desolamento aumentavam na proporção inversa à esperança de acharem Ana e Wilson vivos. Investiram dinheiro, contataram gente em diversos lugares do mundo, vasculharam todas as pistas que surgiram, mas elas sempre vinham acompanhadas de algo estranho, como uma força maior que misteriosamente as alteravam e impediam que se aproximassem de alguma verdade. O espectro ditatorial parecia atuar em todas as instâncias.

A violência contra a família e contra Ana não se encerrou no desaparecimento em si. Depois disso, ela passou a ser tratada por muitos como uma mera comunista, como alguém que mereceu sofrer o que sofreu por ser subversiva. Nem mesmo na USP, onde dava aulas, recebeu um tratamento respeitoso. Após uma decisão tomada por seus colegas, foi destituída de seu cargo por abandono de emprego, como se não ir ao trabalho fosse uma opção sua, não uma consequência de seu assassinato, de um crime político. O caso ainda é uma chaga na história da universidade.

No ótimo K., Kuscinski romanceia a história da busca de seu pai por sua irmã e se aprofunda nessas questões que envolveram o pós-morte de Ana.

2.

A abordagem que Kuscinski utilizou em K., a tragédia vista sob uma perspectiva próxima, mas não grudada, a um pai que perde sua filha, o transforma em um livro esteticamente mais interessante do que Você vai voltar pra mim. Contudo, ambos são fundamentais – aliás, qualquer obra bem escrita sobre a ditadura é fundamental. Retratam um período que ainda não se esgotou, que vive nos algozes impunes que continuam por aí, nos mais variados tipos de vítimas e, o que é mais preocupante, em seus entusiastas.

Mas a relevância vai além. Todas as atrocidades representadas nas obras de alguma maneira eram justificadas por conta da vítima ser “subversiva”, algo bastante semelhante com o que temos hoje, quando alguém pode ser espancado por dez policiais em uma manifestação, afinal, se estava lá, é “baderneiro”, ou preso ao poste com um cadeado de bicicleta, já que é “bandido” mesmo. O ser humano continua sendo descartável no Brasil, só mudaram os adjetivos.

Um dos melhores trechos de K. vai ao cerne da questão, flertando com a humanização dos animais e animalização dos humanos: “Mandou comprar essa ração de trinta paus o quilo, mais cara que filé mignon; o pior foi ontem, quanto eu falei em sacrificar a cadela, levei o maior esporro, me chamou de desumano, de covarde, que quem maltrata cachorro é covarde; quase falei pra ele: e quem mata esses estudantes coitados, que têm pai e mãe, que já estão presos, e ainda esquarteja, some com os pedaços, não deixa nada, é o quê?” – haviam acabado de matar os donos da cadela que agora deveriam cuidar bem.

3.

Kuscinski acredita que no Brasil a ditadura não tem o tratamento que merece. Crê que o brasileiro, de uma maneira geral, não se envergonha de um dos períodos mais asquerosos de sua história, que encara as perseguições, torturas, mortes e sumiços como algo necessário para aquele momento. Evoca países que protagonizaram tragédias semelhantes, ainda que de proporções distintas, e tentam se retratar com o passado, como a Alemanha e a necessidade de reafirmar constante que o holocausto foi um erro gigantesco, como outros países da América do Sul, que julgaram, condenaram e prenderam ditadores e seus capangas fardados. Aqui não. Apesar da Comissão da Verdade, o esforço é pequeno, como se não quisessem incomodar os velhinhos que ainda exercem influência e, mais do que isso, são admirados por membros das Forças Armadas e de parte representativa – e poderosa, principalmente – da população.

16.

Mas essa é a visão macro, a visão do país, do povo. Há ainda a visão micro, o eu, a tragédia particular. Essas Kuscinski começa a de alguma forma superar. Depois de ser compulsoriamente aposentado pela USP, onde era professor, e de se desiludir com o jornalismo que pende cada vez mais para o lado de quem detém o poder, resolveu escrever ficção – garante que ela permite uma maior reflexão sobre a condição humana.

Enquanto conversamos sobre sua relação com o período ditatorial, sobre sua irmã, seus olhos permaneceram vermelhos como o uniforme da seleção da Polônia – país onde seu pai nasceu. Às vezes os esfregava com as mãos, com força, apertava-nos, mas nenhuma lágrima se desprendeu do seu marejado globo ocular. Sua aparência, seu sentimento, só mudou quando falamos de literatura. Sorri para dizer que descobriu a maravilha que é inventar ou recriar histórias, mas lamenta ter começado muito tarde – ele completa 77 anos em 2014. Arrisca-se em diversos gêneros, experimenta-se com o estilo de outros escritores, passeia por temas, descobre-se como autor. “Rompi com a razão racional, fui para a razão humana”.

Por que optou por começar escrevendo sobre a ditadura? Porque era o que ainda estava – está – latente dentro de si. Enxerga Você vai voltar pra mim como um livro bastante forte, mas escrito com a cabeça, enquanto diz que K. foi feito com suas entranhas. Dessa forma, com a cabeça, com as entranhas, Kuscisnki encontrou nas palavras uma forma para cuidar de seu passado.

Texto publicado originalmente na edição 98 do suplemento literário Pernambuco.

 

Por João Dutra

jesusNo princípio, Deus criou o céu e a terra. De lá para cá, a gente também criou um monte de coisas: a roda, o chuveiro elétrico e o iPad. Mas, como li outro dia em um desses posts compartilhados no Facebook: “as melhores coisas do mundo não são coisas”. Muito do que criamos realiza muito bem os desejos do corpo – afinal, quem ousaria duvidar dos benefícios do banho quente no inverno? –, mas e os desejos da alma, para os quais a ciência e a tecnologia não têm respostas tão precisas?

É necessário buscar soluções em outras perspectivas a respeito da vida: a arte, a filosofia e a religião. Tentemos usar esses três elementos para contar a história de um homem que veio ao mundo para nos apresentar um caminho para fazer a vida valer a pena.

Amor democrático

Em “Pride (in the name of love)”, a banda irlandesa U2 nos apresenta a história do criador de uma forma inovadora de amar:

One man come in the name of love
One man come and go
One man come here to justify
One man to overthrow

Este é Cristo. Como a própria letra diz, é um homem que veio ao mundo para subverter.

O amor cristão é subversivo pois é uma reação intensa e declarada ao contexto em que se inseria no momento em que foi criado. Lembremos que o mundo greco-romano, a região civilizada, por assim dizer, da época de Cristo, era em essência aristocrático.

Os dois tipos de amor sobre os quais refletimos anteriormente aqui no Canto, o Eros platônico e o Philia aristotélico, não são nada democráticos. O desejo erótico é apenas pelo que nos falta, a beleza que nos falta, a força que nos falta, o talento que nos falta. A Philia de Aristóteles é por aqueles poucos e bons amigos e amigas que nos alegram por serem como são.

Na Bíblia, Cristo estimula os leitores a amar “o próximo”. Mas, que próximo? Quando perguntado, sua resposta veio em forma de parábola, aquela que talvez melhor represente o pensamento cristão: a do bom samaritano (“Lucas 10.25-37”).

Essa conhecida história é precedida por aquilo que Cristo relata ser o caminho para a salvação:

Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo.” (“Lucas 10.27”)

A palavra usada para descrever esse amor é Ágape, palavra latina de origem grega.

Amor “em” Deus

Ágape é um daqueles termos difíceis de serem traduzidos, por significar mais do que outros idiomas permitem. Há quem o traduza como “caridade”, mas certamente representa mais do que a esmola dada a um desconhecido no semáforo ou a uma ligação para o Criança Esperança.

Em Aprender a viver, o filósofo francês Luc Ferry faz uma tentativa de atribuir significado ao termo. O que Cristo nos ensina não seria a amar invariavelmente a qualquer um. A sabedoria está em amar a Deus sobre todas as coisas (incluindo a roda, o chuveiro elétrico e o iPad). Desse amor, baseado na fé – não na racionalidade, aqui o pensamento cristão se descola da filosofia – deriva o amor por todos os filhos do Criador. O próximo.

Então, Ágape seria sobre amar aos outros “em” Deus, sustentado na fé de que somos todos filhos do mesmo Pai.

Ali, nas parábolas de um homem simples e pobre, surgiu pela primeira vez a base sobre a qual se sustentaria toda a civilização dali em diante: a crença que, de alguma forma, todos somos iguais. Foi o berço das ideias de humanidade, igualdade, fraternidade, democracia.

Morte e ressureição

Não por acaso, tal subversão condenou seu idealizador à pior das penas da época, como faz referência a letra do U2:

One man caught on a barbed wire fence
One man here resist
One man washed up on an empty beach
One man betrayed with a kiss

Traído pelo beijo cruel de Judas, Cristo, depois de resistir às tentações terrenas e divinas, foi crucificado.

O professor Sir. Ken Robinson, nomeado cavaleiro pela corte britânica graças a seu trabalho em defesa da Educação, aponta no livro The element que um verdadeiro criativo deve estar preparado para resistir contra todos os que o forçarem a manter o status quo, que se incomodam com suas ideias originais. Cristo não hesitou em defender sua ideia, até as últimas consequências. Um criador. Um criativo.

Em sua canção, o U2 exalta um dos seguidores de Ágape, outro revolucionário, que morreu em nome do amor:

Early morning, april four
Shot rings out in the Memphis sky
Free at last, they took your life
They could not take your pride

Este é Martin Luther King, pastor protestante, que morreu na defesa dos direitos civis dos negros nos EUA. A manhã de 4 de abril certamente foi um momento de muita tristeza para os que acreditam que todos devemos ser tratados igualmente perante a lei.

A despeito de todos os milagres de Cristo relatados na Bíblia, imagino que o maior de todos tenha sido a capacidade de fazer com que o amor da forma em que acreditava ressurgisse em pessoas como Martin Luther King, Mandela, Madre Teresa e todos aqueles que no dia-a-dia praticam Ágape. Vida eterna para o amor.

Como diria o U2 em “Walk on”, em outra canção bastante inspiradora, amar não é nada fácil, mas no final das contas, parece ser a única coisa que vale a pena levar conosco.

Seja movido pelo Eros de Platão, por Philia de Aristóteles ou pelo Ágape de Cristo, amar é uma busca pessoal por uma fonte rica de significado. Uma criação mais valiosa que a roda, o chuveiro elétrico e o iPad. Uma maneira inspiradora de compartilhar o fato de que as melhores coisas da vida não são coisas.

Por Alberto Nannini

fim-fernanda-torres-tipssFernanda Torres é um pouco irritante. Quer dizer, ela parece ser uma pessoa bem bacana e divertida fora do palco; mesmo sendo filha da melhor atriz brasileira da história, ela é uma atriz excelente, cheia de recursos, comediante com timing invejável. Como se não bastasse, é uma ótima cronista. E agora, resolveu ser escritora também, com a costumeira excelência. Precisava mesmo ser boa em tudo?

Brincadeiras à parte, imaginei que as críticas generosas a seu primeiro romance, Fim, fosse mais por boa vontade dos vários amigos e conhecidos que ela deve ter, e da legião de admiradores que certamente tem, do que por mérito literário.

De qualquer forma, eu tinha que ler para dar meu veredicto, até porque nem sempre eu e a crítica geral afinamos nossos gostos. Há coisas que os críticos dizem ser sensacionais, e que eu acho péssimas (como exemplo, me vem à cabeça o filme Tabu, de Miguel Gomes). E há coisas que eles detestam, e eu gosto muito.

Enfim, li o livro da Sra. Fernanda Torres, com uns sete pés atrás.

E tenho que me render – o livro é ótimo.

Os fins

Um grupo de cinco amigos, separados, relembram episódios de suas vidas, e também atividades do dia a dia e a amizade que os unia, pouco antes de suas mortes, quase todos já velhos. Assim, o livro é dividido em cinco capítulos – cada qual narrado segundo a perspectiva de um dos integrantes do grupo, e intitulados com os nomes deles: Álvaro, Sílvio, Ribeiro, Neto e Ciro – e completado por um último capítulo, cujo título é “O próximo”.

Na página que inicia os capítulos, vem o nome do narrador e uma inscrição com as datas de seu nascimento e morte, como numa lápide. A narrativa é em primeira pessoa, e traz as memórias dos personagens e transcrições de seus pensamentos, enquanto fazem suas atividades rotineiras. Daí, as vozes vão se alternando, até seu último dia. Como as datas de óbito são afastadas, também vai se falar como as mortes dos primeiros afetarão os ainda vivos.

Estas digressões, pensamentos, diálogos e comentários entregam personagens esplendidamente construídos, absolutamente reais em suas mágoas e mesquinharias, de perfil psicológico consistente e de fácil identificação.

Isso, por si só, já é um grande mérito.

Mas a construção é ainda mais elaborada, porque, pelo fato deles serem amigos, comentam uns sobre os outros constantemente, e assim, entregam mais detalhes de seus comportamentos e atitudes, além de pontos de vista alternativos para alguns eventos-chave.

Ou seja, Fernanda conseguiu um feito e tanto, ao estabelecer uma narrativa que é perpassada pelas outras vozes o tempo todo, sem nunca perder a identidade de cada um, e ainda revelar mais destas identidades na visão inimitável e privilegiada que só o outro pode ter.

Os meios – demais personagens

A proeza de ter encadeado as vozes de cinco personagens, sem perder as características de cada um, é aumentada, porque há também as falas dos coadjuvantes, em subtítulos. E estes aparecem em mais de um relato dos protagonistas: são as esposas, ex-namoradas, filhos e filhas, dentre outros; todos igualmente bem construídos. O ponto de vista deles enriquece mais ainda o cenário desenhado e dá novas nuances às personalidades dos cinco amigos e a alguns dos fatos que eles relatam.

A teia de protagonistas e algumas das pessoas que gravitam em torno deles é uma microrreprodução do mundo: seres reais, que convivem e tem suas visões sobre as coisas e pessoas, que tem seus segredos e frustrações, e que confundem as memórias com os fatos.

Este pequeno recorte que Fernanda fez, das vidas e situações de todos os personagens que desfilam pelas 200 páginas, é em tudo fiel à realidade, e traz todos os ingredientes que conhecemos bem aqui fora do papel: esperança, sonhos, escolhas boas e ruins, anseios, alegrias, segredos, mágoas e desencontros, e também humor, tragédia, e muita, muita beleza.

Uma ideia de enredo tão simples, mas imensamente trabalhosa, que poderia desandar ao menor descuido – que felizmente, Fernanda não comete.

Uma pitada de humor…

Eu esperava humor vindo de Fernanda Torres, comediante de primeira linha. E claro, há até bastante dele no livro, mas muito cadenciado. De fato, o humor é aquele que vem do inusitado, ou mesmo daquela sensação de que a vida é mesmo uma grande comédia, com suas idas e vindas.

Acho dificílimo escrever algo engraçado; são necessárias sutileza e elaboração muito delicadas, para não cair em algum extremo, como o grotesco ou o patético. Para ser bem sincero, houve duas ou três vezes durante o livro que parecia que a “Fernanda-comediante-do-imaginário-comum” estava escrevendo, com situações que pareciam vindas de alguma de suas comédias encenadas. Mas isso passou tão rápido como uma brisa, e a leitura prosseguiu, fluindo daquela maneira gostosa que vamos lendo sem perceber as páginas sendo viradas.

Então, na absoluta maioria das vezes em que o humor apareceu, veio de maneira perfeita – arrancando o riso como um ato reflexo, do qual só vamos nos dar conta do porquê rimos depois de já tê-lo feito.

… e uma de atrevimento

Já seria uma obra notável e uma estreia impressionante se ficasse nisso. Uma história correta, bem costurada, verossímil e divertida. Mas talvez alguém dissesse que faltou um pouco de imprevisto. Seria ainda uma obra de arte, como um quadro pintado com perfeição fotográfica, como os de Almeida Júnior – mas talvez carecesse de uma pitada de ousadia.

Nem isso faltou.

A danada da Fernanda ousou sim, e de maneira magistral, no final de seu romance, com algo que não pode ser entendido de imediato. Enquanto eu lia, fiquei aventando possibilidades, mas o mistério só é revelado no final (não se preocupe, isso não é um spoiler, nem quebra o encanto de ler a obra).

Há um sutil toque de fantástico no enredo – exatamente igual acontece no dia a dia. Basta ler o noticiário para o fantástico e o absurdo saltarem aos nossos olhos e estapearem as nossas caras.

Por isso, achei a última travessura da genial autora formidável, que deu ao livro aquela particularidade para não apenas torná-lo correto e bem escrito, mas ímpar.

Outra beleza

Fernanda Torres demonstra com esta obra ser uma ouvinte e uma espectadora atenta do cotidiano, e alia a isso a sensibilidade de mostrar que o dia a dia, o comezinho, as vidinhas que acendem e apagam todos os dias no mundo tem, em si, a mesma força que acendeu as estrelas.

E como tudo isso – a obra, a vida, a morte – é essencialmente belo, cabe traçar um paralelo com outra obra, em outra mídia, que toca nestes mesmos temas: o corriqueiro, as impressões dos outros, a vida normal que nunca é normal, e a morte e sua imprevisibilidade, que dá sentido a tudo.

É o filme Beleza americana.

beleza-americana

Ambas as obras falam da morte. Beleza americana é narrada postumamente por Lester Burnham, medíocre funcionário que segue emasculado e submisso a todos: aos chefes, aos clientes, à mulher e à filha. Ele é uma piada, até o dia em que resolve virar a mesa e começar a fazer o que quer e o que gosta.

***(Em off: quanto há de Lester Burnham em mim? E em você?)***

Em dado momento de sua vida, depois que ele rompe suas amarras, as coisas ficam bem esquisitas. Sua mulher o trai, sua filha o despreza, ele larga o emprego e se envolve, inadvertidamente, com tipos estranhos, como o garoto vizinho, que tem fixação pela sua filha e lhe fornece maconha, e o pai dele, ex-militar durão e preconceituoso, que talvez seja algo bem diferente por debaixo da casca. E a amiga da filha, uma jovem que ele tenta seduzir, e que parece experiente.

Bom, não vou publicar spoilers do filme, apesar dele ser já antigo (2000) e de ter passado inclusive na TV aberta. Se você já assistiu, sabe aonde quero chegar – a ironia e a fragilidade da vida, contada com humor mordaz – que bem pode ser uma descrição do magistral livro de Fernanda Torres.

A protagonista oculta

morte2A morte, esta desconhecida tão familiar, espreita em ambas as obras, e é enquanto ela não chega que as tramas vão se desenrolando para os narradores, e – surpresa! – continua se desenrolando depois que ela lhes alcança com seu derradeiro toque. 

Isto é significativo, porque a morte é o Fim, como bem batizou Fernanda Torres, mas não se sabe qual fim. Se definitivo, se só passagem, se uma porta para o nada, ou para o tudo. Mas o que se infere destas obras é que o sol continuará a nascer, depois da sua morte, não importa o que você tenha chegado a ser. Que o mundo continuará basicamente o mesmo. Que você viverá nas memórias e impressões dos outros, e esta será sua sobrevida. Que a pessoa que você é acaba quando descer o caixão, mas que sua lembrança seguirá, enquanto os que te conheceram viverem.

E que até isso acontecer, você viverá, talvez, como cantou Sinatra, com duas doses de alegria para uma de tristeza. E então, deixará tudo isso para trás, na vida como carne e osso. Ou seja, independente do que você creia para depois da morte, a sua singularidade – Fulano(a) de Tal da Silva, filha de Sicrano e Beltrana – jamais se repetirá no universo conhecido.

Há que se ter humor para se encarar esta implacável verdade.

Influências cinematográficas?

Mas nem só de morte vive este romance. Há muito a acontecer, antes de ela chegar. Sobre influências da autora, arrisco dizer, sem ter certeza, que ela seja cinéfila, porque não apenas enxerguei paralelos evidentes, mas também entrevi influências de filmes consagrados no seu enredo: Magnólia, de Paul Thomas Anderson, Short Cuts, de Robert Altman e Crash, de Paul Haggis – todos eles com diversos personagens, em tramas que são cuidadosamente entrelaçadas, embora pareçam independentes. E também pelo fato de todos serem obras que ganham muito numa segunda visita – para perceber sutilezas, dicas e autocitações, que escapam na primeira leitura.

Os personagens de Fim, em minha opinião, alcançaram a mesma profundidade dos destes filmes, se não foram além, porque uma interpretação possível demonstra que a interação dos cinco protagonistas uns com os outros, durante a maior parte de suas vidas, foi de tal forma intensa e próxima que os moldou e imprimiu neles marcas definitivas. Embora esta seja uma extrapolação da leitura, é perfeitamente cabível, exatamente da mesma maneira que acontece “aqui fora”. No livro, se percebe o amigo infantilizado, o recalcado, o canalha, o certinho, todos eles se assumindo, se transformando e se reforçando, conforme o convívio entre eles acontecia.

Aliás, outro mérito foi a tranquilidade da autora em dar vozes masculinas a seus personagens. Ela reproduziu perfeitamente expressões, palavrões e visão de mundo essencialmente viris. Embora haja um tanto de chavões nelas, percebi também algumas sutilezas, que fogem do imaginário comum de que todos os homens são mulherengos (convictos ou disfarçados) e machistas.

Enfim, acredito que o fato de Fernanda ser uma atriz, ter vivido desde sempre entre artistas e atores, e ter que interpretar e contracenar com personagens que são construídos segundo um roteiro, tenha sido determinante para conseguir montar personagens tão ricos, tão multidimensionais e tão interdependentes, como são os de seu livro. Dá a nítida sensação que ela “conhecia” mais os personagens, em suas nuances, do que pôde relatar no papel.

Oh, crianças / Isso é só o fim”

O tom escolhido para alguma obra que imite a vida (todas?) depende do autor. Pode ir de tragédia à comédia, mas eu, particularmente, gosto bastante quando este tom se situa entre ambas, ou vai de uma a outra, sem se firmar.

Fim pende mais para a comédia, mas é por meio dela que também dramatiza, trazendo dilemas e vidas tão iguais as nossas, com toda a sensibilidade que os escritores seguros têm. Achei notável a estreia de Fernanda, e me surpreendi positivamente – e parece que não estou sozinho: o livro continua bem comentado e a autora aceitou o convite e confirmou a presença na Flip 2014 (Festa Literária Internacional de Paraty, que acontecerá de 30 de julho a 3 de agosto).

Falar sobre este pequeno intervalo entre dois períodos de tempo absolutamente desconhecidos – que nós chamamos de vida – brincando com a impermanência, com o cotidiano, com a vaidade e a forma aleatória com que tudo acontece, e de quebra, arrancar risos, fazer refletir e deixar uma sensação de bom tempo gasto, é tudo o que um bom livro pode desejar.

Em minha opinião, Fernanda Torres alcançou com méritos este Fim.